16 abril 2013,
Nós, mais de 600 representantes de 73 povos e
várias organizações indígenas de todas as regiões do Brasil, reunidos em
Brasília –DF, no período de 15 a 19 de abril de 2013, considerando o grave
quadro de ameaças de regressão a que estão submetidos os nossos direitos
assegurados pela Constituição Federal e tratados internacionais como a
Convenção 169 de Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da
ONU sobre os direitos dos povos indígenas, nos declaramos mobilizados em defesa
desses direitos, principalmente o direito sagrado às nossas terras, territórios
tradicionais e bens naturais, tratados hoje como objetos de cobiça, produtos de
mercado e recursos a serem apropriados a qualquer custo pelo modelo
neodesenvolvimentista priorizado pelo atual governo e as forças do capital que
tomaram por assalto o Estado, com as quais pactua governabilidade para a
continuidade de seu projeto político.
Esse modelo agroextrativista exportador é altamente dependente da
exploração e exportação de matérias-primas, em especial de commodities agrícolas
e minerais. Para viabilizar o modelo, o governo busca implementar, a qualquer
custo, as obras de infra-estrutura nas áreas de transporte e geração de
energia, tais como, rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, usinas
hidroelétricas, linhas de transmissão. Isso supõe e potencializa sobremaneira a
disputa pelo controle do território no país, e explica o fato de os setores
político-econômicos, representantes do agronegócio, das mineradoras, das
grandes empreiteiras e do próprio governo se articularem para avançar, com o
intuito de se apropriar e explorar os territórios indígenas, dos quilombolas,
dos camponeses, das comunidades tradicionais e
das áreas de proteção ambiental.
Objetivos do ataque aos direitos
territoriais indígenas
A ofensiva contra os territórios indígenas por parte dos poderosos tem
os seguintes objetivos:
1) inviabilizar e impedir o reconhecimento e a demarcação das terras
indígenas que continuam usurpadas, na posse de não índios;
2) reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já
finalizados;
3) invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que estão na
posse e sendo preservadas pelos nossos povos.
Instrumentos utilizados para reverter
os direitos territoriais dos povos indígenas
Para atingir os objetivos de ocupar e explorar os territórios indígenas,
esses poderes econômicos e políticos aliados com setores do governo e da base
parlamentar recorrem a instrumentos político-administrativos, jurídicos,
judiciais e legislativos, conforme identificamos abaixo.
Objetivo 01 - inviabilizar e impedir o reconhecimento e a demarcação das
terras indígenas que continuam usurpadas, na posse de não índios.
1) Proposta de Emenda Constitucional 215/00 (PEC 215): de autoria do deputado
federal Almir Sá (PPB/RR), cuja admissibilidade foi aprovada pela Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados em março de
2012. O relator, deputado federal Osmar Serraglio (PMDB/PR), então vice-líder
do governo na Câmara, apensou a esta matéria outras 11 PECs que tramitavam na
referida Comissão. Com isso, a PEC 215/00, sendo aprovada, alterará os artigos
49, 225 e 231 da CF transferindo a competência das demarcações do Executivo
para o Legislativo nacional e, em última instância, determinará: a) que toda e
qualquer demarcação de terra indígena ainda não concluída deverá ser submetida
à aprovação do Congresso Nacional; b) que as áreas predominantemente ocupadas
por pequenas propriedades rurais que sejam exploradas em regime de economia
familiar não serão demarcadas como terras tradicionalmente ocupadas por povo
indígena; c) que as Assembléias Legislativas sejam obrigatoriamente consultadas
em casos de demarcação de terras indígenas em seus respectivos estados; d) que a
demarcação de terras indígenas, expedição de títulos das terras pertencentes a
quilombolas e definição de espaços territoriais especialmente protegidos pelo
Poder Público sejam regulamentados por uma lei e não mais por um decreto como
ocorre atualmente; e) que será autorizada a permuta de terras indígenas em
processo de demarcação litigiosa, ad referendum do Congresso Nacional.
Lamentavelmente, ás vésperas das comemorações do Dia do Índio, o
presidente da Câmara, deputado Henrique Alves (PMDB/RN), autorizou a criação de
Comissão Especial Temporária que deverá analisar esta maléfica PEC.
2) Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 038/99: de autoria do senador
Mozarildo Cavalcanti (PMDB/RR), que aguarda inclusão na ordem do dia para ser
votada pelo plenário do Senado. Caso seja aprovada, conforme o voto em separado
do senador Romero Jucá (PMDB/RR), alterará os artigos 52, 225 e 231 da
Constituição Federal (CF) estabelecendo competência privativa do Senado Federal
para aprovar processo sobre demarcação de terras indígenas.
3) Portaria 2498, de autoria do Poder Executivo. Publicada no dia 31 de
outubro de 2011, pelo Ministério da Justiça, determina a intimação dos entes
federados para que participem dos procedimentos de identificação e delimitação
de terras indígenas. Esta portaria tem como pano de fundo uma interpretação
equivocada, por parte do Executivo, de Condicionante estabelecida pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento da Petição 3388, única e exclusivamente relativa
ao caso da Terra Raposa Serra do Sol, cujo julgamento ainda não transitou em
julgado.
4) Visível inoperância nas demarcações de terras indígenas. A Fundação
Nacional do Índio (Funai) “não tem autorização”, ou seja, está proibida pela
Presidência da República, de criar novos Grupos de Trabalho para estudos de
identificação e delimitação de terras, o que revela uma situação de
subserviência do governo brasileiro às demandas do agronegócio cujos
representantes vêm pedindo, em audiências com Ministros de Estado, uma
moratória nas demarcações sob o pretexto de se aguardar a decisão do Supremo
Tribunal Federal sobre a Petição 3388.
5) Judicialização das demarcações, articulada pela Confederação Nacional
da Agricultura (CNA) e pelos sindicatos a ela filiados. A medida incentiva os
não-indígenas invasores de terras indígenas a questionarem judicialmente todo e
qualquer procedimento administrativo que visa o reconhecimento e a demarcação
de terras indígenas. A demora no julgamento desses processos por parte do
judiciário vem resultando em atrasos ainda maiores nas demarcações das terras
indígenas.
Objetivo 02: reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras
indígenas já finalizados.
1) Portaria 303: de iniciativa do poder Executivo, por meio da Advocacia
Geral da União (AGU), publicada no dia 17 de julho de 2012. Esta Portaria
manifesta uma interpretação extremamente abrangente, geográfica e temporal
quanto às condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no
julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3388), estendendo a aplicação
delas a todas as terras indígenas do país e retroagindo sua aplicabilidade. A
portaria determina que os procedimentos já “finalizados” sejam “revistos e
adequados” aos seus termos.
Além disso, determina que sejam “revistos” os procedimentos de
demarcação em curso e impõe limites severos aos direitos de usufruto exclusivo
dos povos sobre suas terras, previsto na Constituição Federal, e à aplicação da
consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT).
A aplicação da Portaria 303/12 está suspensa, mas prevista para entrar
em vigor no dia seguinte à publicação do acórdão do julgamento dos Embargos de
Declaração da Petição 3388 pelo STF. Uma eventual decisão do STF que corrobore
os termos estabelecidos pela Portaria, ampliaria profundamente a instabilidade
jurídica e política vivida pelos povos indígenas e, na prática, significaria a
conflagração de conflitos fundiários ainda mais graves envolvendo a posse das
terras indígenas, inclusive a reabertura de conflitos anteriormente superados.
Objetivo 03: invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que
estão na posse e sendo preservadas pelos povos indígenas.
1. Decreto nº 7.957, de autoria do Poder Executivo, publicado no dia 13
de março de 2013. Cria o Gabinete Permanente de Gestão Integrada para a Proteção
do Meio Ambiente, regulamenta a atuação das Forças Armadas na proteção
ambiental e altera o Decreto nº 5.289, de 29 de novembro de 2004. Com esse
decreto, “de caráter preventivo ou repressivo”, foi criada a Companhia de
Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública, tendo como uma de
suas atribuições “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos
técnicos sobre impactos ambientais negativos”. Na prática isso significa a
criação de instrumento estatal para repressão militarizada de toda e qualquer
ação de povos indígenas, comunidades, organizações e movimentos sociais que
decidam se posicionar contra empreendimentos que impactem seus territórios.
2. Portaria Interministerial 419/11, de autoria do Poder Executivo.
Publicada em 28 de outubro de 2011, regulamenta a atuação de órgãos e entidades
da administração pública com o objetivo de agilizar os licenciamentos
ambientais de empreendimentos de infra-estrutura que atingem terras indígenas.
Neste sentido: a) concede prazo irrisório de 15 dias para que a Funai se
manifeste em relação a determinada obra que atinge terra indígena no país; b)
determina que o governo só irá considerar como Terra Indígena atingida por uma
determinada obra de infra-estrutura aquela que tiver seus limites estabelecidos
pela Funai, ou seja, cujo Relatório Circunstanciado de Identificação e
Delimitação tenha sido publicado nos Diários Oficiais da União e do respectivo
estado federado. Este último ponto é especialmente danoso aos povos indígenas -
reconhecidamente inconstitucional -, uma vez que desconsidera o fato de que o
procedimento administrativo de demarcação de terra indígena é ato apenas
declaratório do direito dos indígenas sobre suas terras tradicionais. Com a
portaria 419, para efeito de estudo de impactos causados pelos empreendimentos,
o governo desconsidera a existência de aproximadamente 370 terras indígenas
ainda não identificadas e delimitadas no Brasil.
3. Projeto de Lei (PL) 1610/96, de autoria do senador Romero Jucá
(PMDB/RR). O Projeto dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos
minerais em terras indígenas, de que tratam os arts. 176 e 231 da Constituição
Federal. Em fase final de tramitação, aguarda parecer da Comissão Especial.
Relatório preliminar divulgado, no segundo semestre de 2012 pelo deputado
federal Édio Lopes (PMDB/RR), é extremamente maléfico aos interesses dos povos
indígenas. Caso a lei seja aprovada na forma do relatório em questão, dentre
muitos outros aspectos problemáticos, destacamos: a) Não será admitido o direito
de veto dos povos. Com isso, o direito de consulta prévia, livre e informada
será transformado em mero ato formal, denominado “consulta pública”. A vontade
dos povos não terá qualquer influência sobre a continuidade do processo de
exploração mineral na própria terra. Nesse caso, inclusive, recupera o
princípio da tutela, abominado pela Constituição, ao definir que uma comissão
formada por não-índios decidirá sobre o que é melhor para os povos indígenas;
b) Nenhuma salvaguarda constitucional é explicitada. Com isso, a exploração
mineral poderá ocorrer em todo e qualquer espaço no interior da terra indígena.
Não há qualquer referência que proíba a lavra de recursos minerais incidentes
sob monumentos e locais históricos, culturais, religiosos, sagrados, de caça,
de coleta, de pesca ou mesmo de moradia dos povos. Isso, como é evidente,
oferece risco incalculável à sobrevivência física e cultural dos povos.
4. Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 237/13: de autoria do
deputado Nelson Padovani (PSC/PR), busca alterar o art. 176 da Constituição,
permitindo a posse de terras indígenas por produtores rurais. A PEC 237/13
acrescenta parágrafo à Constituição para determinar que a pesquisa, o cultivo e
a produção agropecuária nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
poderão ocorrer por concessão da União, ao agronegócio. Aguarda designação de
relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara
dos Deputados.
5. Projeto de Lei (PL) 195/11: de autoria da Deputada Rebecca Garcia (PP/AM),
prevê a instituição de sistema nacional de redução de emissões por desmatamento
e degradação (REDD+). Em flagrante desrespeito ao princípio constitucional que
prevê usufruto exclusivo das terras pelos próprios povos indígenas, o PL elege,
dentre outras, as terras indígenas como objeto de projetos de REDD+. Aguarda
constituição de Comissão Temporária Especial na Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados.
6. Substituição do Direito pela Compensação/Mitigação: a omissão do
governo brasileiro na efetivação de políticas públicas, tais como de saúde e
educação, dentre outras, vem influenciando dezenas de povos a aceitarem
projetos de exploração de seus territórios como forma de obter
compensações/mitigações para responder as demandas criadas pelo abandono do
Estado.
Diante deste grave quadro de violações aos nossos direitos,
principalmente territoriais, declaramos de uma só voz:
1. Repudiamos toda essa série de instrumentos político-administrativos,
judiciais, jurídicos e legislativos, que busca destruir e acabar com os nossos
direitos conquistados com muita luta e sacrifícios há 25 anos, pelos caciques e
lideranças dos nossos povos, durante o período da constituinte.
2. Não admitiremos retrocessos na garantia dos nossos direitos,
sobretudo se considerarmos que o passivo de terras a demarcar é ainda imenso.
Das 1046 terras indígenas, 363 estão regularizadas; 335 terras estão em alguma
fase do procedimento de demarcação e 348 são reivindicadas por povos indígenas
no Brasil, mas até o momento a Funai não tomou providências a fim de dar início
aos procedimentos de demarcação.
3. Exigimos do Poder executivo a revogação de todas as Portarias e
Decretos que ameaçam os nossos direitos originários e a integridade dos nossos
territórios, a vida e cultura dos nossos povos e comunidades. Do Legislativo,
reivindicamos que o Presidente da Câmara dos Deputados, deputado Henrique Alves
(PMDB/RN), anule a decisão de constituir a Comissão Especial da PEC 215, que
afronta a autonomia dos poderes e submete o nosso destino à vontade dos poderes
econômicos que hoje dominam o Congresso Nacional. Exigimos ainda
o arquivamento de quaisquer outras iniciativas que busquem legalizar a
violência contra os nossos povos e a usurpação dos nossos territórios e bens
fornecidos pela Natureza, como a PEC 237/13 e o PL 1610/96. Do Judiciário,
reivindicamos agilidade no julgamento de casos que retardam a demarcação das
nossas terras, submetendo os nossos povos e comunidades a situações de
insegurança jurídica e social.
4. Reivindicamos do Governo brasileiro políticas públicas efetivas e de
qualidade, dignas dos nossos povos que desde tempos imemoriais exercem papel
estratégico na proteção da Mãe Natureza, na contenção do desmatamento, na
preservação das florestas e da biodiversidade, e outras tantas riquezas que
abrigam os territórios indígenas. Não admitimos que os nossos direitos sejam
“atendidos” por meio de compensações decorrentes da exploração dos nossos
territórios, pois estas medidas têm caráter efêmero e perduram tão somente
enquanto perdurar a exploração.
5. Reivindicamos ainda do Governo, o cumprimento dos acordos e
compromissos assumidos em distintas instâncias e processos de diálogo com o
movimento indígena, tal como a Comissão Nacional de Política Indigenista
(CNPI), onde foram trabalhados o Projeto de Lei 3571/08, que cria o Conselho
Nacional de Política Indigenista e as Propostas para a elaboração de um novo
Estatuto dos Povos Indígenas, que não contaram com o envolvimento da bancada
governamental para sua devida tramitação e aprovação.
6. Reafirmamos, por tudo isso, a nossa determinação de fortalecer as
nossas lutas, continuarmos vigilantes e dispostos a partir para o enfrentamento
político, arriscando inclusive as nossas vidas, em defesa dos nossos
territórios e da mãe natureza e pelo bem das nossas atuais e futuras gerações.
7. Chamamos, por fim, aos nossos parentes, povos e organizações, e
aliados de todas as partes para que juntos evitemos que a extinção programada
dos nossos povos aconteça.
Brasília-DF, 16 de abril de 2013.
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