29 maio 2014, Правда.Ру, Pravda.ru http://www.pravda.ru (Россия, Rússia)
David Harvey é professor de antropologia e geografia
do Centro de Graduação da City University of New York (CUNY). Dá aulas sobre O Capital de Marx há mais de 40 anos e é autor de um 'guia de
leitura', em dois volumes, para ler a grande obra de Marx. Essa leitura
microscópica de O Capital é fruto de uma série de 13 conferências, cujos vídeos
Harvey distribuiu online.
Seu livro mais recente é 17 Contradições e o Fim do Capitalismo.[1] O livro começa com uminsight de Marx - que crises periódicas são endêmicas nas economias capitalistas - e oferece uma análise da atual conjuntura histórica. Conversei com o professor Harvey em Londres, semana passada.
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Prospect Magazine: No início do livro, o senhor observa, como outros também observaram, que há algo de diferente na mais recente crise do capitalismo, a crise financeira global de 2008. "Seria de esperar que todos" - o senhor escreveu lá - "tivessem diagnósticos concorrentes a oferecer sobre o que está errado, e que houvesse uma proliferação de propostas de o que fazer para corrigir tudo. O que mais surpreende hoje é a miséria de pensamento novo e de novas políticas." Por que não há nem diagnósticos nem propostas nem ideias novas?
David Harvey: Uma hipótese é que a concentração de poder de classe que se vê hoje é de tal modo gigantesca, que não há por que a classe capitalista precise ou queira ver qualquer tipo de pensamento novo. A situação, por mais que seja disruptiva para a economia, não é necessariamente disruptiva para a capacidade de os ricos acumularem
O problema da demanda agregada, que era o centro do pensamento nos anos 1930s, é problema de realização, em termos marxistas. As pessoas respondiam a pergunta e, na sequência, entraram num problema de produção, que foi respondido pelo monetarismo e pela economia de oferta. E exatamente hoje, o mundo está dividido entre os que se põem do lado da oferta e querem mais austeridade, e outros - China, Turquia e quase todas as economias em desenvolvimento - que assumem a linha keynesiana.
Mas parece que só há duas respostas - não há "terceira via". No âmbito do capitalismo, as possibilidades são limitadas. O único modo pelo qual você pode encontrar outra resposta é pôr-se fora do capitalismo, mas ninguém quer nem ouvir falar disso!
Prospect Magazine: Isso posto, o senhor aceita, no livro, que há elementos na classe capitalista, na classe intelectual, que reconhecem a ameaça que o senhor identifica e chama de "contradições" do capitalismo. Exemplo notável aí é a discussão do problema da desigualdade.
David Harvey: Credito ao movimento Occupy ter lançado e posto em circulação essa nova conversa. O fato de que temos em New York um prefeito completamente diferente do que havia antes e que disse que vai fazer tudo que puder para reduzir a desigualdade, toda a possibilidade dessa discussão é coisa que brotou diretamente do movimento Occupy. É interessante que todos sabem do que você está falando, sempre que se fala do "1%". A questão do 1% foi afinal posta na agenda e se tornou objeto de estudos em profundidade, como, por exemplo, o livro de Thomas Piketty, O Capital no século 21 [fr.[2]]. Joseph Sitglitz também tem um livro sobre desigualdade e vários outros economistas estão falando do assunto. Até o FMI já está dizendo que há um perigo específico que surge quando a desigualdade alcança determinado nível.
Prospect Magazine: Até Obama já anda dizendo isso!
David Harvey: Mas Obama nada diria sobre isso se o movimento Occupy não tivesse aberto a trilha. Mas quem está fazendo alguma coisa sobre o problema e de que modo alguma coisa estaria sendo realmente mudada? Se se consideram as políticas reais, vê-se que as desigualdades continuam a aprofundar-se. Há reconhecimento apenas retórico do problema, mas não há reconhecimento político, em termos de políticas ativas e redistribuição ativa.
Prospect Magazine: O senhor falou de Occupy. No livro, o senhor critica muito duramente o que o senhor chama de "restos da esquerda radical" - a qual hoje, para o senhor, é predominantemente liberal, libertarista e anti-estado.
