25
outubro 2016, Marcelo Auler http://marceloauler.com.br (Brasil)
Eugênio José Guilherme de Aragão*
A liturgia do cargo público não é mero exercício de vaidade e de ego.
Ela é um marco do republicanismo, que determina ser o exercício de função
pública uma atividade impessoal. Quem está investido nela não deve a enxergar
como um galardão adquirido em razão de qualidades pessoais, mas precisamente
porque foi chamado a servir ao público. A liturgia lhe serve de proteção, para
qualificar a função e não a si.
Juízes, por exemplo, lidam diariamente com conflitos. Ao decidirem sobre
uma causa, tornam um dos litigantes vencedor e outro perdedor. Aquilo que pode
significar, para o magistrado, apenas um
número em sua estatística de produção
mensal, na alma do perdedor pode ser uma catástrofe pessoal. O que o leva a não
ir às vias de fato com aquele que vê como seu malfeitor? É a aura da liturgia
que inspira o respeito necessário a criar uma barreira de blindagem relativa.
Quando, porém,
autoridades se comportam como moleques, como moleques serão tratadas. Se
adotarem discurso e comportamento de botequim, não poderão se queixar quando
começarem a voar garrafas e sopapos.
Temos assistido quase diariamente comportamentos fora do script litúrgico por parte de magistrados, a
começar por alguns do andar de cima. Têm sido muito cúpidos em dar entrevistas,
falar fora dos autos, opinar sobre tudo e todos. Têm adotado posturas
controvertidas e, por vezes, até mesmo político-partidárias em discursos
públicos, seja nos tribunais ou fora deles.
A desfaçatez de mudar
ostensivamente de opinião, conforme o momento político e o alvo das ações
jurisdicionais, chega a causar náusea àqueles que assistem a esse circo quase
cotidiano. Esse tipo de atitude cai bem em conversa de bar, onde a
inconsequência regada a álcool tudo permite, tudo perdoa, mas não no exercício
de função pública.
Dos magistrados se espera autocontenção e não exibicionismo.
Infelizmente há, entre nós, magistrado que se fez notório e não é um bom
exemplo de autocontenção.
A despeito de gozar de
exclusividade para cuidar só de um universo de processos supostamente conexos,
decretada por seu tribunal, aparentemente em virtude de sobrecarga que esse
universo representa, esse juiz tem viajado Brasil e mundo afora para dar
palestras, receber prêmio de bom-mocismo e participar de talk-shows.
Tem tido tempo de sobra para difundir seu moralismo obsessivo sobre os
fins da persecução penal de “corruptos”, a ponto de virar super-herói de uma
parte desorientada da sociedade, cuja bronca turva sua visão sobre o crítico
momento político vivido pelo País. Para fugir das garrafadas e dos sopapos,
anda com séquito de seguranças e deles vive cercado no trabalho e em casa.
Torna-se, assim, personagem controvertido, agente de disseminação de
incertezas, ao invés de se limitar a oferecer segurança jurídica a seus
jurisdicionados.
Isso não é vida de
juiz. Mas, ainda que não faça sentido, no sadio senso comum, essa imagem
distorcida que se oferece de um magistrado, tem sido exemplo para muitos outros
de sua corporação, que também querem compartilhar desse espaço de afago público
a egos jurisdicionais.
Para tanto, assinam até abaixo-assinado de defesa do colega premiado de
bom-mocismo, quando se torna alvo de críticas mais ou menos acerbas. Alguns
foram às manifestações “contra a corrupção” convocadas para derrubar governo,
manifestam-se cheio de emoção em perfis de Facebook e, depois, deram provimento liminar
para impedir posse de ministro de estado.
Num ambiente desses, a
reação de veemente indignação pública do Presidente do Senado Federal, Renan
Calheiros, contra o “jabaculê” determinado nas
dependências daquela Casa Legislativa por juiz de primeiro grau de Brasília,
não deve causar surpresa.
Expressou nada mais que seu protesto institucional contra aquilo que
entendeu ser um abuso de magistrado incompetente para tanto, pois o alvo da
diligência da polícia judiciária eram agentes da polícia legislativa que tinham
procedido a varreduras eletromagnéticas em locais de trabalho e residência de
Senadores que seriam alvos de investigação criminal.
