Glenn Greenwald, Andrew Fishman, David Miranda
(atualização abaixo)
A CÂMARA DOS DEPUTADOS do Brasil votou a favor da admissibilidade do
impeachment da presidente do país, Dilma Rousseff, encaminhando o processo de
afastamento para o Senado. Em um ato simbólico, o membro da casa que deu o voto
favorável nº 342, mínimo para admitir o processo, foi o deputado Bruno Araújo, mencionado em um documento que demonstra que ele teria recebido fundos ilegais
de uma das principais empreiteiras envolvidas no atual escândalo de corrupção
do país. Além disso, Araújo pertence ao partido de centro-direita PSDB, cujos candidatos
perderam quatro eleições seguidas contra o PT, de esquerda moderada, partido de
Rousseff, sendo a última delas há apenas 18 meses atrás, quando 54 milhões de brasileiros votaram pela
reeleição de Dilma como presidente.
Esses dois fatos sobre
Araújo sublinham a natureza surreal e sem precedentes do processo que ocorreu
ontem em Brasília, capital do quinto maior país do mundo. Políticos e partidos
que passaram duas décadas tentando — e fracassando — derrotar o PT em eleições
democráticas encaminharam triunfalmente a derrubada efetiva da votação de 2014,
removendo Dilma de formas que são, como o relatório do The New York Times de hoje deixa
claro, na melhor das
hipóteses, extremamente duvidosas. Até mesmo a revista The Economist, que há tempos tem desprezado o PT e seus programas
de combate à pobreza e recomendou a renúncia de Dilma, argumentou que “na falta da prova de um crime, o impeachment é
injustificado” e “parece apenas um pretexto para expulsar um presidente
impopular.”
Os processos de
domingo, conduzidos em nome do combate à corrupção, foram presididos por um dos
políticos mais descaradamente corruptos do mundo democrático, o presidente da
Câmara Eduardo Cunha (em cima, ao centro) que teve milhões de dólares sem
origem legal recentemente descobertos em contas secretas na Suíça, e que mentiu sob juramento ao negar, para os investigadores no Congresso, que
tinha
contas no estrangeiro. O The Globe and Mail noticiou ontem dos 594 membros da Câmara, “318 estão sob investigação
ou acusados” enquanto o alvo deles, a presidente Dilma, “não tem nenhuma
alegação de improbidade financeira”.
Um por um, legisladores
manchados pela corrupção foram ao microfone para responder a Cunha, votando
“sim” pelo impeachment enquanto afirmavam estarem horrorizados com a corrupção.
Em suas declarações de voto, citaram uma variedade de motivos bizarros, desde “os fundamentos do cristianismo” e “não sermos
vermelhos como a Venezuela e Coreia do Norte” até “a nação evangélica” e “a paz
de Jerusalém”. Jonathan Watts, correspondente do The Guardian, apanhou alguns pontos da farsa:
Sim, votou Paulo Maluf,
que está na lista vermelha da Interpol por conspiração. Sim, votou Nilton Capixaba, que é acusado de lavagem
de dinheiro. “Pelo amor de Deus, sim!” declarou Silas Câmara, que está sob
investigação por forjar documentos e por desvio de dinheiro público.
É muito provável que o
Senado vá concordar com as acusações, o que resultará na suspensão de 180 dias
de Dilma como presidente e a instalação do governo pró-negócios do
vice-presidente, Michel Temer, do PMDB. O vice-presidente está, como o The New York Times informa, “sob alegações de estar envolvido em um esquema de
compra ilegal de etanol”. Temer recentemente revelou que um dos principais
candidatos para liderar seu time econômico seria o presidente do Goldman Sachs no Brasil, Paulo Leme.
Se, depois do
julgamento, dois terços do Senado votarem pela condenação, Dilma será removida
do governo permanentemente. Muitos suspeitam que o principal motivo para o
impeachment de Dilma é promover entre o público uma sensação de que a corrupção
teria sido combatida, tudo projetado para aproveitar o controle recém adquirido
de Temer e impedir maiores investigações sobre as dezenas de políticos realmente corruptos que
integram os principais partidos.
OS ESTADOS UNIDOS têm permanecido notavelmente silenciosos sobre esse
tumulto no segundo maior país do hemisfério, e sua postura mal foi debatida na
grande imprensa. Não é difícil ver o porquê. Os EUA passaram anos negando
veementemente qualquer papel no golpe militar de 1964 que removeu o governo de
esquerda então eleito, um golpe que resultou em 20 anos de uma ditadura brutal
de direita pró-EUA. Porém, documentos secretos e registros surgiram, comprovando que os EUA auxiliaram ativamente no planejamento do golpe, e o relatório da Comissão da Verdade de 2014 no país trouxe informações de que os EUA e o Reino Unido apoiaram agressivamente
a ditadura e até mesmo “treinaram interrogadores em técnicas de tortura.”