David Harvey: Tenho uma regra que por definição nunca falha: o modo de produção dominante, seja qual for, e sua articulação política, criam a forma de oposição contra eles. Assim, as grandes fábricas e grandes corporações - General Motors, Ford etc., - criaram uma oposição baseada no movimento trabalhista e nos partidos da social-democracia; o rompimento dessa ordem - e vivemos hoje precisamente o momento desse rompimento - criou esse tipo de oposição dispersa e dispersiva que só sabe usar algumas específicas linguagens para suas reivindicações.
A esquerda não dá sinais de estar percebendo que muito do que diz é consistente com a ética neoliberal, em vez de lhe fazer oposição... Parte do anti-estatismo que se encontra hoje na esquerda casa-se perfeitamente com o anti-estatismo do capital empresarial corporativista.
Preocupa-me muito que não se ouça pensamento da esquerda que diga "Vamos nos afastar dessas conversas e observar o quadro completo." Espero que meu livro contribua para que tenhamos essa nova conversa.
Prospect Magazine: O livro conclui num lugar interessante - com algo como um programa, 17 "ideias para a prática política". Mas não aparece a pergunta, embora, sim, possa estar implícita no que o senhor acabou de dizer, sobre qual é o veículo apropriado para realizar aquele programa. Não se sabe onde encontrá-lo. Não é óbvio que o encontraremos.
David Harvey: Uma das coisas que temos de aceitar é que está emergindo um novo modo de fazer política. No presente, ainda é muito espontaneísta, efêmero, voluntarista, com alguma relutância a deixar-se institucionalizar. Como poderá ser institucionalizado é, creio eu, questão aberta. E não tenho resposta para isso. Mas é claro que, de algum modo, terá de institucionalizar-se ou ser institucionalizado. Há novos partidos começando a emergir - o Syriza na Grécia, por exemplo. O que me preocupa é o que comento no livro como um estado de alienação em massa, que está sendo capitalizado amplamente pela direita. Há portanto, sim, alguma urgência em a esquerda tratar da questão de como nós nos institucionalizaremos como força política, para resistir contra uma virada de direita e capturar parte significativa do descontentamento que está nas ruas e empurrá-lo numa direção progressista, não em direção neofascista.
Prospect Magazine: O senhor descreve seu livro como tentativa para expor as contradições, não do "capitalismo", mas do "capital". O senhor pode explicar essa diferença?
David Harvey: Essa diferença vem de minha leitura de Marx. Pensa-se quase sempre que Marx teria criado alguma espécie de compreensão totalista do capitalismo, mas Marx não fez nada disso. Marx não arredou pé da economia política e manteve seus argumentos sempre na linha de como opera o motor econômico de uma economia capitalista. Se você isola o motor econômico, você consegue ver quais serão os problemas daquela economia.
Não implica dizer que não haverá outros tipos de
problemas numa sociedade capitalista - é claro que há racismo, discriminação
por gênero, problemas geopolíticos. Mas a questão que me preocupava ao
escrever esse livro era outra, mais limitada: como funciona o motor da
acumulação de capital?
Já estava bem claro desde o estouro de 2007/8 que havia alguma coisa errada com o próprio motor. E dissecar o que esteja errado com o motor já será um passo na direção de política mais ampla. Esse motor econômico é muito complicado. E Marx criou um meio para compreender o motor econômico, servindo-se de ideias como "contradição" e "formação-de-crises".
Prospect Magazine: Mais uma questão de definição: o que é capital?
David Harvey: Capital é o processo pelo qual o dinheiro é posto em ação para que se obtenha mais dinheiro. Mas é preciso muito cuidado, se só se fala de dinheiro, porque em Marx há uma relação muito complexa, como aponto no livro, entre "valor" e "dinheiro". O processo é de busca de valor para criar e apropriar-se de mais valor. Mas esse processo assume diferentes formas - a forma dinheiro, de bens e mercadorias, processos de produção, terra... Ele tem manifestações físicas, forma-de-coisa, mas, no fundamento, não é coisa: é um processo.
Prospect Magazine: Voltemos à noção de "contradição", que é a categoria analítica central no livro. O senhor fez uma distinção entre os choques externos pelos quais pode passar uma economia capitalista (guerras, por exemplo) e contradições, no seu sentido da palavra. Assim, por definição, contradições são internas ao sistema capitalista?
