Por Miguel
de Brito, Académico moçambicano
Nenhum de
nós é ou deve ser culpado pelos pecados dos nossos pais (ou antepassados). Não
temos que carregar cruzes de pecados que não cometemos. No entanto, não devemos
nem podemos, nesta rejeição da herança da culpa, apagar a realidade em que
viviam os nossos pais e avós e em que alguns de nós também ainda vivemos.
À data de
independência de Moçambique viviam em Moçambique cerca de 200 mil branc...os de
origem portuguesa. Muitos nascidos em Portugal, outros já nascidos em
Moçambique, descendenetes de 2 ou 3 gerações também já aqui nascidas.
Se é
verdade que nem todos maltratavam os negros, que muitos sentiam-se moçambicanos
e não portugueses e que muitos lutaram, de várias formas, para pôr fim ao
colonialismo, a grande maioria ou beneficiou diretamente do colonialismo ou,
pelo menos, aceitou silenciosamente as práticas coloniais.
O
bem-estar de que muitos brancos usufruíram e a riqueza que muitos brancos
acumularam só foram possíveis graças às relações políticas, sociais e
económicas que existiam entre a minoria branca e a maioria negra. Se em
Moçambique não houve apartheid formal, a separação das raças estava
institucionalizada a todos os níveis: nas zonas residenciais, no acesso à
educação e à saúde, no acesso aos serviços e ao emprego. Para não falar do
poder político, claro!
Quem achar
que isto é um exagero é só consultar as centenas de álbuns fotográficos da
época, que tantos orgulhosamente têm compartilhado aqui na internet, e ver quão
branca era a vida social e económica de Moçambique na época. Ou ler os relatos
do trabalho forçado, das palmatoadas, dos insultos racistas, etc, etc.
Entre
1974 e 1976, mais de 90% dos brancos residentes em Moçambique abandonaram o
país. O mesmo aconteceu nas outras colónias portuguesas. A esmagadora maioria
foi para Portugal e constituíu a chamada comunidade dos retornados. Outros
foram para a África do Sul e para o Brasil.
Desde
essa altura até hoje, desenvolveu-se e cristalizou-se uma "narrativa
retornada" sobre a vida colonial e sobre o período 1974/75. É uma
narrativa ao mesmo tempo romantizada e amarga, saudosista e reivindicativa,
seletiva e manipuladora. O principal fio dessa narrativa, independentemente de
se aplicar a Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, é que os brancos nas colónias
desenvolveram e civilizaram as colónias, criaram e deixaram riqueza, trataram
bem os pretos e tiveram que fugir porque os pretos (comunistas) os iam matar e
roubar. O outro fio entrelaçado desta narrativa é sobre a boa vida das
colónias, onde todos tinham casas grandes, muitos criados, praias, boa comida,
o Sol, etc.
Esta é
sobretudo uma narrativa falaciosa, cega e filtrada. A vida de uns só era boa
porque a vida de muitos era francamente má. Esta é uma correlação
indissociável. Os pretos nunca foram vistos como mais do que seres
subordinados, por vezes "acarinhados", muitas vezes humilhados e
violentados na sua dignidade humana. Esta frase que encontrei num depoimento é
ilustrativa do pensamento dessa época e que está subjacente a toda a
"narrativa retornada": "o branco com seu espírito empreendedor e
conhecimento técnico, o negro como trabalho braçal".
É
exactamente essa correlação e essa relação entre brancos e negros na sociadde
colonial que a "narrativa retornada" ignora e rejeita. Esta narrativa
tem sido reproduzida de pais para filhos, de geração para geração, ao ponto de
influenciar os que nunca cá viveram, nem são descendentes de que cá viveu.
Hoje é
comum ouvir: eu também sou moçambicana, também lá nasci e hoje estou de volta
para ajudar esta terra que me viu nascer. A pergunta que falta fazer é: o que levou
a sua família a abandonar Moçambique em 1974/75? A honestidade da resposta a
esta pergunta é crucial para começarmos a curar os pecados do colonialismo e o
veneno da "narrativa retornada". A verdade é que a esmagadora maioria
dos retornados de Moçambique abandonaram o país porque não queria ser
"governada por pretos"!
Porquê?
Aqui encontramos uma mistura de racismo, medo de represálias (se eram todos tão
bons para com os pretinhos, tinham medo de quê?) e pavor do chamado comunismo.
A resposta mais usada em geral é que os "turras" iam "matar-nos
e violar as nossas mulheres, por isso tivemos que fugir e deixar tudo para
trás".
A
História mostra quão isto é falso. Talvez tenham ficado em Moçambique uns 20
mil brancos de origem portuguesa. Muitos tornaram-se ministros, diretores
nacionais, diretores de escolas, diretores de hospitais, diretores de empresas,
etc. Este não é, de certo, um quadro de vingança, retaliação, perseguição.
Aliás, este "acarinhamento" dos "brancos que ficaram" veio
criar problemas à liderança da FRELIMO, mais tarde, mas isso são outros
quinhentos.
Posto
isto tudo, vamos ser honestos: se os que agora chegam (ou regressam), não têm
culpa dos que os seus antepassados fizeram, pelo menos reconheçam o que eles
fizeram, que deixaram cicratizes, que nunca reconheceram o mal que fizeram e
que, pelo contrário, até hoje acham-se injustiçados e incompreendidos. Sem
isso, nunca haverá reconciliação. Pois é da necessidade de reconciliação que se
trata. E como bons católicos, de certo a maioria dos portugueses está
familiarizada com o conceito do perdão e da redenção com base na confissão.
Imagem de
Ricardo Rangel: Menino guardador de gado no sul de Moçambique, a quem chamavam “o oito”
porque tinha uma marca na testa com a forma de um 8 deitado. Um dia, Ricardo
Rangel soube que um criador de gado colonialista tinha marcado o seu jovem
guardador de gado com o ferro em brasa, que usava para marcar o seu gado, por
ele ter perdido um dos seus bois. Então, Rangel foi para Changalane e procurou
o jovem durante dois dias até finalmente o encontrar. Fotografou-o. O patrão do
menino queria dar-lhe um tiro, mas Rangel, armado com a sua máquina
fotográfica, não teve medo das armas do patrão daquele menino.Como Ricardo
Rangel disse, a fotografia foi sempre a sua arma para defender, dignificar e
eternizar o povo.
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