10 abril 2016, Outras Palavras
http://outraspalavras.net (Brasil)
Por Cristina Fróes de Borja Reis, Fernanda
Graziella Cardoso e Vitor Eduardo Schincariol
Ainda é preciso fazer muito por um Brasil
democrático, sem fome e sem miséria. Mas a pequenez dos argumentos pelo
impeachment demonstra como está viva a luta de classes
22 milhões de brasileiros, 10% da população, saíram da extrema pobreza
entre 2011 e 2014, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas): 3,1
milhões da região Norte, 13,8 milhões do Nordeste, 3,5 milhões do Sudeste, 1
milhão do Sul e 0,7 milhão do Centro-Oeste. Em 2014 o Brasil finalmente
não estava no mapa da fome mundial da FAO.
A libertação de uma vida de privações é um direito humano fundamental, e
não pode ser tratada como mera estatística. É injusto tamanho êxito ser
esquecido ou diminuído por argumentos de menor relevância ou que desvelam um
desprezo que não pode ser outro senão fruto de perda de espaço na luta de
classes: “mas gerou inflação”, “mas não se sustenta”, “só pra ganhar votos”,
“mas não ensina a pescar”, “à custa de quem trabalha de verdade”, “inclui um
monte de malandro que forja dados para receber o benefício”, “mas causa desvio
de verbas e corrupção”, “ainda temos muitos problemas”.
Essas reações nem fazem cócegas à retumbância social e política da
redução do sofrimento de milhões de adultos e crianças, que deixaram de ter
fome e saíram da miséria, atingindo, porém, uma condição melhor de vida que é
ainda dezenas de vezes mais difícil do que à daquela minoria da população que
detém mais da metade da
riqueza nacional. Segundo dados da ONU, em 2014 os 20%
mais ricos concentravam cerca de 60% da renda nacional. Outras conquistas são
notáveis, como a redução da parcela da população pobre de 22,3% a 7,3% do total
entre 2004 e 2014, a matrícula de 98,5% do total de crianças de 6 a 14 anos na
escola em 2014, a redução significativa da mortalidade infantil e da
mortalidade materna após o parto. Todas essas metas constitutivas dos Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (ODMs).
Os 22 milhões têm de ser lembrados, estudados, defendidos, para se lhes
continuar agregando novos milhões – e para evitar que esses voltem à situação
anterior, de privações. Determinantes? Os esforços da nação que
democraticamente escolheu representantes que exerceram as políticas públicas do
Plano Brasil sem Miséria – que agrupa um conjunto de ações em três
eixos, que são a garantia de renda, a inclusão produtiva e a expansão do acesso
aos serviços públicos – e um regime econômico favorável à redução da taxa de
desemprego e à valorização do salário mínimo real. Especificamente com relação
ao Bolsa Família, alvo de tantas críticas e preconceitos, note-se que
constitui o principal programa de garantia de renda, um dos programas de
transferência de renda mais bem-sucedidos do mundo, e hoje atende cerca de 13
milhões de famílias, para qual os gastos do orçamento familiar equivaliam a
0,5% do PIB em 2014.
Além das políticas sociais, o combate à fome e à pobreza contou com uma
política oficial de valorização do salário mínimo (notadamente após 2007, por
meio de decreto que se tornou lei em 2011). Concomitantemente
aos aumentos reais do salário mínimo, elevaram-se a ocupação, a formalização,
os rendimentos do trabalho e a massa salarial. Assim, de
modo geral, o crescimento da economia desde 2004 até 2014 alavancou o mercado
de trabalho até alcançar as taxas mais baixas de desemprego da experiência
democrática iniciada em 1985. A dinâmica positiva do emprego não pode ser
dissociada das políticas de inclusão social e de medidas econômicas
expansionistas, tais como a ampliação do crédito ao consumidor e ao mutuário, o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e os planos posteriores de
alavancagem do investimento público e privado em infraestrutura, a expansão da
Petrobras e de sua cadeia produtiva.
Entretanto este padrão de crescimento encontrou seus
limites: a taxa de
crescimento do PIB brasileiro de 2011 a 2015 foi declinante, até tornar-se
negativa, graças a diferentes processos econômicos e políticos, internos e
externos. Além da morosidade da recuperação dos países centrais atingidos pela
crise internacional e da reversão no preço das commodities – essencialmente do
petróleo -, a política econômica combinou câmbio real valorizado, abertura ao
capital internacional, queda da receita fiscal do governo central em termos do
PIB (particularmente devido às desonerações concedidas ao setor industrial)
seguida por uma política monetária mais conservadora de ajuste, sobretudo a
partir de 2013 e intensificada a partir de 2015. Apesar dos diversos
investimentos em educação, ciência e tecnologia, e de progressos pontuais nas
iniciativas de incentivo à inovação, a matriz produtiva não se sofisticou ao
longo dos anos 2000 e 2010 – ao contrário, o comportamento setorial da economia
registrou uma progressiva queda da participação da indústria de transformação
no PIB, dada em conjunto com um aumento relativo ao PIB das importações,
particularmente de bens manufaturados. Na interpretação estruturalista, a
mudança rumo a atividades mais sofisticadas é condição para o desenvolvimento
econômico, pois geraria os mecanismos internos de sustentação do emprego, com
elevação da produtividade e dos salários.