David Harvey: Sim. Se você quiser redesenhar o modo de produção, é preciso, então, responder as questões postas pelas contradições internas.
Prospect Magazine: O senhor identifica três classes de contradições, que o senhor chama de "fundacionais", as "mutantes" e as "perigosas". Comecemos pela primeira categoria: o que faz as contradições fundacionais serem fundacionais?
David Harvey: Não importa onde esteja o capitalismo e o modo de produção capitalista, você sempre encontrará essas contradições em operação. Em qualquer economia - seja a China contemporânea, o Chile ou os EUA - a questão do valor de uso e do valor de troca, por exemplo, lá estará, sempre. Há algumas contradições que são traços permanentes de como o motor econômico está montado. E há outras que mudam constantemente ao longo do tempo. Então, eu quis distinguir as que são relativamente permanentes e as outras, que são muito mais dinâmicas.
Prospect Magazine: Algumas contradições fundacionais são mais fundacionais que outras? Um dos traços que mais chamam a atenção no livro é que tudo, no seu modelo analítico, parece derivar, no fundo, da diferença entre valor de troca e valor de uso.
David Harvey: Ora... esse é o ponto inicial da análise. Sempre me chamou a atenção que Marx dedicou muito tempo para demarcar o ponto no qual sua análise começaria; e decidiu começar por aí, porque é o ponto de partida mais universal. Mas o que mais me impressiona - e trabalho com Marx há muito, muito tempo - é o quanto as suas contradições são intimamente interligadas. Você percebe que essa distinção entre valor de uso e valor de troca pressupõe alguma coisa sobre propriedade privada e o Estado, por exemplo.
Prospect Magazine: Outra das suas contradições fundacionais é entre "propriedade privada e o Estado capitalista". Quer dizer: a tensão ou a contradição entre os direitos individuais de propriedade e o poder coercivo do Estado. Agora, imaginemos alguém como Robert Nozick, criado na tradição liberal, Lockeana, que chega e diz que não há aí qualquer contradição. Ao contrário: o papel do estado "mínimo" é proteger a propriedade privada.
David Harvey: Uma das coisas que digo sobre contradições é que elas estão sempre latentes. Por isso, a existência de uma contradição não gera, necessariamente, uma crise. Gerará, sob algumas dadas circunstâncias. Portanto, é possível construir teoricamente a ideia de que tudo que um estado 'guarda-noturno' faz é proteger a propriedade privada. Mas nos sabemos que esse estado 'guarda-noturno' tem muito mais a fazer, além disso. Há externalidades no mercado que têm de ser controladas; já bens públicos que têm de ser fornecidos - e assim, muito rapidamente, o estado acaba por se envolver em todos os tipos de atividades, muito além de apenas cuidar do quadro legal dos contratos e dos direitos à propriedade privada.
Prospect Magazine: O senhor nega que haja qualquer conexão necessária entre capitalismo e democracia. Pode explicar por quê?
David Harvey: A questão da democracia depende muito de definições. Supostamente haveria democracia nos EUA, mas é claro que não há, é uma espécie de farsa, de engodo - é a democracia do poder do dinheiro, não do poder do povo. E minha avaliação, desde os anos 1970s, a Suprema Corte legalizou o processo pelo qual o poder do dinheiro corrompe o processo político.
Prospect Magazine: Há um aspecto do poder do estado que avançou para o centro do palco na crise recente e imediatamente depois, sobretudo durante a crise da dívida na Eurozona: falo do poder dos bancos centrais. O senhor acha que a função dos bancos centrais mudou de modo significativo durante a era dos 'resgates'?
David Harvey: Evidentemente mudou. A história dos bancos centrais é, ela própria, terrivelmente interessante. Não tenho certeza de que o que o Federal Reserve fez durante a crise tenha tido qualquer base legal. O Banco Central Europeu, por sua vez, é caso clássico do que Marx disse, quando comentou a Lei dos Bancos de 1844, a qual, para ele, teve o efeito de estender e aprofundar a crise de 1847-8 na Grã-Bretanha. Mas nos dois casos, do Fed e do Banco Central Europeu, o que vimos é uma espécie de ajuste no traseiro - como alfaiates fazem com calças apertadas - de grandes instituições e a emergência de políticas que só seriam justificáveis depois do fato. Quero dizer: não há dúvida alguma de que, sim, houve mudanças no front do banco central.
