quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Moçambique/IGREJA OCUPA VAZIO EXISTENTE NA RELAÇÃO ESTADO CIDADÃO (Parte I)

Júlio Manjate

8 dezembro 2008/Notícias

O Ministério da Justiça registou entre 1990 e 2008 um total de 619 novas igrejas em todo o país, que se juntam a tantas outras que vinham jogando o seu papel no esforço de construção de uma consciência humana à imagem divina. Olhando para a função da Igreja enquanto instituição inspiradora de modelos de correcção, de ética e da moral
pública torna-se difícil estabelecer uma relação causa-efeito entre o crescimento numérico das igrejas e a crescente degeneração dos padrões de moral na sociedade moçambicana. Ou seja, ocorre uma relação inversa entre a expansão da igreja e a atitude do Homem em relação à vida e ao “Mestre Divino”. Para discutir os contornos deste paradoxo e perceber a visão do Governo sobre o assunto, conversámos com o Prof. Dr. Carlos Machili, Director de Assuntos Religiosos no Ministério da Justiça. Da conversa com o Professor Machili, fica uma ideia clara dos erros e omissões cometidos ao longo do tempo, que propiciaram a multiplicação de confissões religiosas, muitas das quais têm o domínio do mundo da fé, sem nenhum conhecimento sólido sobre o mundo da razão. Na entrevista, que incluiu uma viagem pela Antropologia Teológica, Carlos Machili faz um olhar sobre o papel da Igreja em Moçambique, e avança a sua opinião sobre as razões do crescimento exponencial do número de instituições religiosas no país:

NOTÍCIAS (Not) – É comum olhar-se para a Igreja como uma instituição que inspira modelos de correcção, de moral e ética nas crianças, jovens e adultos. Nos últimos anos assiste-se à multiplicação de igrejas em Moçambique, fenómeno que, paradoxalmente, não está a ser acompanhado pela desejável elevação dos padrões de moral pública. Professor, como explica este fenómeno?

CARLOS MACHILI (CM) - As instituições religiosas, por vocação, lidam com o fórum da consciência da pessoa humana, o fórum mais íntimo, mais profundo do ser humano. A Igreja é uma organização social que trabalha para os Homens e que é organizada pelos Homens. Foi criada para atender assuntos divinos no Homem e por isso a sua responsabilidade é enorme. Agora, como é que ao longo do tempo as instituições religiosas se multiplicaram e como é que à nossa vista a imoralidade, o desvio dos cânones da moral e da ética parecem as coisas mais banalizadas? O que é que conduziu ao desfasamento de tudo aquilo que parece o fundamental da consciência do Homem, que é respeitar a si mesmo, respeitar o próximo, respeitar a natureza e respeitar Deus? A questão aqui é afinal o que fazem as Igrejas?

Not - ... ou talvez, como fazem...

CM - Repare que ao ter a função de educar ética, moral e civicamente os cidadãos, a Igreja também tem a obrigação de educar o indivíduo para o patriotismo, porque o Homem realize-se num contexto, ao lado de outro Homem. A esse contexto nós chamamos soberania, nação. Ora, como é que estes valores todos parecem estar espezinhados? Na minha opinião existem dois grandes factores: Primeiro, estamos num mundo de grande desenvolvimento tecnológico. Somos uma sociedade de consumo onde há uma grande expansão de ideias, onde discutimos muito e relativizamos tudo. O conhecimento está em todo lado, flutua e cada um capta e consome o que pode ter a qualquer momento. Isto choca. O nível de desenvolvimento da educação e da consciência, da religião e dos valores de ética está muito atrasado em relação ao impacto que este desenvolvimento e consumo das conquistas da humanidade alcançou. Este é o meu ponto de vista como professor…

Not – Isto por um lado...

