A União Europeia está abandonando os princípios sociais e de
solidariedade que foram a base de sua criação. Exemplo disso é uma sentença que
permite a expulsão de um país europeu de cidadãos de outro país europeu que não
encontra emprego, e conclui: agora os europeus estarão forçados a aceitar
qualquer trabalho e a lei do mercado se converterá no principal critério para
se movimentarem no continente.
Roberto Savio*
A Europa apresenta sua nova imagem no Mediterrâneo depois da
operação marítima italiana de busca e resgate Mare Nostrum, iniciada em outubro
de 2013 a um custo de nove milhões de euros mensais, que conseguiu recuperar
quase 100 mil imigrantes, ainda que tenha custado a morte de outros três mil
que tentaram a travessia.
A União Europeia (UE) esta colocando em marcha a Operação Conjunta
Tritão, com um orçamento mensal de 2.9 milhões de euros) 3.6 milhões de
dólares) com fundos garantidos até o final deste ano.
Sua função não ‘salvar vidas mas reforçar os controles
fronteiriços.
Patrulhará só até 30 milhas náuticas da costa, o que é
insignificante em comparação com a operação Mare Nostrum, que chegava até a
costa da Líbia.
Mesmo tratando-se de uma operação muito limitada, o primeiro
ministro da Grã Bretanha, David Cameron, declarou que seu país não contribuirá
porque o resgate de imigrantes é um estímulo para cruzar o Mediterrâneo.
Agora os europeus estarão forçados a aceitar qualquer trabalho, e
portanto, a lei de mercado se converterá no principal critério para sua
movimentação no Continente.
Há uma lógica perversa nessa afirmação: enquanto mais imigrantes
morrem, maior será o desalento para que outros tentem a travessia. Portanto, a
situação ideal seria alcançar uma taxa de mortalidade capaz de deter a
imigração ilegal de uma vez por todas!
Nesse contexto, vale a pena ressaltar que o governo britânico está
estudando a possibilidade de se retirar do Convênio Europeu dos Direitos
Humanos, algo que inclusive o presidente russo, Vladimir Putin, nunca
considerou. O argumento é que nada pode estar acima dos tribunais britânicos.
Londres também se nega pagar sua parte no incremento das
contribuições que correspondem aos membros da UE e está estudando a forma de colocar
um limite anual ao número de europeus com direito de trabalhar na Grã Bretanha.
Por último, o governo de Cameron recebeu com indignação a sentença
do Tribunal Europeu de Justiça, que colocou um teto nas bonificações que os
banqueiro podem receber, rechaçando a alegação da Grã Bretanha de que essa
medida era ilegal.
Londres argumentava que os níveis salariais – mesmo se tratando de
banqueiros desacreditados -- foram parte da política social e, portanto, está
sob autoridade dos Estados membros e não da UE.
Entretanto, o mesmo tribunal ditou outra sentença que exime os
Estados membros da UE de permitir a residência a cidadãos de outros países
europeus que não tem emprego ou atividades econômicas. Em consequência, o
parlamento alemão já esta preparando uma lei para expulsar os imigrantes
europeus que não encontram um posto de trabalho no prazo de seis meses.
Está claro que isto abrirá as portas a todos os demais países da UE
para reduzir a livre circulação dos europeus pelos 28 países do bloco, que era
a pedra fundamental da visão original da Europa solidária.
Agora os europeus estarão forçados a aceitar qualquer trabalho, e
portanto a lei do mercado se converterá no principal critério para se
movimentarem pelo continente.
Desde a assinatura da Ata Única Europeia em 1986, os governos nunca
conseguiram colocar-se de acordo sobre uma base social mínima, que teria
outorgado aos cidadãos direitos trabalhistas para atuar coletivamente como
europeus diante de um mercado que está unificado economicamente, mas carece de
legislação social comum.
De fato, agora chegou-se ao ponto onde os critérios sociais são os
últimos a ser invocados para julgar se um país está se recuperando ou não,
muito depois dos critérios econômicos e financeiros.