Prospect Magazine: Há um conceito ao qual o senhor volta várias vezes no livro: o conceito de "conversão em mercadoria" [também 'mercadorização', ing.commodification (NTs)].
David Harvey: O capital trata, sempre, da produção de mercadorias. Se há terreno não-mercadorizado, ali o capital não entra nem circula. Um dos meios mais fáceis para o capital conseguir penetrar aquele espaço é o estado impor ali um sistema de privatização - ainda que privatize algo que é só ficcional. Os créditos de carbono, por exemplo - trocar direitos de poluir é excelente exemplo de mercadoria criada por processo ficcional, que tem efeitos muito reais sobre o volume de dióxido de carbono na atmosfera, e assim por diante. Criar mercados onde antes não havia mercados é um dos meios pelos quais, historicamente, o capital expandiu-se.
Prospect Magazine: O senhor foi pesadamente influenciado pelo trabalho de Karl Polanyi nessa área, não? Especificamente a obra prima dele, A Grande Transformação.[3]
David Harvey: Polanyi não era marxista, mas compreendia, como Marx também compreendeu, que as ideias de terra, trabalho e capital não são mercadorias no sentido ordinário, mas que assumem uma forma de mercadoria.
Prospect Magazine: Um dos aspectos mais impressionantes do livro, pode-se dizer, mesmo, mobilizadores, emocionantes, é o relato que o senhor faz dos custos humanos da conversão em mercadoria - especificamente a conversão em mercadoria daquelas áreas da experiência humana que antes não eram parte do 'nexo dinheiro' [orig. cash nexus, exp. de Marx]. Há aí uma conexão com o que o senhor chama de "alienação universal". O que é isso?
David Harvey: Vivemos há tempos num mundo no qual o capital lutou sem parar para diminuir o trabalho, o poder do trabalho, aumentando a produtividade, removendo o aspecto mental dos serviços e empregos. Quando você vive em sociedade desse tipo, surge a questão de como alguém pode encontrar algum significado na própria vida, dado o que se faz como trabalho, no local de trabalho. Por exemplo, 70% da população dos EUA ou odeia trabalhar ou é totalmente indiferente ao trabalho que faz. Em mundo desse tipo, as pessoas têm de encontrar alguma identidade para elas mesmas que não seja baseada na experiência do trabalho.
Sendo assim, surge a questão do tipo de identidade que as pessoas podem assumir. Uma das respostas é o consumo. E temos um tipo de consumismo irrefletido que tenta compensar a falta de significação de um mundo no qual há bem poucos trabalhos com algum significado. Irrita-me muito ouvir políticos dizer que "vamos criar mais empregos"... Mas que tipo de empregos?
A alienação brota, entendo eu, de um sentimento de que temos capacidade e poder para ser alguém muito diferente do que é definido por nossas possibilidades. Daí surge a questão de até que ponto o poder político é sensível à criação de outras possibilidades? As pessoas olham os partidos políticos e dizem "Aqui, não há nada que preste." Há, pois, a alienação para longe do processo político, que se manifesta em comparecimento declinante nas eleições; há a alienação para longe da cultura da mercadoria, também, que cria uma carência e o correspondente desejo por um outro tipo de liberdade. As irrupções periódicas que foram vistas pelo mundo - parque Gezi em Istanbul, 'manifestações' no Brasil, quebra-quebra em Londres em 2011 - obrigam a perguntar se a alienação pode vir a ser uma força política positiva. E a resposta é sim, pode, mas não se vê nada parecido nos partidos ou movimentos políticos. Viram-se alguns elementos disso no modo como o movimento Occupy ou os Indignados na Espanha tentaram mobilizar pessoas, mas foi coisa efêmera e não amadureceu em ação mais substancial. Mesmo assim, há muito fermento nos campos da dissidência cultural; há algo em movimento, e é fonte de alguma esperança.