CM – Sim... Aliás, deixa-me acrescentar que estamos desfasados! Consumimos como pessoas de um determinado nível quando é fraca a nossa educação para utilizar os meios de que dispomos. Falo da educação moral, ética, do conhecimento, das relações humanas, dos valores culturais, daquilo a que chamamos autoconfiança e dignidade multirracial como um ecossistema cultural. Ora, todo este dinamismo que existe à volta do mundo contemporâneo é forte. Entrou! Não podemos impedir ninguém de assistir à televisão. E na televisão encontramos tudo. A pornografia está na Internet, em todo o lado. Na verdade, estamos atrasados em termos de educação para valores. É isto que provoca o desfasamento das instituições religiosas.

Not – E qual é o segundo grande factor a que se referiu?

CM – O segundo factor são as próprias instituições religiosas, sobretudo as moçambicanas, que não estão à altura. Na minha opinião, o seu nível de reflexão está muito aquém deste tipo de desenvolvimento. Estão ultrapassadas. Por isso não têm receitas sólidas. Dominam bem o mundo da fé, mas não dominam o mundo da sociedade e da cultura. Em Moçambique temos um défice de Antropologia teológica entendida como todos os valores humanos, materiais etc., resumidos como um valor-conquista do Homem na sua relação com Deus. Com este desenvolvimento todo, a sociedade perdeu a noção de pecado. Quer dizer eu já não tenho fronteiras. Quando perco a consciência do que é mau para o meu corpo, para o corpo do outro, para a minha família, para o meu bairro, para a minha tribo, para a nação, vivo assim… uso e abuso de tudo e de todos. Este é o mal.

Not – Mas qual deve ser o papel das igrejas perante este cenário?

CM - As igrejas têm que fazer uma reflexão profunda. Todas são obrigadas a reflectir sobre o impacto das suas práticas na vida e na consciência das pessoas. Bem feito este trabalho, sairemos todos a ganhar no patriotismo, na consciência política e social, na educação do cidadão. Mas é preciso que todas as igrejas tenham consciência disso.

Not – Nas condições actuais, em que as igrejas praticamente concorrem entre si, o professor acha que isso seria exequível?

CM - Temos que fazer um grande esforço de chamar as igrejas a esta reflexão. Note que este marasmo é de 1990 para cá. O boom de igrejas aconteceu de 1990 para cá… Só em 2007 é que começámos a colocar travão à situação.

FRAGMENTAÇÃO DAS IGREJAS DIMINUI TENSÃO ENTRE FIÉIS

Desacordos, intrigas e ambição pela liderança são algumas das razões apontadas como estar por detrás da cisão de muitos grupos e associações que, muitas vezes, perseguem objectivos nobres. No caso das igrejas, onde em nome do dom individual vão surgindo novas seitas a cada dia, fica a ideia de que tal acaba sendo positivo na medida em que reduz os riscos de intolerância e irascibilidade que, de outro modo, poderiam conduzir à violência entre os fiéis...

Not – Mas o que é que motivou este boom de igrejas?

CM - Se fores a ver as igrejas que se multiplicaram são as mesmas. É, por exemplo, a igreja zione que se multiplicou em centenas de outras. Qual é a razão? São “guerrinhas” internas e intrigas entre os fiéis. Muitos dizem que é o Espírito Santo. Cada um pensa que tem um dom especial que já não cabe na sua comunidade e então parte para criar a sua comunidade. Ainda não estudamos as causas deste fenómeno em profundidade, mas a razão que está escrita é que se multiplicam por causa do dom. E nós não podemos ir contra o dom do Homem. Uma coisa é certa: esta situação acantonou a irascibilidade, a violência que iria acontecer se não tivesse havido esta divisão. É verdade que há situações de violência, mas haveria mais se não tivesse havido esta oportunidade de as pessoas se libertarem e se expandirem.

Not – E qual tem sido o papel do Estado perante esta situação?

CM - Na minha opinião vem aí um problema mais complicado sobre o qual ainda não pensamos devidamente. Um problema sociológico e político para o Estado. Repare, quem é que lida mais com o povo? Quem tem mais relações em profundidade com o povo? É o secretário do bairro, o chefe do quarteirão, o grupo dinamizador ou são os padres? Qual é a liderança que toca a vida dos moçambicanos mais constantemente? Brevemente vou publicar um livro que se chama “As elites religiosas moçambicanas” onde discuto este problema. A meu ver estas igrejas vieram ocupar um vazio político na relação entre o cidadão e a estrutura política. Pensando bem verás que cada igreja que nasce traz um novo líder para a comunidade, um líder que tem acesso, condiciona e manipula o íntimo das pessoas. Se um padre disser aos fiéis da sua igreja “não votar no fulano irmãos, Amen!” Acabou. Eles não vão votar...

