14 novembro 2009
Por Mari Alkatiri*
(Primeira Parte)
I. Um Olhar pelo Retrovisor
Nestes últimos dois anos, Timor-Leste tem andado à deriva e a mercê de uma governação unipessoal, de jure inconstitucional, de facto ilegítima e, pelos actos fundamentais praticados, caótica.
Em 2006, o Presidente da República Xanana Gusmão assumiu-se abertamente como líder da oposição ao I Governo Constitucional. Comandou todo o processo que culminou com um golpe semi-constitucional, semi-issurreccional contra o Governo. Na altura, buscou alianças internas e externas, reuniu à sua volta todas as pessoas que sempre se colocaram contra a FRETILIN ou ainda outras que se afirmavam e se afirmam fretilins mas que continuam a alimentar sonhos de poderem transformar a organização histórica que libertou o país numa sociedade de compadrios. A estas se juntaram ainda outras outrora sobejamente conhecidas como totalmente contrárias à ideia da Independência de Timor-Leste.
Uma aliança desta envergadura, um enlace poligâmico simulado como este só se pode construir à custa de muitos compromissos, cumplicidades e de muitas incongruências. Um dos grandes, senão o maior compromisso, foi o de derrubar o Governo da FRETILIN e não permitir que esta retomasse o poder em 2007. Uma aliança construida sobre o signo da ambição desmedida pelo poder acrescida de inveja incomensurável e da necessidade de um enriquecimento fácil e rápido.
Torna-se assim muito clara que a aliança que se construiu teve como único objectivo continuar a luta, outrora de Suharto, contra a FRETILIN. Hoje, com a voracidade como retiram dos cofres os recursos existentes e embarcam de forma irresponsável no processo de endevidamento do país denuncia de um modo mais claro as razões que estiveram na base do golpe de 2006. Acredita-se que Xanana Gusmão passou a assumir a luta contra a FRETILIN à partir do momento em que viu frustradas todas as suas tentativas de impor o seu estilo de liderança unipessoal (de comando da luta) e perdida a sua esperança de teleguiar a organização. Outros viram nisso uma única oportunidade para se colarem ao Xanana e fazerem o assalto ao poder.
Uma vez no poder, Xanana Gusmão começou logo por demonstrar estar confuso e desconhecer a ciência da gestão do processo de governativo. Mais evidente ainda foi a incapacidade de assumir a continuidade institucional do Estado para assim poder definir planos e programas de desenvolvimento sem escangalhar o sistema. Confundiu sucessão de Governos com sucessão de Estados. Isto tornou-se notório no debate e aprovação do Programa do Governo e dos sucessivos Orçamentos. Ficava patente o estilo bonapartista do “ l’Etat c’est moi”, (o Estado sou eu), estilo que tem afirmado na gestão dos destinos da Nação. Confundiu os seus sonhos, próprios de uma indigestão de ideias, com as necessidades reais do país, as suas visões caleidoscópicas com o país real. Cometeu erros crassos na definição de prioridades e das metas a atingir. Ignorou os factores subjectivos e objectivos que concorrem para uma governação moderna. E o país continua a ser (des) governado com um governo fraccionado, desintegrado, sem nenhum sentido de corpo nem de equipe. Cada Ministério/Secretaria de Estado assume-se como uma realidade autónoma, diria mesmo, quase independente, a degladiarem-se na busca de projectos. Porque projectos significam dinheiro, repito, dinheiro e não obras, todo o esforço é orçamentar rios de dinheiro para projectos indefinidos. (Exemplo: identifica-se um troço de estrada, e logo o apresenta como um projecto sem antes se fazer um levantamento técnico completo para se definirem as especificações e os custos. O preço é empolado de modo a se poder pagar o executante e o adjudicante da obra e selar a cumplicidade). Cresce cada dia mais a prática do projectismo que se sobrepõe ao plano e aos programas. Os departamentos dos Ministérios convertem-se em verdadeiras comissões de gestão de projectos desgarrados, sem nenhuma preocupação de harmonia institucional e sustentabilidade programática e ambiental. O que querem é dinheiro, muito dinheiro para se gastar em pouco tempo. Porque só assim podem enriquecer-se rapidamente. Na verdade, cerca de dois mil milhões de dólares já foram gastos em dois anos. É tempo de se perguntar o que realmente foi feito(?). Xanana se tornou refém da própria aliança que construiu. Hoje dança na corda bamba, num equilíbrio difícil para se manter no comando de uma equipa corrupta.