Prospect Magazine: Quando o senhor discute as contradições "perigosas", o senhor oferece o que me parece ser uma versão do materialismo histórico de Marx. Quero dizer: o senhor pensa, como Marx, que o presente está grávido de futuro, embora o senhor não pense de modo inevitabilista... Acho também que o senhor não vê nada de inevitabilismo, tampouco, no próprio Marx. Estou certo?
David Harvey: Não vejo, não, nada de inevitabilismo em Marx. Há quem diga que Marx teria dito que o capital desabará sob o peso de suas próprias contradições, e que Marx teria uma teoria mecanicista das crises das crises capitalistas. Mas jamais encontrei uma linha em que Marx tenha escrito coisa semelhante! O que Marx, sim, disse é que as contradições estão no coração das crises e que crises são momentos de oportunidade.
Marx também disse que os seres humanos podem criar a própria história, mas que não escolhem as condições sob as quais criarão a própria história. Para mim, portanto, há um Marx que, se não é libertarista, diz que os seres humanos são capazes de decidir coletivamente, de empurrar as coisas mais para uma direção, que para outra. Marx criticou o socialismo utópico, porque entendia que o socialismo utópico não lidava com o onde estamos. Marx disse que é preciso analisar onde se está, ver o que é viável para nós e, na sequência, tentar construir algo radicalmente diferente. *****
Já estava bem claro desde o estouro de 2007/8 que havia alguma coisa errada com o próprio motor. E dissecar o que esteja errado com o motor já será um passo na direção de política mais ampla. Esse motor econômico é muito complicado. E Marx criou um meio para compreender o motor econômico, servindo-se de ideias como "contradição" e "formação-de-crises".
Prospect Magazine: Mais uma questão de definição: o que é capital?
David Harvey: Capital é o processo pelo qual o dinheiro é posto em ação para que se obtenha mais dinheiro. Mas é preciso muito cuidado, se só se fala de dinheiro, porque em Marx há uma relação muito complexa, como aponto no livro, entre "valor" e "dinheiro". O processo é de busca de valor para criar e apropriar-se de mais valor. Mas esse processo assume diferentes formas - a forma dinheiro, de bens e mercadorias, processos de produção, terra... Ele tem manifestações físicas, forma-de-coisa, mas, no fundamento, não é coisa: é um processo.
Prospect Magazine: Voltemos à noção de "contradição", que é a categoria analítica central no livro. O senhor fez uma distinção entre os choques externos pelos quais pode passar uma economia capitalista (guerras, por exemplo) e contradições, no seu sentido da palavra. Assim, por definição, contradições são internas ao sistema capitalista?
David Harvey: Sim. Se você quiser redesenhar o modo de produção, é preciso, então, responder as questões postas pelas contradições internas.
Prospect Magazine: O senhor identifica três classes de contradições, que o senhor chama de "fundacionais", as "mutantes" e as "perigosas". Comecemos pela primeira categoria: o que faz as contradições fundacionais serem fundacionais?
David Harvey: Não importa onde esteja o capitalismo e o modo de produção capitalista, você sempre encontrará essas contradições em operação. Em qualquer economia - seja a China contemporânea, o Chile ou os EUA - a questão do valor de uso e do valor de troca, por exemplo, lá estará, sempre. Há algumas contradições que são traços permanentes de como o motor econômico está montado. E há outras que mudam constantemente ao longo do tempo. Então, eu quis distinguir as que são relativamente permanentes e as outras, que são muito mais dinâmicas.
Prospect Magazine: Algumas contradições fundacionais são mais fundacionais que outras? Um dos traços que mais chamam a atenção no livro é que tudo, no seu modelo analítico, parece derivar, no fundo, da diferença entre valor de troca e valor de uso.
David Harvey: Ora... esse é o ponto inicial da análise. Sempre me chamou a atenção que Marx dedicou muito tempo para demarcar o ponto no qual sua análise começaria; e decidiu começar por aí, porque é o ponto de partida mais universal. Mas o que mais me impressiona - e trabalho com Marx há muito, muito tempo - é o quanto as suas contradições são intimamente interligadas. Você percebe que essa distinção entre valor de uso e valor de troca pressupõe alguma coisa sobre propriedade privada e o Estado, por exemplo.
