14 abril
2016, Plataforma Politica Social http://plataformapoliticasocial.com.br
(Brasil)
Eduardo Fagnani*
O aprofundamento das políticas econômicas
de “austeridade” pós-golpe requer a radical supressão de direitos sociais e
trabalhistas. Nesse caso, um dos focos é acabar com a cidadania social
conquistada pela Constituição de 1988, marco do processo civilizatório
brasileiro.
O objetivo de construir uma sociedade
civilizada, democrática e socialmente justa deveria ser um dos núcleos de um
projeto nacional. A Constituição de 1988 representa um marco do processo
civilizatório do país. Pela primeira vez em mais de cinco séculos, ela
assegurou formalmente a cidadania plena (direitos civis, políticos e sociais)
para todos os brasileiros. O novo ciclo democrático inaugurado por ela,
associado aos avanços sociais obtidos na década passada, contribuiu para a
melhoria do padrão de vida da população, especialmente dos mais pobres.
Não obstante, o Brasil continua sendo um
dos países mais desiguais do mundo. Essa marca tem raízes históricas ditadas
pela industrialização tardia, pela curta e descontinuada experiência
democrática e, especialmente, pelo longo passado escravocrata, cujo legado foi
uma massa de analfabetos sem cidadania. Em pleno século XXI, o país
ainda não
foi capaz sequer de enfrentar desigualdades históricas herdadas de mais de três
séculos de escravidão. Observe-se que, segundo estudo da ONU, a pobreza no
Brasil tem cor: mais de 70% das pessoas vivendo em extrema pobreza no país são
negras; 64% delas não completam a educação básica; 80% dos analfabetos
brasileiros são negros; os salários médios dos negros são 2,4 vezes mais baixos
que o dos brancos. No Rio de Janeiro, 80% das vítimas de homicídios resultantes
de intervenções policiais são negras. A taxa de assassinatos de mulheres também
tem clara dimensão racial. Entre 2003 e 2013, o assassinato de mulheres brancas
caiu 10%; no mesmo período, o de negras subiu 54%.1
Segundo o Mapa da Violência, o Brasil ocupa
o terceiro lugar, entre 85 países, no ranking de mortes de adolescentes. São
54,9 homicídios para cada 100 mil jovens de 15 a 19 anos, atrás apenas de
México e El Salvador. A taxa brasileira é 275 vezes maior do que a de países
como Áustria e Japão. Em média, dez adolescentes são assassinados por dia. O
assassinato de jovens também tem cor. Morrem proporcionalmente sete negros para
cada branco. No Maranhão morrem treze negros para cada branco.2
Nessas condições, o primeiro objetivo
estratégico de um projeto civilizatório deveria ser enfrentar essas profundas
desigualdades históricas. Em segundo lugar, preservar a inclusão social recente
e aprofundar a cidadania social assegurada pela Constituição de 1988. Em
terceiro, enfrentar as brutais desigualdades da renda, o que exige medidas voltadas
para a revisão da estrutura tributária, a melhor distribuição da propriedade
urbana e rural e a correção das desigualdades no mercado de trabalho. Quarto
objetivo: universalizar a cidadania social, pelo enfrentamento do déficit na
oferta de serviços sociais públicos, que combina desigualdades no acesso entre
classes sociais e entre regiões do país.
A criação de uma sociedade mais igualitária
requer que a gestão macroeconômica crie um ambiente favorável para o objetivo
de longo prazo de reduzir continuamente a desigualdade. O progresso material é
vital para a melhoria generalizada das condições de vida da população. O
crescimento continuado da produção e da renda é condição necessária para a
estruturação do mundo do trabalho e a ampliação do bem-estar social.
Não obstante, o arcabouço institucional
adotado pelos organismos internacionais desde os anos 1990, consubstanciado no
chamado “tripé” macroeconômico, não converge para esses propósitos, pois visa
unicamente preservar a riqueza financeira. A revisão desse arcabouço vem sendo
introduzida por diversos países antes mesmo da crise internacional de 2008; e a
própria ortodoxia internacional já o trata como o “velho consenso”. Mas, aqui
no Brasil, o “tripé” macroeconômico, introduzido em 1999, tornou-se ideia fixa.