O golpe e a ditadura militar apoiadas pelos
EUA ainda pairam sobre a controvérsia atual. A presidente Rousseff e seus
apoiadores chamam explicitamente de golpe a tentativa de removê-la. Um deputado
pró-impeachment de grande projeção e provável candidato à presidência, o
direitista Jair Bolsonaro (que teve seu perfil traçado por The
Intercept no ano passado), elogiou ontem explicitamente a ditadura
militar e homenageou o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe de tortura da ditadura (notavelmente
responsável pela tortura de Dilma). Filho de Bolsonaro, Eduardo, também na
casa, afirmou que estava dedicando seu voto pelo impeachment “aos militares de ’64”: aqueles que
executaram o golpe e impuseram o poder militar.
A invocação incessante
de Deus e da família pelos que propuseram o impeachment, ontem, lembrava o lema do golpe de 1964: “Marcha da Família com Deus pela Liberdade.” Assim
como os veículos de comunicação controlados por oligarquias apoiaram o golpe de 1964, como uma medida necessária contra a corrupção da
esquerda, eles estiveram unificados no apoio e na incitação do atual movimento
de impeachment contra o PT, seguindo a mesma lógica.
Por anos, o
relacionamento de Dilma com os EUA foi instável, e significativamente afetado
pelas declarações de denúncia da presidente à espionagem da NSA, que atingiu a
indústria brasileira, a população e a presidente pessoalmente, assim como as
estreitas relações comerciais do Brasil com a China. Seu antecessor, Lula da
Silva, também deixou de lado muitos oficiais norte-americanos quando, entre
outras ações, juntou-se à Turquia para negociar um acordo independente com o
Irã sobre seu programa nuclear, enquanto Washington tentava reunir pressão
internacional contra Teerã. Autoridades em Washington têm deixado cada vez mais claro que não veem mais o Brasil como seguro para o
capital.
Os EUA certamente têm
um longo — e recente — histórico de criar instabilidade e golpes contra os
governos de esquerda Latino-Americanos democraticamente eleitos que o país
desaprova. Além do golpe de 1964 no Brasil, os EUA foram no mínimo coniventes
com a tentativa de depor o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em 2002; tiveram papel central na destituição do presidente do Haiti, Jean-Bertrand
Aristide em 2004; e a então Secretária
de Estado, Hillary Clinton, prestou apoio vital para legitimar o golpe 2009 em Honduras, apenas para
citar alguns exemplos.
Muitos na esquerda brasileira acreditam que os EUA estão planejando ativamente a instabilidade
atual no país com o propósito de se livrar de um partido de esquerda que se
apoiou fortemente no comércio com a China, e colocar no lugar dele um governo
mais favorável aos EUA que nunca poderia ganhar uma eleição por conta própria.
EMBORA NÃO TENHA surgido nenhuma evidência que comprove essa teoria, uma viagem aos EUA, pouco divulgada, de um dos principais líderes da oposição brasileira
deve provavelmente alimentar essas preocupações. Hoje — o dia seguinte à votação
do impeachment — o Sen. Aloysio Nunes do PSDB estará em Washington para
participar de três dias de reuniões com várias autoridades norteamericanas,
além de lobistas e pessoas influentes próximas a Clinton e outras lideranças
políticas.
O Senador Nunes vai se
reunir com o presidente e um membro do Comitê de Relações Internacionais do
Senado, Bob Corker (republicano, do estado do Tennessee) e Ben Cardin
(democrata, do estado de Maryland), e com o Subsecretário de Estado e
ex-Embaixador no Brasil, Thomas Shannon, além de comparecer a um almoço promovido pela
empresa lobista de Washington, Albright Stonebridge Group, comandada pela
ex-Secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright e pelo ex-Secretário de
Comércio de Bush e ex-diretor-executivo da empresa Kellogg, Carlos Gutierrez.
A Embaixada Brasileira
em Washington e o gabinete do Sen. Nunes disseram ao The Intercept que não tinham maiores informações a respeito do
almoço de terça-feira. Por email, o Albright Stonebridge Group afirmou que o
evento não tem importância midiática, que é voltado “à comunidade política e de
negócios de Washington”, e que não revelariam uma lista de presentes ou
assuntos discutidos.
