10 junho 2014, Página Global http://paginaglobal.blogspot.com (Portugal)
Raquel Varela*, Revista Rubra
O Povo já não tem medo foi a capa de um dos jornais
publicados no 12º de Maio de 1974. No dia 25 de Abril de 1974, um golpe levado
a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), em discórdia com a guerra
colonial que durava há treze anos, em Moçambique, Guiné e Angola, põe fim à
ditadura portuguesa. Tinham sido 48 anos de ditadura, primeiro sob a direcção
de António Salazar e — depois de 1968 — sob a chefia de Marcelo
Caetano. De imediato, e contra o apelo dos militares que dirigiram o golpe
— que insistiam pela rádio para as pessoas ficarem em casa —, milhares de
pessoas saíram de suas casas, sobretudo em Lisboa e Porto, e foi com as pessoas
à porta, a gritar «morte ao fascismo», que no Quartel do Carmo, em Lisboa, o
Governo foi cercado; as portas das prisões de Caxias e Peniche abriram-se para
saírem todos os presos políticos; a PIDE/DGS, a polícia política, foi
desmantelada; atacada a sede do jornal do regime A Época e a censura
abolida.
No dia 28 de Abril, três dias depois do golpe, os moradores do
bairro social (pobre) da Boavista ocupam casas vagas e recusam-se a sair,
apesar de intimados pelos militares e pela polícia; os bancários começam a
controlar a saída de capitais dos bancos a partir do dia 29 de Abril e montam
piquetes às portas destes; no mesmo dia, os empregados de escritório ocupam o
sindicato (os sindicatos estavam limitados na sua liberdade durante a ditadura
e as suas direcções eram pró-regime) e expulsam a direcção; no dia seguinte,
vários sindicatos ocupam o Ministério das Corporações e Segurança Social, que
passa a chamar-se Ministério do Trabalho; nesse dia, 10 000 estudantes
reúnem-se em plenário no Instituto Superior Técnico, a escola superior de
engenharia mais importante do país, e os trabalhadores da construção civil
demitem a direcção do sindicato e ocupam a sede. Começa a greve na Transul,
empresa de transportes, e é formado o Movimento de Libertação da Mulher (MLM).
Uma semana depois, a manifestação do 1.º de Maio — que passa
ser o Dia do Trabalhador — reúne cerca de meio milhão de pessoas em Lisboa. Participaramna manifestação
um milhão de portugueses para ouvirem 200 oradores em todo o País. As ocupações
de casas sucedem-se. Nos primeiros quinze dias de Maio há greves, paralisações
e nalguns casos ocupações em dezenas de fábricas e empresas. Várias
manifestações, dirigidas sobretudo pela esquerda radical, condenam a guerra
colonial. Tinha começado a revolução portuguesa, uma revolução num país da
Europa ocidental, a meio da década de 1970, no espaço geo-estratégico da OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte). Foi para todos, no país e no
estrangeiro, uma surpresa.
O império português ruiu tarde, em 1974, depois de ter mobilizado
quase dois milhões de trabalhadores forçados (nas minas de África do Sul,
plantações de algodão de Angola, entre outras culturas) e uma guerra de treze
anos — 1961-1974 — para impedir a Independência dos países africanos
Angola, Cabo-verde, Moçambique, Guiné Bissau.
Erguida para construir os monopólios, disciplinando a força de
trabalho, a ditadura portuguesa caiu nas mãos dos trabalhadores em Abril de
1974 e, em Março de 1975, uma parte importante dos donos desse grupos teve que
fugir do país depois de uma expropriação estatal que visava pôr fim ao controlo
operário, que se tinha generalizado a partir de Fevereiro de 1975, sobretudo na
banca, grandes empresas metalo-mecânicas, entre outras. A estrutura
anquilosada do império — e do seu regime bonapartista — levou à
ruptura social mais importante da Europa do pós-guerra: foi tão grande a
queda quão longeva fora a sua duração, de tal forma que nenhum historiador até
hoje conseguiu determinar quantas reuniões de trabalhadores houve só na
primeira semana que se seguiu ao golpe do MFA, porque foram centenas, talvez milhares,
em todo o País.