Prospect Magazine: Outra das suas contradições fundacionais é entre "propriedade privada e o Estado capitalista". Quer dizer: a tensão ou a contradição entre os direitos individuais de propriedade e o poder coercivo do Estado. Agora, imaginemos alguém como Robert Nozick, criado na tradição liberal, Lockeana, que chega e diz que não há aí qualquer contradição. Ao contrário: o papel do estado "mínimo" é proteger a propriedade privada.
David Harvey: Uma das coisas que digo sobre contradições é que elas estão sempre latentes. Por isso, a existência de uma contradição não gera, necessariamente, uma crise. Gerará, sob algumas dadas circunstâncias. Portanto, é possível construir teoricamente a ideia de que tudo que um estado 'guarda-noturno' faz é proteger a propriedade privada. Mas nos sabemos que esse estado 'guarda-noturno' tem muito mais a fazer, além disso. Há externalidades no mercado que têm de ser controladas; já bens públicos que têm de ser fornecidos - e assim, muito rapidamente, o estado acaba por se envolver em todos os tipos de atividades, muito além de apenas cuidar do quadro legal dos contratos e dos direitos à propriedade privada.
Prospect Magazine: O senhor nega que haja qualquer conexão necessária entre capitalismo e democracia. Pode explicar por quê?
David Harvey: A questão da democracia depende muito de definições. Supostamente haveria democracia nos EUA, mas é claro que não há, é uma espécie de farsa, de engodo - é a democracia do poder do dinheiro, não do poder do povo. E minha avaliação, desde os anos 1970s, a Suprema Corte legalizou o processo pelo qual o poder do dinheiro corrompe o processo político.
Prospect Magazine: Há um aspecto do poder do estado que avançou para o centro do palco na crise recente e imediatamente depois, sobretudo durante a crise da dívida na Eurozona: falo do poder dos bancos centrais. O senhor acha que a função dos bancos centrais mudou de modo significativo durante a era dos 'resgates'?
David Harvey: Evidentemente mudou. A história dos bancos centrais é, ela própria, terrivelmente interessante. Não tenho certeza de que o que o Federal Reserve fez durante a crise tenha tido qualquer base legal. O Banco Central Europeu, por sua vez, é caso clássico do que Marx disse, quando comentou a Lei dos Bancos de 1844, a qual, para ele, teve o efeito de estender e aprofundar a crise de 1847-8 na Grã-Bretanha. Mas nos dois casos, do Fed e do Banco Central Europeu, o que vimos é uma espécie de ajuste no traseiro - como alfaiates fazem com calças apertadas - de grandes instituições e a emergência de políticas que só seriam justificáveis depois do fato. Quero dizer: não há dúvida alguma de que, sim, houve mudanças no front do banco central.
Prospect Magazine: Há um conceito ao qual o senhor volta várias vezes no livro: o conceito de "conversão em mercadoria" [também 'mercadorização', ing.commodification (NTs)].
David Harvey: O capital trata, sempre, da produção de mercadorias. Se há terreno não-mercadorizado, ali o capital não entra nem circula. Um dos meios mais fáceis para o capital conseguir penetrar aquele espaço é o estado impor ali um sistema de privatização - ainda que privatize algo que é só ficcional. Os créditos de carbono, por exemplo - trocar direitos de poluir é excelente exemplo de mercadoria criada por processo ficcional, que tem efeitos muito reais sobre o volume de dióxido de carbono na atmosfera, e assim por diante. Criar mercados onde antes não havia mercados é um dos meios pelos quais, historicamente, o capital expandiu-se.
Prospect Magazine: O senhor foi pesadamente influenciado pelo trabalho de Karl Polanyi nessa área, não? Especificamente a obra prima dele, A Grande Transformação.[3]
David Harvey: Polanyi não era marxista, mas compreendia, como Marx também compreendeu, que as ideias de terra, trabalho e capital não são mercadorias no sentido ordinário, mas que assumem uma forma de mercadoria.
Prospect Magazine: Um dos aspectos mais impressionantes do livro, pode-se dizer, mesmo, mobilizadores, emocionantes, é o relato que o senhor faz dos custos humanos da conversão em mercadoria - especificamente a conversão em mercadoria daquelas áreas da experiência humana que antes não eram parte do 'nexo dinheiro' [orig. cash nexus, exp. de Marx]. Há aí uma conexão com o que o senhor chama de "alienação universal". O que é isso?