Qualquer crítica é considerada herética pelos ditadores do debate econômico
nacional.
Fortalecer a indústria também é condição
necessária para avançar no processo civilizatório. A experiência internacional
ensina que nenhum país se tornou desenvolvido sem uma indústria forte e
competitiva. Também seria necessário fortalecer a capacidade de financiamento
do Estado. Há espaço para avançar na reforma tributária, na revisão dos
incentivos fiscais e no combate à sonegação. Taxas de juros estratosféricas
ampliam continuamente as despesas financeiras, transferem renda para os mais
ricos e enfraquecem a capacidade financeira dos governos para atuar em favor da
redução das desigualdades.
Não existem perspectivas favoráveis para a
construção de uma sociedade mais igualitária se esse projeto não for pensado na
perspectiva da democracia. O contínuo aperfeiçoamento da democracia exige a
reforma do sistema representativo, monopolizado pelos partidos e capturado pelo
poder econômico. A mercantilização do voto e a ausência de partidos
programáticos impõem limites ao presidencialismo de coalizão, tornando qualquer
governo refém de interesses corporativos e fisiológicos. Essa é a raiz da
corrupção generalizada do sistema político-partidário, que expõe as fraturas do
modelo herdado do pacto conservador na transição para a democracia.
A criação de uma sociedade mais igualitária
também requer o reforço do papel do Estado. Não há na história econômica do
capitalismo nenhum caso de país que tenha se desenvolvido sem o concurso
expressivo de seu Estado nacional. A democracia depende da pluralidade de
ideias e, nesse sentido, é fundamental garantir que os meios de comunicação
sejam o esteio de um debate plural sobre os problemas do Brasil e suas
soluções, aprendendo com as lições de diversos países capitalistas
desenvolvidos (Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Espanha e
Portugal, entre outros).
Repetindo 1954, 1961 e
1964
A crença nessa utopia foi possível desde a
redemocratização dos anos 1980 até poucos anos atrás. Hoje somos devastados por
uma sensação opressiva. A iminência de um golpe institucional – pois não há
evidência de crime de responsabilidade cometido pela mandatária do país – e a
ascensão ilegítima ao poder de representantes dos detentores da riqueza poderão
convulsionar o país e aprofundar a captura e o restrito controle do Estado por
parte desses setores. O golpe na democracia vem acompanhado pelo impeachmentda
cidadania social. Trata-se de nova oportunidade para promover radical mudança na
correlação de forças em benefício exclusivo do poder das finanças.
Nos últimos sessenta anos, a sociedade
brasileira mudou para melhor. Mas as elites ainda adotam práticas dos anos 1950
e 1960. Continuam sendo “predatórias” e “incapazes de viver com o antagônico”.
Como em 1964, “elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e
não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem para sua
destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo”.3
Às vésperas do segundo turno das eleições
de 2014, um prócer da elite antidemocrática deu a senha do que viria a seguir.
Repetiu em sua conta no Twitter4 a célebre frase de Carlos Lacerda,
referindo-se a Getúlio Vargas: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito.
Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”.
Na verdade, a trama começou a ser tecida
após as manifestações populares de 2013. Os oposicionistas foram sábios em
“federalizar” a insatisfação popular contra a falência generalizada do sistema
de representação política herdado do pacto conservador da transição para a
democracia e as crônicas deficiências na oferta de serviços sociais, cuja
responsabilidade é constitucionalmente compartilhada com governadores e
prefeitos.
