terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O HAITI ANTES E DEPOIS DA TRAGÉDIA



19 janeiro 2010/Carta Maior http://www.cartamaior.com.br

A morte de Zilda Arns emocionou o Brasil por sua história de vida e pelo trabalho humanitário ao longo de muito tempo. Nas últimas horas o secretário geral Ban Ki-Moon confirmou as mortes do tunisino Hedi Annabi, Representante Especial da ONU no Haiti, e de seu adjunto e número dois à frente da missão, Luiz Carlos da Costa (foto), um dos brasileiros mais graduados e experientes nos quadros da ONU. Os dois estavam familiarizados com as missões em pontos conturbados do mundo. O artigo é de Argemiro Ferreira.

Argemiro Ferreira

Certas coisas que nos atormentam tornam-se menores, às vezes até insignificantes, diante de uma tragédia como a que golpeou o povo haitiano. Acompanhamos o quadro chocante também por estarmos mais próximos desse país graças ao papel relevante do Brasil na força de paz da ONU, onde são elevadas nossas baixas - ainda que seja bem mais dramático o custo em vidas humanas dos própros haitianos.

A morte de Zilda Arns emocionou o Brasil por sua história de vida e pelo trabalho humanitário ao longo de muito tempo. Nas últimas horas o secretário geral Ban Ki-Moon confirmou as mortes do tunisino Hedi Annabi, Representante Especial da ONU no Haiti, e de seu adjunto e número dois à frente da missão, Luiz Carlos da Costa, um dos brasileiros mais graduados e experientes nos quadros da ONU.

Os dois estavam familiarizados com as missões em pontos conturbados do mundo. Antes cabia a Da Costa, na sede de Nova York, planejar cada uma delas conforme a situação específica do país, criando os cargos e escolhendo, dentro ou fora da ONU, pessoas capazes para ocupá-los. O desaparecimento dele no dia do terremoto já levara o secretário geral a nomear, para o lugar de Annabi, Edmond Mulet, que o ocupara antes.

O nível dos três no quadro era de secretário geral assistente. Curiosamente, nos últimos dias emails estavam sendo disparados por um grupo político no Brasil com ataques levianos à missão de estabilização no Haiti, Minustah - criticada como ineficaz e inoperante. Na verdade, seus prédios estavam destruídos e suas autoridades maiores, Annabi e Da Costa, já estavam mortos.

Como Peter Sellers em “Being There”
Convivi alguns anos no prédio da ONU com gente dedicada que serve em tais missões. A jornalista brasileira Sonia Nolasco, esteve em Timor Leste e depois no Haiti. Já não estava lá no dia do terremoto. Em resposta a um email, explicou: “Por acaso estou aqui em Nova York, rezando por meus colegas. Nosso prédio desabou”. Antiga colega de redação no Rio, foi para os EUA em 1973, onde casou com Paulo Francis, seu namorado na juventude.

Os dois sempre moraram a uma quadra do edifício-sede da ONU, frequentado por Sonia como correspondente de jornais do Brasil. Algum tempo depois da morte do marido, ela decidiu servir em missões que exigiam sacrifício pessoal. Outro brasileiro, Manoel de Almeida e Silva foi porta-voz do secretário geral Kofi Annan e depois serviu mais de três anos na missão do Afeganistão.

O departamento de operações de manutenção da paz (peacekeeping) é um dos mais ativos da ONU. O jornalista James Traub, especialista em política externa que escreve para o “New York Times”, sabia bem como atuava com Annabi e Da Costa. Em artigo para o website “Daily Beast” observou: “Num filme, George Clooney poderia interpretar Sérgio Vieira de Mello. Mas não Annabi, tunisino seco, às vezes obscuro e cético mas nunca cínico. Seria um papel mais para o Peter Sellers de ‘Being There’”.

