quarta-feira, 6 de julho de 2011

Portugal/DE PRIVATIZAÇÃO EM PUNHO

5 julho 2011/Odiário.info http://www.odiario.info

Correia da Fonseca

Quando Passos Coelho fala em privatizar a RTP só pode estar a pensar na RTP1. Acontece que o momento não é bom não apenas por força da famigerada crise mas também e sobretudo porque os conteúdos habituais e praticamente obrigatórios dos canais privados, o famoso «telelixo», já chegam e sobejam para satisfação dos apetites do público que os consome.

1. É geralmente atribuída a Goebbels a conhecida frase que de qualquer modo caracteriza admiravelmente a atitude da direita mais truculenta perante a multissecular aspiração das gentes ao entendimento da vida e do mundo. «Quando ouço falar de cultura, puxo logo do meu revólver!», terá desabafado a criatura. Um pouco semelhantemente, e guardadas as devidas distâncias, bem se poderá dizer que ao longo de muitos anos, quando a direita portuguesa ouvia falar da RTP, logo empunhava o projecto de privatizá-la. Já era assim antes de 1992 quando o sector privado, coitado, se chorava por não possuir uma estação de TV, brinquedo que tanto lhe apetecia. Continuou a ser assim depois de 92, em cujo mês de Outubro surgiu a SIC, e de Fevereiro de 93, mês em que a TVI nasceu numa espécie de palhinhas sacras que o vento depois rapidamente dispersou. A partir de então, a pressão para a privatização da RTP assentou sobretudo em dois argumentos: o de que a sua existência custa muito dinheiro ao Estado, isto é, ao «bolso dos contribuintes», para usar aqui o chavão demagógico do costume, e o de que a sua existência gera uma situação de concorrência desleal, pois nem SIC nem TVI recebem apoios financeiros estatais. Quanto ao primeiro argumento, os que o usam dispensam-se cuidadosamente de comparar os custos da TV estatal portuguesa com os de qualquer outra estação homóloga por essa Europa fora, e, quanto ao segundo, omite-se que a RTP tem custos decorrentes de óbvio serviço público (RTP Internacional, RTP África, RTP Açores, RTP Madeira) que as privadas não suportam nem poderiam suportar.

2. Surgiu agora Pedro Passos Coelho, príncipe encantado que vem libertar a Iniciativa Privada, sua princesa e senhora, de um longo cativeiro, pois foi posta a ferros pelo Estado há já uns tempos largos, e um dos passos para essa libertação será a já anunciada privatização da RTP. Consta, com verdade ou sem ela, que o projecto não conta com a concordância do dr. Paulo Portas, aparentemente fiel escudeiro do senhor primeiro-ministro, e entende-se o bom fundamento dessa discordância: Portas achará, aliás cheio de razão, que em matéria de concorrência já está o mercado da publicidade na TV bem aviado, e que a vinda de uma terceira operadora será uma contribuição decisiva para a insustentabilidade financeira de todas e de cada uma. Porém, admitamos que Passos Coelho privatiza mesmo um dos canais da RTP, seguramente a RTP1, pois os outros não parecem poder suscitar a cobiça de ninguém. O momento não é bom e promete continuar a ser desfavorável nos tempos próximos, não apenas por força da famigerada crise que não dá sinais de querer emigrar para longes terras, mas também e sobretudo porque os conteúdos habituais e praticamente obrigatórios dos canais privados, o famoso «telelixo», já chegam e sobejam para satisfação dos apetites do público que os consome, não parecendo fácil que se descubram segmentos acrescidos de audiências para viabilização de um outro canal.

3. Curiosamente, este projecto de Passos Coelho chega no momento em que a TF1 francesa, perto de completar os vinte e cinco anos da sua condição de canal retirado da esfera pública e entregue às maravilhas do sector privado, esbarra com «flops» de audiência e de um modo geral com um inêxito por todos reconhecido. Mas deixemos essa área de problemas aos que se decidam a tomar conta do canal então privatizado da RTP e abordemos o que mais interessa aos milhões que não fazem negócios de compra e venda de canais de televisão ou, dizendo-o de um modo mais amplo, talvez mais enfático, o que mais interessa ao País. É que, usando uma fórmula agora usada com alguma frequência, dir-se-á que esta específica crise consubstanciada na amputação de um canal à RTP também pode ser uma oportunidade. Ao passar a «1» para mãos privadas, e com a «1» passar também a já velha vocação da RTP para nos fornecer, também ela, o telelixo em que a televisão privada se especializou não apenas em Portugal, é porventura o momento certo para a que a televisão pública portuguesa cumpra finalmente os deveres de promoção cultural da população, assim tentando diminuir o secular défice cultural que nos distingue do resto da Europa. Não é fácil, mas não é impossível e é imperioso. De resto, ao contrário do que por vezes parece supor-se, um povo ignorante não trabalha mais e melhor. Trabalhará talvez mais barato. Fica a gente a perguntar, quase sem ironia, se essa via de embaratecimento da mão-de-obra explicará em parte a televisão que temos tido.

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