Em 2014, o “terrorismo” econômico
encarregou-se de descontruir a gestão macroeconômica, com o objetivo de
enfraquecer a candidatura oficial. A vitória da situação poderia representar
mais doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores. O fantasma de Lula em 2018
voltava a assustar, sendo imperativo vencer o pleito eleitoral. Economistas
liberais, setores do mercado e a grande imprensa passaram a atribuir a perda do
dinamismo econômico exclusivamente aos “excessos da intervenção” estatal,
olvidando por completo a grave crise do capitalismo global em decorrência da
debaclefinanceira de 2008 e seus desdobramentos. Na realidade, apesar de
apresentar certa deterioração de alguns indicadores, o Brasil não apresentava,
em nenhum aspecto considerado, um cenário de “crise terminal”, como foi
difundido.5
Apesar das manobras, Dilma Rousseff venceu
e tomou posse. Urgia, então, impedir a continuidade do governo ou sangrá-lo até
as próximas eleições, para destruir o legado social dos governos petistas e
ampliar a insatisfação popular dos mais pobres e das camadas médias, requisitos
para fomentar as ações desestabilizadoras no front político-institucional. Esse
ato foi encenado logo após outubro de 2014 e ao longo de 2015, paradoxalmente,
contando com a ajuda do próprio governo, que adotou o programa econômico dos
derrotados. O ato final poderá ser consumado nos próximos dias.
O Plano Temer
Em meados de 2015, em meio às tramas
golpistas e antidemocráticas, o vice-presidente da República, Michel Temer,
lançou seu programa de governo (“Uma Ponte para o Futuro”)6 e passou a montar o
novo gabinete. O documento, que radicaliza e aprofunda o projeto liberal para o
Brasil, propõe a “formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou
circunstancial”, em torno das propostas apresentadas. Contando com a
colaboração de diversos economistas liberais, a iniciativa recebeu amplo apoio
de parlamentares de diversos partidos da oposição, empresários e setores da
mídia.
Num contexto em que a democracia poderá já
ter sido violentada, a gestão macroeconômica será ainda mais ortodoxa. Armínio
Fraga, um dos mentores da política econômica do “Programa Temer”, foi o
coordenador do programa econômico de Aécio Neves em 2014. Naquela época,
receitava “a defesa da volta do tripé como fio condutor da política econômica”,
bem como a necessidade de reduzir a meta de inflação dos atuais 4,5%, um forte
ajuste fiscal, a redução do intervencionismo do governo, a recuperação do
câmbio flutuante para recompor o tripé e a autonomia jurídica do Banco
Central.7 Recentemente, afirmou que “o Brasil precisa é de um ajuste enorme”,
muito superior ao realizado na primeira administração Lula e pelo ministro
Joaquim Levy. “Deveríamos ter uma meta de redução de 25 pontos percentuais do
PIB da dívida bruta em alguns anos. E também deveríamos dobrar o grau de
abertura em certo horizonte de tempo. São objetivos factíveis”, afirmou. Além
disso, serão necessárias “reformas amplas e profundas”, com destaque para a
reforma da Previdência e a desvinculação dos ajustes em relação ao salário
mínimo e das fontes de financiamento das políticas sociais. “Nosso orçamento
deveria ser 100% desvinculado, desindexado, forçando uma reflexão do Estado que
queremos e podemos ter. Uma espécie de orçamento de base zero.”8
O aprofundamento das políticas econômicas
de “austeridade” requer a radical supressão de direitos sociais e trabalhistas.
Nesse caso, um dos focos é acabar com a cidadania social conquistada pela
Constituição de 1988, marco do processo civilizatório brasileiro. Abre-se uma
nova oportunidade para que esses setores concluam o serviço que vêm tentando
fazer desde a Assembleia Nacional Constituinte.
A surrada tese ideológica do “país
ingovernável” – sacada pelo então presidente José Sarney (1985-1990), num
último gesto desesperado para evitar que a cidadania social fosse incluída na
Carta Magna – voltou a ditar o rumo do debate imposto pelos representantes do
mercado que conseguiram criar o “consenso” de que estabilizar a dinâmica da
dívida pública requer a mudança no “contrato social da redemocratização”.