Uma Grécia devastada volta a ser considerada pelos mercados
financeiros porque seus indicadores econômicos estão em ascensão.
E a Espanha é frequentemente citada como exemplo de que a aplicação
das políticas de austeridade, indicadas pela chanceler alemã Ângela Merkel,
constitui exemplo para os países atrasados como Itália e França.
Contudo, uma fonte bem diferente, a organização humanitária
católica Cáritas, informa que só 34,3 por cento dos espanhóis têm uma vida
normal, enquanto que 40,6 por cento ficaram prisioneiros na precariedade, 24,2
por cento estão em exclusão parcial e 10,9 por cento padecem de severa
exclusão.
Para compreender essa tendência, há seis anos, 50,2 por cento dos
espanhóis levava uma vida normal. Agora um cidadão de cada quatro sofre de
exclusão e desses onze milhões de excluídos, 77,1 por cento estão
desempregados, 61,7 por cento não têm casa e 46 por cento não contam com
atendimento médico.
Segundo relatório recente do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) sobre os menores na recessão, 76,5 milhões de crianças nos
países ricos vivem em condições de pobreza. Na Espanha, 36,3 por cento deles
vivem em estado de precariedade.
A novidade agora é que algumas das maiores instituições financeiras
começaram a chamar a atenção sobre as questões sociais.
A presidenta da Reserva Federal dos Estados Unidos, Janet L Yellen,
confessou sua preocupação pelo aumento da desigualdade da riqueza patrimonial e
dos ingressos em seu país e seu temor diante da diminuição das possibilidades
das pessoas progredirem economicamente.
O presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, por sua vez,
cita com frequência temas como “desemprego insuportável” e “exclusão
crescente”.
No transfundo está o fato comprovado de que a maioria dos países
que tomaram medidas de exceção para reduzir a dívida pública, tiveram um fraco
crescimento como os países europeus.
Ao mesmo tempo, os países que introduziram uma política de
estímulo, como Estados Unidos, Grã Bretanha e Japão, tiveram melhor desempenho,
inclusive redução do desemprego.Não obstante, Merkel continua ignorando as
advertências do Fundo Monetário Internaiconal (FMI), do Banco Mundial e outras
instituições internacionais já que a ela só lhe interessa agradar a seu
eleitorado, que se identifica cada vez mais com seus interesses imediatos,
perdendo de vistas as perspectivas europeias.
E como era previsível, os bancos continuam renitentes em considerar
os problemas sociais. Recentemente, os reguladores europeus e estadunidenses
impuseram novas multas, por 4.5 bilhões de dólares a uma série de grandes
bancos por atividades ilegais, aproximando da marca de 200 bilhões de dólares
desde que começou a crise financeira em 2008.
Jamie Dimon, presidente executivo do JP Morgan, o maior banco do
mundo, declarou em uma entrevista que é importante que os Estados Unidos criem
um “porto seguro” em que a prática ilegal da contratação de familiares de
líderes políticos pelo banco, “não seja castigada”.
De acordo com o prêmio Nobel de Economia, Joseph Stíglitz, entre 2009
e 2010 nos Estados Unidos 93 por cento do crescimento econômico terminou nos
bolsos de um por cento mais rico da população. Além disso, as 16 mil famílias
com uma riqueza de pelo menos 111 milhões de dólares virão duplicar sua parte,
subindo desde 2012 até representar 11,2 por cento da riqueza nacional.
As ‘últimas eleições presidenciais no Estados Unidos custaram 3.4
bilhões de dólares e a maior parte procedia dessa pequena minoria. A
democracia, em que todos os votos são iguais, é cada vez mais uma plutocracia
em que o dinheiro decide.
Em uma reunião com líderes dos movimentos sociais, em 26 de
outubro, o papa Francisco disse: “Me chamam de comunista por falar da terra, do
trabalho e da moradia… mas o amor pelos pobres está no centro do Evangelho”.
Certamente os governos estão fazendo o contrário.
*IPS de
Roma, especial para Diálogos do Sul – editado por Pablo Piacentini – Roberto
Savio, fundador e ex diretor geral da agência IPS e editor de Other News.
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