Traub uma vez ouviu o relato de Annabi sobre encontro com delegação dos EUA após o Conselho de Segurança decidir despachar soldados (em 2000) contra os assassinos psicopatas que tentavam depor o governo de Sierra Leone. “O que o senhor fará naquela confusão?”, perguntou alguém. E Annadi: “Vocês vieram me dizer como consertar aquilo com tropas que não estão me dando ou vão me ajudar a encontrar um meio de resolver a coisa? Se for o primeiro caso, a reunião será curta”.

Aquela maldição de Pat Robertson
A visita da secretária de Estado Hillary Clinton ao Haiti neste fim de semana busca dar ênfase ao empenho do presidente Barack Obama, que tem falado ao país diariamente sobre a tragédia e chamou Bill Clinton e George W. Bush para um esforço extra. Mas nos EUA é notória e chega a ser constrangedora a insensibilidade de personalidades, políticos e profissionais da mídia em relação ao Haiti. Quatro nomes destacaram-se negativamente nesse sentido nos últimos dias.

O primeiro foi o conspícuo tele-evangelista Pat Robertson. Criador da Coalizão Cristã, ele chegou a disputar em 1988 as primárias do Partido Republicano, como candidato à Casa Branca. Não emplacou. Mas como ex-dono de um canal de cabo o reverendo Robertson continua influente no partido graças a seu programa de TV “Clube dos 700”, financiado por milionários republicanos.

Apesar de se considerar teólogo, filósofo e sábio, Robertson é capaz de asneiras monumentais. No último dia 13 declarou que a causa da pobreza e das tragédias do Haiti é um pacto feito pelos escravos negros com o diabo: em troca da vitória deles na rebelião de 1804 contra a escravidão e o controle dos colonos franceses, segundo o piedoso pastor, passaram a servir ao senhor das trevas - e por isso foram amaldiçoados.

Essa idiotice virou tema de debates em “talk shows” das redes de TV a cabo dos EUA. No passado o mesmo Robertson vendeu fitas VHS acusando Clinton de homicídio, conclamou ao assassinato de Hugo Chávez, chamou Maomé de terrorista, ganhou mina de ouro do ditador liberiano Charles Taylor (hoje acusado de crimes de guerra) e disse que o 11/9 foi castigo divino por causa das feministas, dos gays e do aborto.

Os 'iluminados' e uma velha receita
Apareceram mais “iluminados”, além de Robertson, determinados a sabotar na mídia a campanha pela ajuda ao Haiti. Rush Limbaugh, extremista de direita e rei do “talk show” de rádio, conclamou as pessoas a negarem doações. “Já doamos antes. (…) Chega de jogar dinheiro fora". E dois conservadores - Bill O’Reilly, da Fox News, e David Brooks, do “New York Times” - apresentaram suas próprias receitas mágicas.

A de O’Reilly é risível, digna do mau jornalismo do império Murdoch. Para ele, a cura dos problemas econômicos e sociais do Haiti consiste em impor disciplina aos haitianos. “Metade da população é analfabeta, o desemprego é 50%, as pessoas vivem com menos de US$ 2 por dia. Nenhuma caridade será suficiente e boas intenções não resolvem. O Haiti continuará caótico até se impor disciplina a eles”.

Já a receita “civilizada” de Brooks é contra a “cultura resistente ao progresso”. Ele explicou: “É hora de promover ali o paternalismo dirigido. Tentamos primeiro o combate à pobreza espalhando dinheiro, tal como fizemos em outros países. Depois, os esforços microcomunitários, como também fizemos em outros. Mas os programas que realmente funcionam envolvem paternalismo intrusivo”.

Ao reunir esses dados, o crítico de mídia Steve Rendall apelou para um grupo de direitos humanos, que chegou a esta conclusão: “a receita do ‘paternalismo intrusivo’ para ‘consertar a cultura’ foi a política dos EUA no Haiti nos últimos 100 anos: ocupação militar brutal (1915-34); apoio à ditadura (1957-86); e, recentemente, a imposição de políticas comerciais que empobreceram ainda mais o povo. É preciso consertar não a cultura haitiana mas as políticas dos que só ajudam a si próprios. Elas é que deixaram milhares de haitianos literalmente enterrados vivos”.

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