Mario Wainfeld *
[ADITAL] Agência de Informação Frei Tito para a América Latina www.adital.com.br
25 junho 2008
Adital - Em conversa com Página/12, o presidente do Equador, Rafael Correa, falou de sua coalizão de oposição, o papel dos meios de comunicação e da banca. Da relação entre democracia e poderes de fato. De seu projeto socialista e de seus limites. Da dolarização e das remessas. Da relação com os países da região, com a Colômbia e os Estados Unidos. E de muito mais, até de um gol nos acréscimos.
Segue a íntegra da entrevista que Rafael Correa concedeu a Mario Wainfeld e que está publicada no Página/12, 22-06-2008. A tradução é do Cepat.
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O palácio Carondelet, a casa do governo, está encravada na Praça Grande, arquetípica praça colonial. Os pátios interiores são hispânicos e belos, transbordam de flores. A sala em que se realiza a entrevista é, como todo o seu entorno, senhorial. A madeira trabalhada lhe dá seu tom. Retratos de Simon Bolívar e do marechal Sucre. Rosas brancas, carnosas e aromáticas ornam a mesa em que se colocam os gravadores. A entrevista, experiência nova para o cronista, é filmada pelas equipes de comunicação do governo. Uma vez publicada no Página/12 poderá ser usada para difusão interna. Rafael Correa é um entrevistado amável e concentrado. Sua sedução se assenta na energia, na palavra. É cortês, cálido ao saudar, para nada bajulador. Olha fixo o repórter (e a câmara), seus olhos refletem mais suas sensações e suas ênfases que suas mãos.
- Quantos idiomas você fala, presidente?
Falo mais ou menos o espanhol, ainda não completamente bem. Arranho um pouco o francês. E algo, principalmente, em quéchua, entendo o quéchua.
- Fala bem o inglês.
Falo.
- O Senhor estudou na Europa e nos Estados Unidos. Continua a ter contato com seus ex-companheiros?
Sim.
- Se um deles o encontrar (os europeus, que são mais conceituais, ou os norte-americanos, que são mais empiristas) e lhe perguntar: "que tipo de presidentes é? Está mudando a Constituição, discute com os produtores de arroz e lhes diz que não podem exportar livremente se não garantirem antes o abastecimento e preços para o mercado local, disputa a renda do petróleo, tem conflitos com a grande imprensa", o que lhe dirá?
Que sou um idealista com os pés bem no chão. Apontamos para muito alto, sabemos para onde queremos ir, mas também somos muito pragmáticos. Sabemos negociar, sabemos tomar medidas, mas sem perder o norte. Esse norte: nós somos socialistas, queremos uma sociedade com mais justiça, queremos um país desenvolvido, desenvolvimento medido pela quantidade de pobres.
- O Senhor ganhou a eleição presidencial, convocou a Constituinte. E a ganhou com folga. Em setembro, haverá o referendo para aprovar ou não a Constituição. É necessária para a governabilidade e não é muito arriscado para sua legitimidade à seqüência de eleições e consultas?
A Constituição de 1998 representou a institucionalização do neoliberalismo. Seu economicismo era ridículo. Deu autonomia ao Banco Central. A Constituição é um marco da nossa revolução cidadã. Somos tremendamente democráticos. Perguntou-se ao povo se queria a Constituinte: o Sim foi rotundo, 82%, contra 11% do Não. Foram as eleições mais democráticas da história equatoriana. Garantiu-se equidade no acesso aos meios de comunicação. Garantiu-se equidade de gênero. Antes havia "alternância", mas os três primeiros candidatos eram homens, as três últimas mulheres ainda que nunca saíam. Hoje há um e um, temos uma Constituinte com 45% de mulheres. Os migrantes podem votar e ser escolhidos. Agora nos expomos ao referendo. A Constituição de 1998, que foi aceita tão alegremente, não foi submetida ao povo, a nossa sim.
- O senhor foi visto falando em linguagem muito simples nos atos, chegando a atos a cavalo, usando poncho. Isso é personalismo, caudilhismo?
Faço essas coisas porque as pessoas as buscam, é o que se tem que fazer. Não sou caudilhista, nem populista. Muitas vezes se confunde, na América Latina, ser popular com ser populista. Assim me ensinaram: ser técnico, não ser populista, é (na verdade) ser sadomasoquista. Quanto mais cruel se foi com as pessoas, mais técnico se foi com os pacotes. Mas não é assim: pode-se ser muito técnico, muito responsável e, ao mesmo tempo, ser popular porque as pessoas reconhecem a autenticidade e a entrega. Somos um governo muito popular, não populista.