Not – Mas, de alguma forma, há uma componente positiva nessa relação dos padres com o povo...

CM – Naturalmente. Sociologicamente eu digo que estas igrejas todas vieram ocupar um espaço feito pela distância entre o Estado, as suas instituições e os cidadãos. Temos o multipartidarismo, houve uma fragmentação partidária e as igrejas ocuparam o espaço que era ocupado pela Frelimo durante a revolução e que foi ficando em branco ao longo do tempo...

Not- Este cenário não preocupa o Estado? Não o fragiliza?

CM - Para mim este fenómeno é rico e ao mesmo inquietante. O Estado não se deve eximir-se das suas responsabilidades. O Estado agiu correctamente ao criar esta abertura. O Estado gere a soberania. E esta estende-se a todos os moçambicanos que estão no território. A Igreja lida com a consciência. O Estado tem as leis, tem o poder que é extensivo a todos moçambicanos, muçulmanos, hindus, hebreus, etc. Eles obedecem. O Estado obriga-os a cumprir com a lei se querem fazer religião no país. Mas por respeito do fórum de consciência o Estado criou este órgão para lidar com assuntos da religião...

ABERTURA DO VATICANO ESTIMULOU NACIONALISMO

Nalgum momento da história de Moçambique, a Igreja foi conotada com o sistema colonial, entendida como a instituição que foi abrindo caminho para que, através do Evangelho, se amordaçasse a ira dos moçambicanos contra a dominação. Com novos factos a chegar à superfície, ficam ilações sobre o papel que a Igreja jogou na formação e consolidação de ideias do nacionalismo...

Not – Há alguma diferença na maneira como o Estado actual lida com a Igreja em relação à forma como procedia o Estado colonial?

CM - Antes da independência quem lidava com as igrejas era o Estado português, e tinha o catolicismo como religião oficial. Estabelecia relações com a cúpula da Igreja Católica. Numa primeira fase era através de despachos do Vaticano sobre assuntos de relação entre a Igreja e o Governo português, as chamadas Bulas pontifícias, que era uma espécie de decretos, documentos operacionais. Na década de 40 chegou a necessidade de se fazer as chamadas concordatas que definiam novas formas de relação Igreja-Estado. A grande preocupação nestes acordos era a relação com as antigas colónias... Este acordo com o Vaticano era acompanhado de um regulamento chamado estatuto missionário. Nesta altura já se fazia sentir o impacto da sociedade das nações e da doutrina de 1920 sobre a autodeterminação dos povos, criada pelos Estados Unidos da América. Nesta altura as elites instruídas africanas já começavam a piscar. A resistência à dominação colonial ganhava uma dimensão mais pensada, organizada. O Vaticano queria a Igreja nas mãos, e propôs a criação de um Cardeal para Moçambique, o Cardeal Gouveia. O Vaticano entendeu o perigo que Moçambique corria por ficar muito isolado e então criou um Cardeal para contornar o controlo exagerado de Lisboa...

Not – Em que medida este processo terá contribuído para a eclosão do movimento nacionalista em Moçambique?

CM - Fugindo do controlo directo da hierarquia de Portugal, o Cardeal Dom Clemente de Gouveia foi permitindo que as missões, sobretudo as protestantes, fossem fazendo alguma coisa, nomeadamente a Igreja Presbiteriana que foi autorizada a operar em 1875 e a Igreja Anglicana que começou a operar em 1881, antes da conferência de Berlim. Portanto foi esta abertura que permitiu a criação dos seminários na Namaacha, Maputo, Manica etc. Esta acção foi pensada pelo Vaticano e não pela igreja portuguesa. (A seguir: Parte II)

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