Argumentam que os gastos “obrigatórios” (Previdência Social, assistência
social, saúde, educação, seguro-desemprego, entre outros) têm crescido num
ritmo que compromete as metas fiscais. Para eles, a crise atual decorre
fundamentalmente da trajetória “insustentável” de aumento dos gastos públicos
desde 1993, por conta dos direitos sociais consagrados pela Carta de 1988.9
Argumentam ainda que os juros elevados praticados no Brasil decorrem da “baixa
poupança” do governo. Esta, por sua vez, é fruto da existência de “sociedades
que provêm Estado de bem-estar social generoso com diversos mecanismos públicos
de mitigação de riscos”.10A visão de que “o Estado brasileiro não cabe no PIB”
também tem sido sentenciada por diversos representantes desse matiz.11
Em consonância com o “Plano Temer”,
levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar
(Diap) aponta que tramitam no Congresso Nacional 55 projetos de lei e propostas
de emenda constitucional que suprimem direitos sociais e trabalhistas, reduzem
o papel do Estado e aprofundam mecanismos de controle fiscal.12
Depois do golpe
Faz parte da narrativa dos oposicionistas
que, após o impeachment, haverá uma trégua política, condição necessária para a
reorganização da economia. Difícil acreditar nessa possibilidade. Em primeiro
lugar, porque falta legitimidade aos que serão “eleitos” pela manobra. Falta,
sobretudo, legitimidade ética, pois praticamente todos os futuros mandatários
da República – a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados e o do Senado
Federal, o aspirante a presidente da República, a maioria de seus apoiadores,
grande parte dos parlamentares que integram a comissão de impeachment e aqueles
que decidirão pela cassação no plenário – parecem estar envolvidos com algum
“malfeito” no uso do dinheiro público. Em segundo lugar, as elites financeiras,
políticas e midiáticas erram ao pressupor que a sociedade brasileira no século
XXI é a mesma de meados do século passado. Ledo engano. Não somos mais um país
agrário com uma sociedade politicamente desorganizada. Portanto, como aponta
Safatle, a crença na trégua pós-impeachmenté falsa,“e os operadores do próximo
Estado Oligárquico de Direito sabem disto muito bem”.13
O mais provável é o acirramento dos ânimos,
da intolerância, da fratura ainda maior da sociedade e da luta de classes que
está nas ruas. A governabilidade do país poderá depender de um Estado policial
ainda mais severo que o utilizado em 1964. Agora, não basta intervir nos
sindicatos.
O impeachment do processo civilizatório em
pleno século XXI aí está, como que para comprovar que a democracia e a
cidadania social são pontos fora da curva do capitalismo brasileiro. São corpos
estranhos que os “capitalistas” nacionais ainda não aprenderam a usar, nem sequer
em benefício de si mesmos.
* – Eduardo Fagnani é
professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de
Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).
1
Ver: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,politicas-de-igualdade-racial-fracassaram-no-brasil–afirma-onu,10000021133
2
www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
3
Maria Aparecida de Aquino, “Elite golpista e antidemocrática”, Brasil de Fato,
1º abr. 2015. Disponível em: www.brasildefato.com.br/node/31711
4
Ver em: https://twitter.com/jose_anibal/status/524697787116830721?lang=pt
5
Ver:
http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2015/09/porumbrasiljustoedemocratico-vol-01.pdf>,
p.18-39
6
Disponível em:
http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf
7
Ver em:
www.valor.com.br/eleicoes2014/3662186/conselheiros-de-aecio-e-marina-convergem-em-politica-economica
8
Ver em:
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,arminio-fraga-diz-que-ajuste-fiscal-atual-e-insuficiente,1795807
9
Ver: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/226576-ajuste-inevitavel.shtml
10 Ver:
www.valor.com.br/arquivo/893219/duas-rotas-que-levam-reducao-da-taxa-de-juros
11 Ver:
www.evernote.com/shard/s161/sh/fde65c1a-acd6-4b37-ab0f-603e9520f872/af64f4a075b1e39f0a682017402bb7d8
12 Ver:
www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2016/03/levantamento-do-diapmostra-55-ameacas-a-direitos-em-tramitacao-no-congresso-8382.html
13 Ver:
www.viomundo.com.br/politica/vladimir-safatle-congresso-gangsterizado-nao-tem-legitimidade-para-julgar-sequer-sindico-de-predio.html
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