- Eu o escutei dizer nesta semana que se as empresas petroleiras estão muito enojadas isso é uma boa notícia...
... diziam, como uma reclamação, "as empresas petroleiras estão incomodadas". Claro, muito simples: porque estamos fazendo bem as coisas. Se estivessem contentes, significaria que estaríamos correspondendo aos seus interesses.
- O peso dos poderes de fato é tão importante a ponto de obrigar a um conflito permanente com eles?
Talvez a minha maneira de ser exacerbe o conflito: sou irascível e frontal. Mas sejamos realistas: ganhar as eleições aqui não é ganhar o poder. Os poderes de fato continuam aí, muitos deles intactos. E a luta é para mudar essa relação de poder. A Constituição irá proibir que as empresas financeiras possuam outro tipo de empresa fora do sistema financeiro. Atualmente, dos sete canais nacionais de televisão, cinco são da banca. Você fala em regular a taxa de juro ou diminuir os custos dos serviços bancários... e verá que campanha fazem contra. Esse é um grande passo para mudar a correlação de forças. A força deve estar com a cidadania, as massas, a população, não os grupos de elite de sempre. Os poderes de fato não vão renunciar de forma tão submissa aos seus poderes de sempre. Você acredita que se eu fosse um presidente funcional ao status quo, a imprensa me trataria tão mal? Seria chefe, líder de meu governo se fosse funcional?
- Poderia discorrer para um leitor argentino como é o arco de sua oposição?
A partidocracia, os partidos tradicionais, foram destroçados. Acredita-se que não há oposição, mas isso é um grande erro. Pelo contrário, temos uma oposição muito forte que vem dos meios de comunicação. Como disse Ignacio Ramonet, eles são os cães de guarda do sistema econômico vigente. Na América Latina são os maiores defensores do status quo... Empresas que, sob o pretexto da liberdade de expressão, defendem seus interesses particulares. Claro que há exceções, honrosas exceções. Temos poderes econômicos, a banca que sabe que estamos tirando seus privilégios e estão conectados com os meios de comunicação. Temos certas câmaras da produção que são sucursais de partidos políticos, mas se fazem chamar grêmios empresariais. O grande capital. Lamentavelmente, há certos grupos de esquerda radical, intransigente, que sempre foram aliados da direita e do status quo. Com posturas infantis, ridículas: não pagamento da dívida externa, expulsão das empresas de petróleo... tudo ou nada. Que o último apague a luz. Tudo isso cria um importante arco de oposição. Um dos problemas deste país é que houve muitos grupos com capacidade de veto e nenhum grupo com capacidade de levar adiante uma gesta. Já houve, com 70% dos votos em todos os rincões da pátria nas últimas eleições. Mas esses grupos estão aí, com poder.
- Poderia mencionar uma meta geral e um objetivo expressado em números para o fim de seu mandato?
Temos alguns índices, estão no Plano Nacional de Desenvolvimento. Resolver o problema energético... Vamos por partes, já iniciamos quatro mega-projetos, vamos colocar em prática mais três. Até agora só se havia construído um. Essa é a revolução cidadã. Temos metas claras em nutrição, educação... No próximo ano esperamos declarar o Equador país livre de analfabetismo. Talvez possamos consegui-lo um pouco antes.
- A integração regional é possível hoje com a marca dos enfrentamentos históricos, a balcanização?
Bem provável; bem viável. Lamentavelmente, aconteceu este conflito Colômbia-Equador, por culpa da Colômbia, mas comparativamente este é o período com menor quantidade de conflitos que houve na América Latina, sobretudo na América do Sul. Há mais vontade integracionista. O desafio é que essa integração se concretize em fatos de benefício para a população.
A bandeira é tradicional e justa. Mas foi de difícil translação à cooperação e à integração econômica. Advertem-se sintonias similares em diferentes figuras políticas...
Houve uma mudança de época. Governos progressistas, empatia entre presidentes e decisão política, com vocação integracionista de cunho novo. Não aquilo que se viu nos anos 1990, onde queriam nos converter num grande mercado. Queremos converter-nos numa grande nação.