Império anacrónico, brutal nas colónias, congelara a mobilidade
social da metrópole e pouco oferecia aos seus jovens — um milhão e meio de
pessoas emigraram do País, sobretudo para a Europa central entre 1960 e 1974
— até conduzir o Estado Português à beira do colapso, militar e
financeiro. Para pôr fim à guerra um movimento de capitães deu um golpe
militar no dia 25 de Abril de 1974. O golpe militar deu-se com escassa
resistência, contabilizando-se, no total, quatro mortos, alvos dos disparos da
polícia política sitiada. Contudo, os escassos mortos na metrópole só se
compreendem à luz de um exército dividido pelo horror da guerra colonial,
divisão alcançada pela resistência dos povos africanos, nas revoluções
anti-coloniais. Os africanos pagaram com sangue durante 13 anos a crise do
exército, que assim se viu incapaz de reprimir as populações em Lisboa, em 1974
e 1975. Hipótese histórica colocada pela III Internacional — chegaremos a
Londres via Deli! — foi exemplarmente realizada em Portugal. E chegou-se longe, partindo de África.
Em 1975, o assunto principal que se discutia em todas as chancelarias
ocidentais era, depois do Vietname, a revolução portuguesa, cuja possibilidade
de alastar à Espanha franquista e à Grécia dos coronéis levou a administração
norte-americana a temer um “mediterrâneo vermelho”, para usar as palavras de
Gerald Ford.
A queda do regime deixava para trás um país
colonialista europeu, com uma estrutura social que combinava uma indústria
pujante, uma burguesia que dava os primeiros passos na internacionalização, e
um povo mantido a baixos salários, ignorância e atraso. Lembraram que Portugal
era então uma espécie de “Albânia atlântica” onde: “O divórcio é reprimido,
onde há (muitos) livros, filmes e canções proibidas, onde todas as artes são
censuradas, onde a comunicação social é amordaçada, onde muitas crianças andam
descalças, onde a maior parte da população não dispõe de frigorífico, telefone,
televisor ou casa de banho, onde não se pode dizer piadas sobre as autoridades
ou criticar o poder, onde não há direito de manifestação ou greve, ou é preciso
licença para ter isqueiro ou transístor a pilhas, onde a agricultura se faz com
charruas medievais e tracção animal, onde o movimento rodoviário se encontra
pejado de carroças e carros de bois, onde o pronto-a-vestir é quase
inexistente, onde a Coca-Cola é de contrabando, onde a polícia política exerce
a tortura nas prisões, onde não há autoestradas nem… eleições”.
A revolução portuguesa tem quatro características determinantes que
podem ajudar a explicar o alcance da disrupção social, com uma dimensão de
controlo operário e disrupção do processo de acumulação inusitados nesta
região, neste período:
É um processo que nasce de uma derrota militar de um Exército regular
por movimentos revolucionários guerrilheiros apoiados nos camponeses da
Guiné-Bissau, Angola e Moçambique;
Essa derrota combinou-se com a mais grave crise económica do
capitalismo do pós-guerra, iniciada em 1973. As medidas contra-cíclicas de
encerramento de fábricas e empresas levam a despedimentos; a reacção a
isso, em 1974-1975, vai ser a generalização da ocupação de fábricas e
empresas (em 1977 estavam registadas mas de 300 empresas em auto-gestão e mais
de 600 cooperativas).
É marcada pelo protagonismo do movimento operário;
É marcada pelas especificidades desse mesmo movimento operário
português, caracterizado pela sua juventude (grande massa de jovens camponeses
recém-qualificados que vão do campo para a cidade na década de 1960), pela
desorganização política e sindical e a sua concentração na cintura industrial
de Lisboa, capital do país. A não existência de organizações livres e
democráticas de trabalhadores, um calcanhar de Aquiles do movimento operário
português durante o Estado Novo, foi concomitantemente parte da radicalização
da revolução — a ausência destas organizações na maioria das fábricas e
empresas do País determinou a abertura espontânea de um espaço onde surgiram as
comissões de trabalhadores.
