Vice-presidente do Estado plurinacional boliviano fala sobre a Nova Constituiçao do país e a correlação de forças que a gerou
12 março 2009/Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br
Júlio Delmanto e Juliana Sada, de La Paz (Bolívia)
Como ato inaugural de uma série de debates sobre as modificações que a Bolívia sofrerá após a aprovação da nova Constituição Política do Estado, Álvaro García Linera, vice-presidente do Estado plurinacional boliviano, discursou nesta terça-feira, (10) sobre os rumos institucionais do país e o “desenho do novo Estado”.
Sob olhar atento e absolutamente silencioso dos cerca de 300 militantes e simpatizantes do Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político Para Soberania dos Povos (MAS-IPSP, partido no poder desde a posse de Evo Morales em 2006), o intelectual e ex-guerrilheiro falou por duas horas acerca de suas concepções teóricas de organização estatal e das movimentações políticas e econômicas que alçaram outro “bloco histórico” ao posto de detentor da “hegemonia política, intelectual e moral” do país.
Trajando sobretudo e terno pretos, além de gravata e cabelo impecavelmente alinhados, Linera dividiu sua didática exposição em duas partes, uma mais teórica - com a definição de Estado e seu papel - e outra calcada na atual conjuntura boliviana, marcada pela ascensão de novos atores políticos ao poder, depois de quase duas décadas de um neoliberalismo devastador socialmente, responsável pelo desmanche do Estado pensado pelos nacionalistas da Revolução de 1952.
Segundo ele, cada Estado apresenta três “eixos transversais” que o definem: a institucionalidade (conjunto de normas, procedimentos, acordos e burocracias), arcabouço teórico e, principalmente, a correlação de forças que gera e sustenta a estes outros dois eixos. No caso boliviano, essa correlação estaria mudando de alguns anos para cá, em favor do movimento popular.
Além de detentor do “monopólio da coerção legítima”, o Estado possui o monopólio da capacidade “de representar a vontade geral da sociedade”, explica Linera. Mas como se daria esse processo em uma sociedade dividida em classes? “Esse é o grande desafio do Estado, converter a divisão em unidade, em biocoletivo”, o que só aconteceria quando uma classe ou bloco possuem a capacidade de “incorporar demandas e interesses do resto da sociedade”, constituindo o que Antonio Gramsci definiu como hegemonia.
Depois de cerca de 30 anos de “hegemonia pequeno burguesa”, representada pelo nacionalismo revolucionário triunfante em 1952, e de outros 20 nos quais a burguesia agroindustrial nacional, aliada ao capital estrangeiro, controlou o cenário político sob o ideário neoliberal, configura-se agora outra hegemonia na Bolívia, “articulada por um núcleo nacional popular”, segundo seu vice-presidente.
Ela começou a se formar em torno de sindicatos agrários, que depois incorporam juntas urbanas de vizinhos e movimento operário; a partir daí agrega-se a esse “bloco histórico” um setor intelectual urbano de classe média, formando o grupo hegemônico da Bolívia de hoje. Ao assumir o poder, esse bloco passa articular-se também com “outros setores médios urbanos” e “setores empresariais”, deixando de fora setores ligados ao investimento estrangeiro. Para Linera, “o núcleo desse bloco é campesino e vicinal urbano, é de natureza de classe distinta” ao que tradicionalmente dirigia o país.
Segundo García Linera, é essa mudança no bloco dirigente da Bolívia que explica as mudanças pelas quais o país tem passado nos últimos anos, especialmente após a chegada do MAS ao governo federal, com 54% dos votos. “Revolução não é invenção de movimento social ou partido político, é resultado dos desdobramentos de forças acumuladas por décadas na sociedade”, afirma.
Na época de hegemonia militar-nacionalista, “nao havia índios, somente bolivianos”; já no período neoliberal os indígenas tinham seu papel apenas no lado folclórico, turístico, diferentemente do presente momento, no qual “são a força motriz do novo Estado”. E com um detalhe muito importante: força motriz nao homogênea. Se nacionalistas revolucionários e neoliberais constituíam-se enquanto núcleos minimamente homogêneos entre si, o mesmo não se passa no atual bloco hegemônico, conformado por diferentes grupos políticos e étnicos, com suas respectivas tradições, culturas e visões de mundo.
É essa hetereogeinedade que explica a nova Constituição boliviana, segundo o vice-presidente. O texto anterior reconhecia idiomas e culturas distintos, mas “reconhecia a sociedade como plurinacional, não o Estado”, o que seria fundamental para “superar a colonização”, na opinião de Linera. Como exemplo, compara sua própria história de vida –intelectual, branco, proveniente da classe média – com a de Evo Morales, para mostrar como há diferentes tradições e concepções, pessoais e coletivas, conformando o bloco dirigente. Desta maneira, a configuração plurinacional do novo Estado “nao é impertinência teórica ou capricho intelectual, é demanda histórica. Como sentar-se juntos sem que um se sinta superior? Plurinacionalidade!”.
De acordo com o vice-presidente boliviano, esse novo bloco traz em si uma diversidade de práticas políticas, que o coloca como representante de uma “civilização distinta”, a “comunitária associativa”, apresentada em oposição à “mercantil moderna”. Dessa maneira, é essa diversidade política que gera a necessidade de novas alternativas institucionais, que prevejam, para além da democracia representativa, mecanismos de democracia participativa e comunitária. Linera aponta novas práticas educacionais como exemplo de tradução prática dos conceitos de um Estado plurinacional; assim, o fato do poder público propiciar educação primária e superior em línguas indígenas, além de abarcar tradições, mitos e heróis desses povos, representaria um passo importante na consolidação de uma igualdade substantiva entre os diferentes povos bolivianos.
Quanto ao argumento recorrentemente utilizado pela direita boliviana, de que MAS e o discurso de afirmação indígena estariam dividindo a Bolívia, Álvaro García Linera responde que não é a plurinacionalidade que irá dividir o país: “Toda sociedade do mundo está dividida, a pergunta é como construimos unidade. Uma opção é a colonial, valorando um só em detrimento da diversidade. Mas é uma unidade imposta, falsa”, por outro lado, há opção que ele acredita ter sido tomada atualmente no pais, a opção pela “diversidade em igualdade de condições e em enriquecimento mútuo”.
Com esta exposição, Linera define o que seriam as bases do Estado plurinacional que foi instaurado na Bolívia após a promulgação da constituição em sete de março. Em primeiro lugar, um novo bloco popular nacional está no poder e diferentemente de todos os outros já existentes no país traz dentro de si a diversidade social, transferindo-a ao Estado. Isto se traduz no reconhecimento estatal a diferentes instituições como, por exemplo, a justiça comunitária, e a coexistencia destas com as já existentes. Sendo fundamental para este processo que o funcionalismo publico esteja apto a falar ao menos outra língua além do castelhano.
Segundo o vice-presidente, é a coexistencia de diferentes instituições que difere a constituição boliviana de outras que já reconhecem idiomas distintos e ou originários como a canadense, belga ou indiana. Para ele, a Bolívia está na vanguarda porque reconhece também a diversidade quanto à matrizes organizativas: “É uma constituiçao do século 21”, resume.
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/agencia/internacional/diversidade-em-igualdade-de-condicoes-uma-constituicao-do-seculo-21
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