À reversão do ciclo econômico, soma-se a intensa crise política e
institucional que o país atualmente enfrenta, o que dificulta ainda mais a
alteração da trajetória econômica negativa, por ao menos esses motivos
relacionados: a virada do capital em relação ao trabalho – já que o poder de
barganha do último e os salários efetivamente pressionaram os lucros do primeiro
grupo, que historicamente se organizam para promover reformas conservadoras; a
deterioração da Petrobras, principal empresa nacional e que representava
diretamente cerca de 10% da formação bruta de capital fixo; a incerteza dos
atores econômicos, que tendem a evitar gastos de consumo e investimento; e uma
menor margem de manobra de atuação governamental, uma vez que o governo, num
momento de crise, além de ter menos recursos para efetivar políticas públicas,
ainda enfrenta a desconfiança de diversos setores da sociedade.
Por outro lado, ainda há muito a se fazer pelo povo. Em momentos de
crise essa urgência se mostra mais gritante. Como bem expressa o manifesto das
Periferias e dos movimentos sociais em defesa das causas da população mais
pobre das periferias e do campo, dos negros, dos índios, das mulheres, dos
LGBTs, dos jovens, do meio-ambiente, da cultura, do folclore e vários outros,
milhões de pessoas não somente não são contempladas pelos bens públicos e
direitos sociais, como são a parte prejudicada pelas assimetrias econômicas e
políticas, vivendo em condições de vida precárias, sendo diariamente atacadas
pelo preconceito, racismo, opressão que redundam em um nível intolerável de
violência, considerada epidêmica pela ONU, que em 2014 assinalou mais de 52 mil
homicídios, cerca de 142 por dia em todo o país.
Assim, embora o Plano Brasil sem Miséria e as políticas sociais
que o antecederam partissem da avaliação correta de que cabe ao Estado realizar
políticas que produzam transformação estrutural das condições de vida da
população extremamente pobre, ainda há muito a se fazer. Como a dinâmica
política e econômica não foi capaz de engendrar mecanismos sustentados de
sofisticação da matriz produtiva ao longo dos anos noventa, 2000 e 2010,
autonomamente não haverá novo fôlego do investimento e do consumo com base na
ampliação dos mercados externos, sobretudo em um contexto de crise
internacional consolidada. Desprovidos desses mecanismos, não houve diminuição
significativa das assimetrias de renda e riqueza no Brasil. Tampouco se
comprovou a paralela elevação substancial da oferta e da qualidade de serviços
públicos para atender às novas demandas de padrão de vida da população
relacionadas à educação, saúde, moradia, transporte e cultura – o que concorre
para a queda progressiva do apoio da população ao governo.
Portanto, não há solução para o desenvolvimento além da alteração do
perfil distributivo a favor dos mais pobres, com um regime macroeconômico
expansivo e o Estado forte, com melhoria de sua eficácia tributária. Nesse
sentido, de um lado as políticas sociais e a valorização do salário mínimo têm
de continuar e, por outro lado, dever-se-ia elevar o imposto de renda sobre os
grupos mais ricos (muito baixo no Brasil, máximo de 27,5% para as rendas mais
altas), sobre as finanças e grupos financeiros, sobre as exportações de
commodities, bem como aumentar o rigor de fiscalização tributária, diminuindo a
evasão. Além de expandir a própria capacidade tributária do governo e
consolidar um perfil distributivo mais justo, tributar e regular melhor as
finanças contribuiria inclusive para a queda da taxa de juros, incentivando o
investimento produtivo e aliviando as finanças públicas, já que o pagamento
daqueles tem comprometido quase a metade do orçamento do governo central nos
últimos meses. Ademais, as políticas monetárias e fiscais devem ser coerentes
em relação aos objetivos de crescimento com distribuição, aliando-se a uma taxa
de câmbio real competitiva.
Para os 22 milhões de brasileiras e brasileiros sustentarem
condição de vida superior à da extrema pobreza, e para que as conquistas
sociais se multipliquem hoje e no futuro, temos de resistir, repudiar e lutar
contra o projeto econômico e político conservador em curso. Como explicitamente
assumido no programa do PMDB e nos projetos de lei em trâmite propostos pelas
alas conservadoras do Congresso, o impeachment de Dilma Rousseff será um golpe
que vai acelerar o desmonte das políticas públicas e aumentar as assimetrias de
poder e riqueza no país. Sem a superação das privações mais elementares e sem
inclusão social, não há democracia que se concretize e se sustente. Pelo Brasil
sem miséria e sem fome, continuemos a lutar.
Cristina Fróes de Borja Reis, Fernanda
Graziella Cardoso, Vitor Eduardo Schincariol – Professores de Economia e de
Relações Internacionais da UFABC.
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