Assim, aquilo que começou a 25 de Abril como um golpe de
Estado, encetado como uma revolução política democrática (que muda o
regime político), foi efectivamente a semente de uma revolução social (que
imprime mudanças nas relações de produção). O sujeito social — os
trabalhadores — em marcha pela liberdade política preparou e deu esse
salto, de uma revolução democrática para uma revolução social num único
processo, tal como Trotsky havia analisado na teoria da revolução permanente.
Esta revolução democrática não esperou sequer pelas eleições para a
Constituinte, que seriam realizadas 1 ano depois do golpe, a 25 de Abril de
1975. Em poucos dias ou semanas, em Abril e Maio de 1974, foi quase totalmente
desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um regime
democrático. Esta foi a última revolução europeia a colocar em causa a
propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferência,
segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o trabalho, o que
permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodução biológica (acima
do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e universal à educação,
saúde e segurança social. Foi também a última revolução europeia onde se
desenvolveu o controlo operário de forma extensa. Existiu mesmo uma ampla
discussão e confronto mesmo entre a autogestão (os trabalhadores serem “donos”
da fábrica) e o controlo operário (o questionamento total da produção e a
recusa em “gerirem a anarquia capitalista e serem patrões deles próprios”, para
citar documentos da época). A autogestão dominou nas pequenas empresas
descapitalizadas; o controlo operário, nas grandes empresa e fábricas.
A extensão da divisão da sociedade em classes sociais e a
consciência dessa divisão, em 1974 e 1975, tem uma dimensão histórica. Os
trabalhadores viam-se como tal, tinham orgulho nisso. Banalizou-se a palavra
socialismo, generalizou-se a crença na possibilidade de mudança. «García
Márquez aterrou no aeroporto da Portela no primeiro dia de junho de 1975,
proveniente de Roma. “Tive a sensação de estar a viver de novo a experiência
juvenil de uma primeira chegada. Não só pelo verão prematuro em Portugal e pelo
odor a marisco, mas também pelos ventos e pelos ares de uma liberdade nova que
se respiravam por toda a parte (…).” Garcia Márquez descreve uma Lisboa —
a quem chama «a maior aldeia do mundo», pela intensa vida social e socializante
que nela se vivia — cidade militante, cidade que não dorme: «Toda a gente
fala e ninguém dorme, às quatro da manhã de uma quinta-feira qualquer não havia
um único táxi desocupado. A maioria das pessoas trabalha sem horários e sem
pausas, apesar de os portugueses terem os salários mais baixos da Europa.
Marcam-se reuniões para altas horas da noite, os escritórios ficam de luzes
acesas até de madrugada. Se alguma coisa vai dar cabo desta revolução é a conta
da luz.» [1]
Quem estava em Lisboa logo quando se dá o golpe, era Manuel Vazquez
Montalban. Futuro escritor de renome mundial, escrevia então crónicas para
o TeleExpress, de Barcelona, quando ainda em Espanha durava a noite
franquista:«Paco Ibañez, Patxi Andion e a nova canção catalã estão presentes na
rádio e na televisão e o mesmo se pode dizer dos políticos e intelectuais
democratas espanhóis que afluem a Portugal movidos por um slogan: «Esta é
primeira revolução a que podemos ir de carro.» Se o turismo de lazer era uma da
primeiras fontes de divisas no Portugal fascista, o turismo político vai
substituí-lo no Portugal democrático (…) os hotéis enchem-se
de voyeurs da liberdade»[2].
É provavelmente um dos raros momentos na história deste país
(também aconteceu com sectores do movimento operário durante uma parte da I
República), em que os trabalhadores, em largas camadas, tiveram orgulho em sê-lo. Ou seja, existia força social para impor
uma cultura que questionasse a ideologia hegemónica do trabalhador como alguém
que trabalha porque há outros — muito inteligentes — que gerem por
eles a produção: a ideologia das “empresas criam empregos”. Isto foi totalmente
invertido na revolução: o trabalhador ganhou a centralidade cultural que
corresponde ao seu papel económico.
