Essa política pública anti-imigrante, inspirada na filosofia do Estado de Sítio, terminará deteriorando as debilitadas bases da convivência pacífica
Jubenal Quispe *
2 março 2009/Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br
“Senhor(a), boa noite, me apresenta seus documentos, por favor”, é a saudação sacramental que aterroriza aos imigrantes indocumentados nos espaços públicos de Madrid.
“Quando escutei dita saudação, fiquei gelada por um momento. Agachada, tentei convencer-me por um instante que não se dirigiam a mim. Mas não havia ninguém mais ao meu redor. Então, fui custodiada a passar a noite na prisão de Carabanchel e ganhei uma carta de expulsão”, comenta uma boliviana indocumentada, que trabalha em uma casa, de doméstica, cuidando de anciãos. “Fico com os idosos por cerca de 17 horas diárias, seis dias por semana e doze meses por ano, sem contrato, nem segurança social. Em troca, me pagam 650 euros mensais”, comenta a entrevistada. Ela faz parte dos 70% de bolivianos/as em situação de indocumentados na Espanha.
Enquanto isso ocorre, há dias saiu à luz pública a obrigatoriedade imposta aos policiais de cumprir com cotas de detenção de imigrantes. Um policial denunciava: “Estão nos obrigando deter uma determinada quantidade de imigrantes indocumentados nos diferentes municípios. Se cumprimos com as cotas, nos dão, como prêmio, dias livres”.
Na Espanha existem cerca de um milhão e meio de imigrantes indocumentados. Muitos deles ingressaram no país quando a demanda de trabalhadores se multiplicou de 12 a 20 milhões em questão de 13 anos (1994-2007, especialmente nos últimos anos). Então, se necessitavam de braços e pernas para mover a indústria nacional e o setor da construção. O controle policial nos aeroportos e nas fronteiras do sul, nesse momento, era só uma simulação.
Segundo o informe oficial do Escritório Econômico do Presidente, de 2006, “30% do crescimento do PIB da última década pode ser atribuído ao processo de imigração, e essa porcentagem se eleva até 50% se a análise se limita aos últimos cinco anos”. Aqui, a referência é só a economia formal. A exploração do imigrante na economia informal e nos serviços domésticos não entra nos dados contábeis do Estado. E são as trabalhadoras domésticas que mantêm o envelhecido Estado de Bem-Estar, agora em situação de mal estar, não só porque este não lhes paga seguro algum, senão porque cuidam, quase gratuitamente, de sua população envelhecida. Além disso, liberam a muitas mulheres espanholas das tarefas domésticas para que estas colaborem com o Estado. Será que expulsarão todas as trabalhadoras domésticas e todos os imigrantes indocumentados, com cujos trabalhos não pagos algumas empresas compensam suas perdas econômicas nestes tempos de crise?
Agora que a bolha do milagre da economia espanhola, baseada na fé no tijolo, se desinflou, a caça dos imigrantes indocumentados se constitui praticamente em uma política pública, sem a existência de uma justificativa ética ou coerência argumentativa.
Aqui não existe um mínimo de respeito aos direitos fundamentais reconhecidos na Constituição Política. Onde está o direito à livre locomoção que o Estado espanhol exige a seus similares do sul? Onde está o direito ao devido processo para os detidos nos Centros de Internamento para Estrangeiros? Por que os deixaram entrar no país se o Estado espanhol sabia que os do sul não vinham fazer turismo no norte? “Chamaram os imigrantes, com ou sem documentos, e os espremeram por igual, até convertê-los em dejetos sócio-trabalhistas. E, agora, a polícia persegue esses remanescentes do deficitário mercado trabalhista espanhol, buscando um prêmio ao melhor caçador. Você não acha que estamos diante de uma versão pós-moderna do circo romano? Onde está o Estado de Direito?
Essa política pública anti-imigrante, inspirada na filosofia do Estado de Sítio, terminará deteriorando as debilitadas bases da convivência pacífica. Se está atiçando o fogo da xenofobia contra o outro diferente e alimentando guetos étnicos na Espanha multicultural. Debaixo dessa lógica política, mais cedo ou mais tarde, a Europa desandará pelas históricas rotas da aniquilação.
Essa situação deveria preocupar a todos/as. Estamos assistindo à emergência de um Estado de exceção permanente. Um contexto no qual as garantias constitucionais são suprimidas e se concedem os direitos segundo as condições ideológicas, de origem, de gênero etc. Agora são os imigrantes, amanhã serão as mulheres, os bascos ou os catalãos. Aqui, não se reconhecem mais os direitos e as garantias das pessoas justamente por serem pessoas, mas sim com base em suas condições!
* Jubenal Quispe é advogado e ativista boliviano
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/espanha-2013-para-um-estado-de-sitio-permanente-com-os-imigrantes
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