Nunes é uma figura da oposição extremamente
importante — e reveladora — para viajar aos EUA para esses encontros de alto
escalão. Ele concorreu à vice-presidência em 2014 na chapa do PSDB que perdeu
para Dilma e agora passa a ser, claramente, uma das figuras-chave de oposição
que lideram a luta do impeachment contra Dilma no Senado.
Como presidente da
Comissão de Relações e Defesa Nacional do Senado, Nunes defendeu repetidas vezes que o Brasil se aproxime de uma aliança com os EUA e o Reino
Unido. E — quase não é necessário dizer — Nunes foi fortemente apontado em denúncias de corrupção; em setembro, um juiz ordenou uma investigação
criminal após um informante, um executivo de uma empresa de construção,
declarar a investigadores ter oferecido R$ 500.000 para financiar sua campanha
— R$ 300.000 enviados legalmente e mais R$ 200.000 em propinas ilícitas de
caixa dois — para ganhar contratos com a Petrobras. E essa não é a primeira acusação do tipo contra ele.
A viagem de Nunes a
Washington foi divulgada como ordem do próprio Temer, que está agindo como se já governasse o Brasil. Temer está furioso com o que ele considera uma
mudança radical e altamente desfavorável na narrativa internacional, que tem
retratado o impeachment como uma tentativa ilegal e anti-democrática da
oposição, liderada por ele, para ganhar o poder de forma ilegítima.
O pretenso presidente
enviou Nunes para Washington, segundo a Folha, para lançar uma “contraofensiva de relações
públicas” e combater o aumento do sentimento anti-impeachment ao redor do
mundo, o qual Temer afirma estar “desmoraliz[ando] as instituições
brasileiras”. Demonstrando preocupação sobre a crescente percepção da tentativa
da oposição brasileira de remover Dilma, Nunes disse, em Washington, “vamos
explicar que o Brasil não é uma república de bananas”. Um representante de
Temer afirmou que essa percepção “contamina a imagem do Brasil no exterior”.
“É uma viagem de
relações públicas”, afirma Maurício Santoro, professor de ciências políticas da
UFRJ, em entrevista ao The Intercept. “O desafio mais importante que Aloysio enfrenta não
é o governo americano, mas a opinião pública dos EUA. É aí que a oposição está
perdendo a batalha”.
Não há dúvida de que a
opinião internacional se voltou contra o movimento dos partidos de oposição
favoráveis ao impeachment no Brasil. Onde, apenas um mês atrás, os veículos de
comunicação da mídia internacional descreviam os protestos contra o governo nas
ruas de forma gloriosa, os mesmos veículos agora destacam diariamente o fato de
que os motivos legais para o impeachment são, no melhor dos casos, duvidosos, e
que os líderes do impeachment estão bem mais envolvidos com a corrupção do que
Dilma.
Temer, em particular,
estava abertamente preocupado e furioso com a denúncia do impeachment pela Organização de Estados Americanos, apoiada pelo
Estados Unidos, cujo secretário-geral, Luis Almagro, disse que estava
“preocupado com [a] credibilidade de alguns daqueles que julgarão e decidirão o
processo” contra Dilma. “Não há nenhum fundamento para avançar em um processo
de impeachment [contra Dilma], definitivamente não”.
O chefe da União das
Nações Sul-Americanas, Ernesto Samper, da mesma forma, disse que o impeachment é “um motivo de séria preocupação
para a segurança jurídica do Brasil e da região”.
A viagem para
Washington dessa figura principal da oposição, envolvida em corrupção, um dia
após a Câmara ter votado pelo impeachment de Dilma, levantará, no mínimo,
dúvidas sobre a postura dos Estados Unidos em relação à remoção da presidente.
Certamente, irá alimentar preocupações na esquerda brasileira sobre o papel dos
Estados Unidos na instabilidade em seu país. E isso revela muito sobre as
dinâmicas não debatidas que comandam o impeachment, incluindo o desejo de
aproximar o Brasil dos EUA e torná-lo mais flexível diante dos interesses
das empresas internacionais e de medidas de austeridade, em detrimento da
agenda política que eleitores brasileiros abraçaram durante quatro eleições
seguidas.
ATUALIZAÇÃO: Antes desta publicação, o gabinete do Sen. Nunes
informou ao The Intercept que não tinha mais informações sobre a viagem dele à
Washington, além do que estava escrito no comunicado de imprensa, que data de 15 de abril. Subsequente à publicação, o
gabinete do Senador nos indicou informação publicada no Painel do Leitor (Folha de S. Paulo, 17.04.2016) onde Nunes afirma — ao contrário da
reportagem do jornal — que a ligação do vice-presidente Temer não foi o motivo
para sua viagem a Washington.
Traduzido por: Beatriz Felix, Patricia Machado e Erick
Dau
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