Pela extensão da dualidade de poderes (comissões de trabalhadores,
moradores, soldados, o equivalente aos conselhos, eleitos na base, em plenário
e com representantes a qualquer momento revogáveis), a revolução dos
cravos é uma das revoluções mais importantes de todo o século XX. Deste ponto
de vista, da extensão deste poder paralelo ao Estado, trata-se de um processo
histórico que tem muitas semelhanças com a revolução italiana de 1919-1920
(conhecida como bienio rosso), com a revolução húngara de 1956 e com a
revolução chilena. A democracia de base que vigorou, e que tinha assento nos
locais de trabalho e na habitação, colocou qualquer coisa como 3 milhões de
pessoas a decidir, não por delegação de poderes de quatro em quatro anos, mas
dia a dia, decidia-se o que a sociedade devia produzir, como devia ser gerida.
Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como entre 1974 e 1975.
A derrota da revolução começa a partir do golpe de Estado de 25 de
Novembro de 1975, golpe realizado pela social-democracia em aliança com a
Igreja e a direita, e sem a resistência do Partido Comunista (que considerava
Portugal sob influência ocidental no quadro de Yalta e Potsdam). Começa com a
imposição da ‘disciplina’, isto é, da hierarquia, nos quartéis, mas
consolida-se através de um regime democrático-representativo. Portugal é um
balão de ensaio da chamada “contra-revolução democrática” (ou teoria da
transição democrática, segundo a politologia de inspiração liberal) que vai ser
aplicada na Espanha franquista e depois em toda a América Latina nos anos 80, a doutrina Carter, ou seja, a
ideia de que, pelo menos por um período largo, para derrotar processos
revolucionários, as eleições e a democracia liberal eram preferíveis aos
regimes ditatoriais. Portugal é o primeiro exemplo, do ponto de vista da
burguesia, de sucesso de uma revolução derrotada com a instauração de um regime
de democracia representativa que, para se impor, teve de pôr fim à democracia
de base, nomeadamente nos quartéis, fábricas, empresas, escolas e bairros.
O Estado não foi conquistado pelos trabalhadores. Há uma enorme
crise do Estado, mas este não colapsa, nomeadamente porque os poderes paralelos
que se criam durante a revolução nunca chegam a desenvolver-se e coordenar-se
nacionalmente para serem uma alternativa viável de poder — essa é uma das
explicações para a facilidade com que a direita faz o golpe de 25 de Novembro
de 1975.
Mas, hoje, em plena execução das medidas contra-cíclicas pós-2008,
esse passado revolucionário — quando os mais pobres, mais frágeis, quantas
vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos — é uma espécie de
pesadelo histórico das actuais classes dirigentes portuguesas. Tanto é assim
que mantém-se a insistência de, nos 40 anos da revolução, celebrar-se apenas o
dia 25 de Abril, esquecendo que esse dia foi o primeiro dos 19 meses
historicamente mais surpreendentes da história de Portugal, e que Portugal foi,
ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela imprensa internacional de
então: as imagens de pessoas dos bairros de barracas, sorrindo, de braços
abertos ao lado de jovens militares barbudos e alegres, encheu de esperança os
povos de Espanha, Grécia, Brasil… e encheu de júbilo a maioria dos que aqui
viviam. Uma das características das fotos da revolução portuguesa é que nelas
as pessoas estão quase sempre a sorrir. Não por acaso, Chico Buarque, o mais
famoso músico brasileiro, cantou em plena ditadura lá no Brasil, quando soube
da revolução: «Sei que estás em festa, pá.»
[1] Diário
de Notícias, 3 de Maio de 2013.
[2] Vasquez
Montalbán, Manuel, «A la revolutión en coche», In Tele eXpress, 13 de
Maio de 1974, p. 5.
*Raquel Varela – Investigadora do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa
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