- Qual é a situação atual com a Colômbia, depois da agressão internacional de meses atrás?
Somos os agredidos, nós temos que fixar os tempos. Damos um passo, fixar as relações a nível de encarregados de negócios. Temos uma fronteira muito quente, é bom ter comunicação fluida. Mas, para estabelecer relações plenas, vamos exigir que o ataque seja plenamente esclarecido. As bombas eram norte-americanas e, de acordo com os relatórios das nossas Forças Armadas, não podem ter sido jogadas por aviões colombianos. Três dos feridos, segundo relatórios forenses, com muita probabilidade foram executados. O cidadão equatoriano que morreu aí foi por coronhadas no pescoço e não por tiros nem bombas.
- Qual é a relação do governo do Equador e de seu presidente com as FARC?
Nunca conheci alguém da FARC. Isso indigna: nos agridem, caluniam e temos que nos justificar.
- Até que ponto pode o Equador controlar, em termos militares, essa fronteira?
Impossível. É uma fronteira muito porosa. Nem os Estados Unidos conseguem controlar a passagem de imigrantes por suas fronteiras e estão construindo um muro. E aí não há floresta. Aqui há 400, 500 quilômetros de floresta amazônica. O mundo tem que entender que o problema não é o Equador, mas a Colômbia. E que cada vez que uma patrulha da FARC se infiltra no Equador, significa que veio da Colômbia. Nós temos 13 postos militares na fronteira, quando necessitaríamos (em tempos de paz) da quarta parte. A Colômbia tem dois. A estratégia da Colômbia é resolver o problema desguarnecendo sua fronteira sul, querem nos imiscuir na questão.
- A hipótese é que o Equador é uma espécie de parede...
É a estratégia do yanqui: eles atacam de norte a sul, deixam desguarnecida sua fronteira sul para que nós façamos o gasto. Isso também indigna. Sabe quantos refugiados colombianos temos no país? Quatrocentos mil colombianos, 16.000 com status de refugiados, e há muito mais solicitações. O problema não é com o povo colombiano, mas com Uribe.
- Há uma base militar norte-americana no Equador. O Senhor anunciou que no ano que vem não renovará o tratado. Não sou especialista em geopolítica, mas gostaria de apostar algo que essa base será deslocada para um país limítrofe. Seu governo analisa essa possibilidade?
Não nos interessa. Em 2009 termina esse tratado infame que o governo entreguista de (o ex-presidente Jamil) Mahuad assinou sem receber nada em troca. Soberania é não ter soldados estrangeiros em solo pátrio. Que se vão a um país limítrofe. É problema deles.
Uma das atuais vantagens da região, como você diz, é a relativa paz. Tenho a impressão de que houve outra, a partir do 11 de setembro de 2001: uma atenção menor dos Estados Unidos sobre a região, por seu interesse maior no Oriente Médio. Essa falta de centralidade, talvez, nos favoreceu.
Também penso assim. E mais: a política de (George) Bush foi tão torpe na região que acabou nos favorecendo. Temos muito a agradecer aos governos progressistas, eles nos ajudaram muito.
- Pensa que o novo governo será diferente? Pode haver diferenças se o novo presidente for McCain ou Obama?
Imagino que um presidente democrata poderia ser diferente. Mas, a América deve contar com sua própria força. É até certo ponto de vista irrisório o quanto os Estados Unidos vão mudar. Que não será muito.
- Certa vez um atual funcionário argentino, que o conhece bem, me disse: "Rafael Correa é um filho de classe média, católico praticante, de formação universitária que se lançou na política. Aqui, nos anos 70, teria sido da Juventude Peronista". Disseram-lhe algo assim?
(Ri) Nunca me disseram isso. Eu admiro muito o Perón e o movimento peronista... Agora, sou mais de esquerda que os peronistas.
Você pode encontrar peronistas em qualquer lugar do espectro político...
Mas houve e há alguns peronistas de direita.
- Acredito. Agradeço-lhe e deixo a última palavra, se quiser comunicar algo mais ao leitor argentino.
Apenas que da próxima vez terminem o jogo aos 45 minutos e não aos 49 (risos).
- Mas os acréscimos fazem parte do tempo legal de jogo, presidente.
Mas não quatro minutos... (risos).
* Periodista de Página/12
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