20 abril 2010/Vermelho http://www.vermelho.org.br
Um ano depois da homologação da Raposa Serra do Sol como “Terra Indígena” — numa polêmica que chegou até ao Supremo Tribunal Federal (STF) —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a região, em Roraima, nesta segunda-feira (19), Dia do Índio. Sem meias palavras, Lula saiu em defesa dos povos primitivos do país e exigiu que o Estado respeite as comunidades remanescentes.
Por André Cintra
Segundo o presidente, é possível conciliar os interesses desenvolvimentistas com a legítima preservação da cultura secular indígena. A frase exata de Lula foi esta: “Passamos 6 milhões de hectares do governo federal para o estado de Roraima para que a gente pudesse dar terra para quem quisesse trabalhar, sobretudo para pequenos e médios proprietários — porque a nos interessa que Roraima seja desenvolvido, cresça economicamente sem tirar o direito dos índios viverem tal como eles queiram viver”.
A reserva, demarcada em 1998 e homologada em 2005, viu sua soberania ameaçada pelo governo de Roraima, que levou a disputa ao STF. Questionava-se, acima de tudo, a demarcação contínua da área, que forçaria grandes produtores de arroz a deixarem a reserva, junto a outros produtores rurais não índios. O Supremo, no entanto, saiu em defesa dos indígenas, corroborando uma posição defendida por setores progressistas da sociedade — entre os quais o PCdoB.
Apesar de ter sido o presidente responsável pela homologação da reserva, Lula deixou subtendido que estava em dívida com os indígenas e os roraimenses. Desde o acirramento da polêmica em torno da Raposa Serra do Sol, Lula evitou ir ao estado para não criar fissuras com o governo estadual.
A ausência parece não ter reduzido o prestígio de um presidente que soube ser sensível ao tratar das questões indígenas. Tanto que, ao comentar a recepção dos moradores da reserva à comitiva presidencial, Lula brincou que recebeu uma carta de agradecimento e outras 20 com reivindicações.
À parte o tom anedótico da declaração — que arrancou risos dos mais de 8 mil presentes à festa —, o presidente respaldou o espírito de luta da comunidade. Em sua opinião, os indígenas têm o direito de protestar e cobrar. “O que acontece normalmente são os outros invadirem as terras indígenas tentando se apossar de uma terra que não é deles”, admitiu o presidente.
Darcy Ribeiro e a nova visão indígena
Lula não poderia ter escolhido data melhor para entregar, oficialmente, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol a quem lhe pertence de fato. A decisão do Supremo em favor dos indígenas completava um ano, mas já fazia quase oito décadas que autoridades tratavam a celebração do Dia do Índio com certo desdém, pela inevitabilidade da efeméride.
Instituído no governo do ex-presidente Getúlio Vargas pelo decreto-lei 5540, de 1943, o Dia do Índio (19 de abril) parecia servir como pretexto para o Estado não ir além — como se o simbolismo da data bastasse. A cada celebração, faziam-se pronunciamentos protocolares, e eram programadas atividades especiais. Nas escolas, invariavelmente, alunos aprendiam a história e as tradições indígenas de forma superficial e estereotipada.
Quase nada se falava, por exemplo, sobre as excepcionais contribuições de um antropólogo da estatura de Darcy Ribeiro (1922-1997), que valorizou o componente indígena na própria formação da sociedade brasileira. O processo de miscigenação entre brancos, negros e indígenas (aos quais se somaram, posteriormente, os imigrantes) redundou num tipo humano singular — o brasileiro —, portador de uma cultura das mais ricas e diversificadas.
“Apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa de civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz”, escreve Darcy em O Povo Brasileiro (1995). “Mais do que uma simples etnia, o Brasil é um povo nação, assentado num território próprio para nele viver seu destino.”
O Estado errou, o Estado precisa reparar
Moradores primitivos da América — aonde chegaram de 11 a 12,5 mil anos atrás —, os indígenas foram massacrados inicialmente por colonizadores europeus que lhes usurparam a terra, vilipendiaram sua cultura e, não raro, escravizaram ou dizimaram suas tribos. Séculos após séculos, da descoberta à exploração de recursos naturais valiosos, o genocídio continuou vigente. Nos dias de hoje, apenas um a cada 400 brasileiros é indígena, vive em comunidade e segue suas tradições.
Lula não está errado ao dizer que, com a demarcação e a homologação de reservas, o Estado brasileiro apenas começa a reparar séculos de injustiça. “Por mais que a gente faça, sempre teremos muito mais a fazer, para recuperar o atraso a que vocês foram submetidos, de esquecimento. Nós haveremos de recuperar isso.”
O governo, de todo modo, não luta apenas contra o relógio da história. Em recente palestra, o deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP) voltou a denunciar as ONGs que se espalham no seio de comunidades indígenas para disseminar valores afinados com os interesses estrangeiros, à margem da soberania nacional. Fazem questão até dar aulas de idiomas de outros países, sem nenhum vínculo histórico com os indígenas.
“Em algumas aldeias, o ensino da língua portuguesa foi proibido — mas, à noitinha, estavam esses estrangeiros ensinando outros idiomas. É uma manobra para dissociar o índio da realidade brasileira e abrir caminho para a expropriação de seus bens”, afirmou Aldo. Por tudo isso, foi igualmente promissora a visita de Lula à Raposa Serra do Sol. O indígena é um patrimônio genuinamente nacional, que precisa ser respeitado e protegido por todo o povo brasileiro e pelo Estado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário