terça-feira, 1 de dezembro de 2009

URUGUAI, UMA VITÓRIA INSCRITA NA HISTÓRIA

Diante da eleição de José Mujica e de Danilo Astori, é preciso rejeitar qualquer análise que descarte com suficiência a importância de colocá-las em perspectiva histórica e que se contente em sentenciar que "estava prevista".

1 dezembro 2009/Vermelho http://www.vermelho.org.br

Por Gabriel Puricelli*, em Página/12

Pelo contrário, o triunfo frente-amplista representa a superação de uma cerca mais na construção da coalizão de esquerdas: a de fazer que o exercício do governo não se traduzisse em desencanto e conseguir que dois de seus dirigentes fossem sucedidos por outros na frente da democracia oriental.

O ciclo eleitoral deste ano submeteu a Frente Ampla a um teste mais exigente que seus familiares ideológicos enfrentaram em seu momento, apoiados por alianças eleitorais e de governo que vão além da centro-esquerda, no Brasil (onde a Constituição permitiu que Lula sucedesse a si mesmo) e no Chile (onde Michelle Bachelet chegou como a terceira socialista a ocupar o La Moneda).

Estudando a trajetória de quase quatro décadas da força fundada por Líber Seregni, se poderia arriscar que o único desafio que resta por enfrentar é o de passar o cargo para um futuro candidato que inevitavelmente não fará parte da geração dos fundadores da força.

Os méritos do governo de Tabaré Vázquez (em que, não nos esqueçamos, Mujica e Astori ocuparam ministérios importantíssimos) são muitos, mas talvez haja um aspecto que tenha sido indispensável para aperfeiçoar a imbricação da identidade frente-amplista com o ethos uruguaio, se nos é permitido falar disso: a melhoria dos níveis de igualdade social em um país que havia perdido há meio século a capacidade de promovê-la.

O Uruguai havia chegado à possibilidade material do igualitarismo de maneira precoce sob o governo de José Batlle y Ordóñez (outro Pepe ao qual coube exercer a presidência), mas tinha inscrita em seus genes essa aspiração desde a façanha independentista, que teve no general Artigas o libertador mais preocupado com a justiça social que sua geração deu.

Os correligionários colorados do Pepe Batlle se encarregaram de arquivar seu projeto, e os brancos aos quais coube governar (uma história perversa negaria aos melhores essa possibilidade) agiram do mesmo modo. Nesse sentido, pode-se dizer (com um traço grosso que talvez traga alguma injustiça) que a segunda metade do século XX uruguaio foi a da constituição desse "Partido Rosado", que não pôde fazer frente neste domingo à maioria que decidiu votar em suas melhores tradições, plebiscitando o grande partido mais jovem do país.

A política uruguaia não pode ser declinada em chave argentina, mas seria um excesso de esnobismo omitir o empenho colocado pelo derrotado Luis Lacalle em ser o Carlos Menem uruguaio. Em uma campanha que lhe viu iniciar já debilitado, não só por causa de seu segundo lugar no primeiro turno, mas também por ter feito o Partido Nacional perder muitíssimos parlamentares, só usou do medo como lugar-comum e desempoeirou um macartismo que nem sequer teve a elegância estilística que é marca registrada do também ex-presidente Julio María Sanguinetti.

Na contramão do novo consenso latino-americano que, com matizes marcadíssimas, reivindica a utilidade do Estado para dinamizar a economia, Lacalle insistiu em sua fé neoliberal e rematou sua peripécia com propostas de "maior repressão".

Mujica e Astori têm um desafio enorme pela frente, mas recebem uma herança de bom governo que os coloca na corrida com impulso. O definitivo eclipse de Lacalle no Partido Nacional e a reflexão que se impõe entre os colorados com relação à conveniência de descolorir-se em uma excessiva intimidade com os brancos os ajudarão, sem dúvida, a encarar a nova etapa sem necessidade de se preocupar, por um bom tempo, com seus adversários.

* Gabriel Puricelli é co-coordenador do Programa de Política Internacional do Laboratório de Políticas Públicas (www.politicainternacional.net).

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