Essas varreduras
tinham sido determinadas pela administração do Senado a pedido dos próprios
Senadores alvejados. Se as varreduras foram pedidas por estes e se entenda que
elas constituem embaraço a justiça, em tese são os Senadores objeto da escuta
ambiental que deveriam ser questionados sobre a iniciativa. Isso,
evidentemente, atrairia a competência do foro por prerrogativa de função que é
o Supremo Tribunal Federal.
Tanto mais é surpreendente, isto sim, que a Presidente do Conselho
Nacional de Justiça vá à imprensa, não para admoestar magistrados que
ultrapassam a linha do bom senso em suas atitudes e decisões, mas para se
dirigir com dedo em riste ao Presidente do Senado Federal, com discurso não
menos surpreendente de se ver como destinatária de cada crítica que se faça em
tom mais ou menos contundente a magistrados que procedem de forma, no mínimo,
controvertida.
O Conselho Nacional de
Justiça é órgão de controle externo da magistratura e tem, também, uma atuação
correcional em relação a estes. Não deve a dirigente do órgão se confundir com
aqueles que deve disciplinar, pois assim fazendo, reforça os desvios de conduta
e se porta feito porta-voz de uma corporação e não de uma instituição.
Não é mais novidade para ninguém que certos padrões de comportamento de
elevado risco para o governo das instituições no País têm fundo corporativo. É
mostrando os dentes que as mais poderosas categorias do serviço público se
alavancam para negociar vantagens.
Não é à toa que suas associações de classe são recebidas nos gabinetes parlamentares
e em órgãos de gestão financeira do executivo com tapete vermelho, água gelada
e café, enquanto aos servidores comuns e mortais só resta a via da greve e das
manifestações públicas.
Não é à toa que essas
categorias musculosas estão no topo da cadeia alimentar do Estado brasileiro,
recebendo ganhos desproporcionalmente superiores a outros servidores que
exercem suas funções com igual ou maior denodo e risco pessoal que Suas
Excelências. Trata-se de grave distorção no sistema de remuneração do setor
público brasileiro, que em nada contribui para sua eficiência.
Ao invés de querer colocar limites aos reclamos do Presidente do Senado
Federal, a Senhora Presidente do CNJ faria melhor em dar sua contribuição para
a contenção de atitudes de risco dos magistrados e buscar diálogo entre poderes
para impor ordem ao sistema remuneratório do serviço público federal.
O melhor caminho para isso seria a desvinculação de todos os ganhos de
servidores daqueles de atores que estão em posição de puxar o trem e gastos com
aumentos a seu favor: Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros de
Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Deputados e Senadores.
Norma constitucional
deveria vedar essa vinculação e dispor que o teto do serviço público (excluídos
o dos atores políticos mencionados) fosse estabelecido pela Lei de Diretrizes
Orçamentárias e o ganho de cada categoria devesse guardar proporção, com base
nos vetores de risco e complexidade, com as demais, de sorte que não se admita
que um general de exército ganhe brutos em torno de 14.000 reais mensais, um
professor titular de universidade receba cerca de 12.000 reais, quando um jovem
membro do ministério público seja remunerado com quase 30.000 reais no mesmo
período.
Para articular essa revolução de ganhos, que seja capaz de neutralizar
condutas de risco de categorias por prestígio, é fundamental o consenso entre
os poderes da República, para constituir o SINAGEPE – Sistema Nacional de
Gestão de Pessoal, integrando os três poderes e, aos poucos, as administrações
estaduais e municipais através de matriz única de ganhos, quiçá
regionalizando-a e submetendo-a a um fundo solidário de compensação de
debilidades financeiras dos entes que compõem a Federação.
Só assim se coloca cada agente do Estado em seu quadrado. Zela-se pelo
controle universal de gastos de pessoal e se moraliza a atuação dos diversos
atores nos três poderes de modo a se estabelecer, no Brasil, pela primeira vez,
um “Berufsbeamtentum”,
um funcionalismo profissional como existe em outras economias mais fortes deste
planeta.
*Eugênio José
Guilherme de Aragão: Ex-Ministro da Justiça e Professor da
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
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