sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Angola/O "Destino Manifesto" e os murais de David Siqueiros

14 agosto 2015, jornal de Angola http://jornaldeangola.sapo.ao (Angola)

Luís Alberto Ferreira

Quando se fala das “primárias” no interior do velhusco bipartidismo dos Estados Unidos, acontece o inevitável: cada latino-americano, ao saltar da cama, e antes mesmo de escovar os dentes, interroga-se, aflito, sobre o que poderão ser as “ideias” de algum troglodita republicano sobre “la comunidad”.

Apesar da variedade psicopática das ambiguidades no Partido Republicano –  a respeito dos latino-americanos –  o pano de fundo é imutável, porque ideológico. Conhecemos, de longa data, o refogado dessa caldeirada histórica, inseparável das ementas que propõem racismo, xenofobia, medidas sociais assimétricas, política externa de terra queimada.
 
Donald Trump, que desde o tiro de partida é o concursista favorito nas “primárias” do Partido Republicano, tomou já a dianteira na prova dos “conflitos localizados”. Os livros sapienciais da Sagrada Escritura recomendam-lhe a humildade catártica. Ele, pelo contrário, ostensivo na toada caceteira, responde ao apelo ancestral do “Destino Manifesto”. O decatlo pessoal de Donald Trump caracterizou-se, até agora, pelos insultos grosseiros  proferidos contra a República Mexicana, contra os mexicanos e contra tudo o que lhe recorde os insucessos dos seus negócios de empresário em terras mexicanas. Este cavalheiro parece ser capaz de
sair vitorioso das “primárias” no Partido Republicano e, portanto, candidatar-se à presidência dos Estados Unidos da América do Norte. 

Por associação de ideias, o fenómeno Trump leva-nos ao cerne de variadíssimas questões. O México tem sido, no tempo e no espaço, um vizinho muito resignado dos Estados Unidos. Se fosse um vizinho mais, um pouco mais peitudo, começaria por sugerir aos actuais herdeiros do “Destino Manifesto” um debate sobre a designação oficial das duas nações. Porque ambas são Estados Unidos e ambas são da América do Norte, o México “un poquito” menos por ter parte do seu território na América Central. Tanto assim que o ALCA, tratado de raíz económica e favorável, sobretudo, aos interesses de Washington, é  aglutinante dos chamados três países da América do Norte: Estados Unidos da América do Norte, Estados Unidos Mexicanos e Canadá. Desfasamentos que só se entendem no quadro histórico-psicológico do “Destino Manifesto”. Vejamos, então, como ficam “compreensíveis” os insultos e os pontapés de Donald Trump na “gramática” das alusões ao México, aos mexicanos e aos valores mexicanos. 

O auge do “Destino Manifesto” ocorreu lá para trás, na década de 1840, com a doutrina interiorizada de forma perigosa: expressava a crença de que o povo dos Estados Unidos seria “o eleito por Deus para civilizar as Américas”. Daí o convencimento nacional de que o expansionismo resultava simplesmente da “vontade divina”. Houve nos anos de 1850 um decréscimo na veiculação oficial desta “verdade” unilateral, mas os integristas republicanos voltariam à carga nos anos de 1880: “O melhor país do mundo” com legitimidade (de aviário) para o “expansionismo continental”. Já antes, em 1857, o “aviso” aos mexicanos de várias gerações havia moldado o discurso de posse do presidente norte-americano James Buchanan: “A expansão dos Estados Unidos no continente é o destino da nossa raça e nada pode detê-la”. Uns quarenta anos decorridos, em 1896, nascia no México o portentoso muralista David Alfaro Siqueiros. E, em 1904, aterrava no planeta outro genial mexicano: o caricaturista, pintor, gravador, antropólogo, Miguel Covarrubias. Os dois “ensinaram” os norte-americanos da época a considerarem a afirmação emancipada dos grandes talentos nascidos à revelia do “Destino Manifesto”. 
O que é demonstrável no “candidato” Donald Trump –  a ignorância –  não se aplicaria, em 1925, em Nova Iorque, a um Miguel Covarrubias acabado de chegar e a quem os Estados Unidos agradeceram um extraordinário álbum de caricaturas de 66 celebridades norte-americanas da política, do cinema, do teatro, da literatura, da música, do desporto. Covarrubias, que se destacou, como poucos, nas páginas da revista nova-iorquina “Vanity Fair”, acabou, assim, por conquistar notoriedade mundial. David Alfaro Siqueiros, mais velho que Covarrubias e expoente máximo do muralismo mexicano, iria mais longe. O seu famoso e monumental “Enterro do Trabalhador”, prodígio da arte muralista, deslumbrou os norte-americanos, que lhe abriram as portas de galerias tão relevantes quanto a “Delphic”, em Nova Iorque, e a “Weyhe”, em Los Ángeles. Instalado na Califórnia, pintou Siqueiros alguns murais de arrebatadora gema: “Assembleia na Rua”, “Eco de um Grito”, “O Soluço”, os dois últimos para sempre alojados nas galerias do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Além disso, David Alfaro Siqueiros, em 1936, uma vez mais em Nova Iorque, quando da Exposição de Arte Contemporânea, na Galeria Saint Regis, foi convidado de honra.
 
O leitor, cheio de razão, verá neste exercício uma espécie de advertência glorificante do génio mexicano –  enquanto réplica aos insultos do republicano Donald Trump, candidato à rendição de Barack Obama na colina do Capitólio, em Washington. Outros ingredientes fosforejam, contudo, na origem da advertência. De ordem política, de ordem moral, de ordem histórica. Siqueiros, que morreu em 1974, seria, hoje, insuportável para a membrana das fossas nasais ideológicas do republicano Donald Trump. Porque
Siqueiros, em cujo anel de amigos se incluía o médico angolano Arménio dos Santos Ferreira, era também um activista político de primeira grandeza. Marxista-leninista, conhecia a História profunda comum  ao México e aos Estados Unidos. Era ele quem, nas reuniões de pintores e escritores que aconteciam em Cuernavaca, no México, lembrava “a crueldade e o sadismo inenarráveis” dos norte-americanos  quando, em 1846 e 1848, eles invadiram e arrebataram os territórios que são hoje o Texas, o Arizona, a Califórnia, o Novo México… Versão subscrita pelos próprios norte-americanos, alguns, como o general Winfield Scott ou o tenente George Meade, e historiadores como Bancroft  e  Livermore, que reconheceram: “Os mexicanos feitos prisioneiros eram lançados, vivos, para o interior de tanques com água ou azeite a  ferver”.
A mão-de-obra mexicana paga com requinte esclavagista é, também, parte da História. Ao fundo de cujo túnel remanesce a sombra aziaga do “Destino Manifesto”.


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