David Harvey: Vivemos há tempos num mundo no qual o capital lutou sem parar para diminuir o trabalho, o poder do trabalho, aumentando a produtividade, removendo o aspecto mental dos serviços e empregos. Quando você vive em sociedade desse tipo, surge a questão de como alguém pode encontrar algum significado na própria vida, dado o que se faz como trabalho, no local de trabalho. Por exemplo, 70% da população dos EUA ou odeia trabalhar ou é totalmente indiferente ao trabalho que faz. Em mundo desse tipo, as pessoas têm de encontrar alguma identidade para elas mesmas que não seja baseada na experiência do trabalho.
Sendo assim, surge a questão do tipo de identidade que as pessoas podem assumir. Uma das respostas é o consumo. E temos um tipo de consumismo irrefletido que tenta compensar a falta de significação de um mundo no qual há bem poucos trabalhos com algum significado. Irrita-me muito ouvir políticos dizer que "vamos criar mais empregos"... Mas que tipo de empregos?
A alienação brota, entendo eu, de um sentimento de que temos capacidade e poder para ser alguém muito diferente do que é definido por nossas possibilidades. Daí surge a questão de até que ponto o poder político é sensível à criação de outras possibilidades? As pessoas olham os partidos políticos e dizem "Aqui, não há nada que preste." Há, pois, a alienação para longe do processo político, que se manifesta em comparecimento declinante nas eleições; há a alienação para longe da cultura da mercadoria, também, que cria uma carência e o correspondente desejo por um outro tipo de liberdade. As irrupções periódicas que foram vistas pelo mundo - parque Gezi em Istanbul, 'manifestações' no Brasil, quebra-quebra em Londres em 2011 - obrigam a perguntar se a alienação pode vir a ser uma força política positiva. E a resposta é sim, pode, mas não se vê nada parecido nos partidos ou movimentos políticos. Viram-se alguns elementos disso no modo como o movimento Occupy ou os Indignados na Espanha tentaram mobilizar pessoas, mas foi coisa efêmera e não amadureceu em ação mais substancial. Mesmo assim, há muito fermento nos campos da dissidência cultural; há algo em movimento, e é fonte de alguma esperança.
Prospect Magazine: Quando o senhor discute as contradições "perigosas", o senhor oferece o que me parece ser uma versão do materialismo histórico de Marx. Quero dizer: o senhor pensa, como Marx, que o presente está grávido de futuro, embora o senhor não pense de modo inevitabilista... Acho também que o senhor não vê nada de inevitabilismo, tampouco, no próprio Marx. Estou certo?
David Harvey: Não vejo, não, nada de inevitabilismo em Marx. Há quem diga que Marx teria dito que o capital desabará sob o peso de suas próprias contradições, e que Marx teria uma teoria mecanicista das crises das crises capitalistas. Mas jamais encontrei uma linha em que Marx tenha escrito coisa semelhante! O que Marx, sim, disse é que as contradições estão no coração das crises e que crises são momentos de oportunidade.
Marx também disse que os seres humanos podem criar a própria história, mas que não escolhem as condições sob as quais criarão a própria história. Para mim, portanto, há um Marx que, se não é libertarista, diz que os seres humanos são capazes de decidir coletivamente, de empurrar as coisas mais para uma direção, que para outra. Marx criticou o socialismo utópico, porque entendia que o socialismo utópico não lidava com o onde estamos. Marx disse que é preciso analisar onde se está, ver o que é viável para nós e, na sequência, tentar construir algo radicalmente diferente. *****
[2] "A Editora
Intrinseca comprou os direitos de tradução para o português do Brasil de O Capital no Século XXI, do
francês Thomas Piketty. Está em tradução, esperado nas livrarias no segundo
semestre de 2014" (deve ser tudo mentira, mas é o que escreveu Lauro
Jardim na revista (NÃO)Veja,
emhttp://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/brasil/o-capital-no-seculo-xxi-o-livro-de-economia-de-maior-impacto-no-mundo-chega-ao-brasil/ [NTs].
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