II. Governação ou (des) Governação?
Quando apresentou o seu Programa de Governo, Xanana Gusmão acreditava que até 31 de Dezembro de 2007 teria os problemas dos deslocados, dos peticionários e do Alfredo resolvidos. Era uma forte convicção, um verdadeiro acto de fé.
A realidade foi totalmente diferente. Os problemas não ficaram resolvidos em 2007. O que realmente aconteceu foi que, do Orçamento aprovado para o período Transitório de Julho/Dezembro de 2007, mais de setenta e três milhões de dólares sumiram sem a apresentação de qualquer tipo de justificativo aos auditores externos (vide relatório da auditoria externa DELOITTE). (Recorde-se que setenta e três milhões de dólares foram o Orçamento de Estado para todo o primeiro ano e repetido no segundo ano de governação do Primeiro Governo Constitucional). Mais ridículo ainda quando o Governo de facto da AMP, através de seus porta-vozes, responde ao relatório de Deloitte a afirmar sem qualquer escrúpulo que os auditores estão errados.
A solução que se encontrou para os problemas atrás referidos, à excepção do fenómeno Alfredo, assentou-se na compensação financeira. Nenhum esforço palpável foi feito pelo governo no sentido de se resolver a gênese do conflito de 2006 que calou bem fundo no íntimo de cada timorense vítima da crise e das ambições pelo poder. Mesmo assim, tudo foi realizado ou em 2008, ou já em 2009. Até hoje, são os únicos casos de “sucesso” apresentados pelo Governo de facto da AMP (Aliança das Minorias Perdedoras). Estamos para ver se são mesmo casos de “sucesso”!
Xanana Gusmão entrou para o ano 2008 a dar largas aos seus sonhos. Verdadeiras prosas foram publicadas em 2009 por bajuladores seus tentando reduzir à luta no passado recente e o projecto do futuro de Timor-Leste à simples realização dos sonhos de Xanana. (Estes a todo o custo querem que Xanana se coloque agora na galeria dos grandes onde se encontra Martin Luther King Jr que moveu e comoveu os negro-americanos com a sua afirmação “I have a dream”: “eu tenho um sonho”. Compreende-se o esforço dos bajuladores, porque sem Xanana desapareceriam da cena política). Até porque Xanana não precisa dos bajuladores para ver reconhecido o seu passado como Líder da Resistência. Só não queremos que se ignore o presente tentando sempre encobrir os erros, a má gestão, as ilegalidades praticadas com a glória do passado.
Mas, o sonho mais mediatizado de Xanana foi, e é, o da “reforma institucional, da Administração Pública e da Gestão Financeira do Estado”.
Assim, 2008 foi declarado o Ano da Reforma.
Na verdade, a primeira grande reforma acontecera já na (de)formação do Governo como instituição. Um monstro desestruturado onde impera a confusão e muita intersecção e sobreposições de funções. Torna-se evidente que é um governo criado para agradar todas as partes que compõe a “Aliança”. Fica aqui bem patente a qualidade da reforma institucional – criar monstros que mal conseguem andar com as suas próprias pernas.
O segundo acto de reforma foi a desvalorização das capacidades já desenvolvidas no seio dos funcionários públicos timorenses ao longo de sete anos. Incutiu-se “a caça às bruxas”. Como resultado, inundaram os Ministérios de Assessores internacionais e nacionais, na maioria pouco qualificados, a receber salários escandalosos, e a desempenhar funções executivas. Os funcionários timorenses foram reduzidos a simples expectadores. Funcionários temporários são recrutados aos milhares e nomeados para cargos de chefia.
Assumindo a “incapacidade” dos funcionários timorenses como argumento, surgiu a terceira grande reforma que é a da desagregação (a que chamam de descentralização) do sistema de aprovisionamento (cuja lei era, conforme Xanana Gusmão na sua carta endereçada ao Presidente do Parlamento Nacional a 4 de Novembro de 2009, “consubstanciada nas boas práticas internacionais dos países mais desenvolvidos mas, infelizmente, a nossa própria sociedade ainda não está na fase de aprender os processos mais simples de preenchimento das propostas intrínsicas a este processo”) o sublinhado é nosso .
A quarta grande reforma foi a do escangalhamento de todo o sistema de gestão orçamental e financeira. (O orçamento já não representa um plano anual de acção mas sim uma cobiça dos ministros, vice-ministros e secretários de Estado, com Xanana à cabeça. É, acima de tudo, um saco azul e um fundo de contingências). Será também por falta de capacidade da “nossa sociedade de aprender os processos mais simples”? (idem) “Na prática optou-se pela via de gastar dinheiro em vez de cumprir programas, respeitar a estrutura do Orçamento aprovado pelo Parlamento Nacional de modo a executar projectos para criar e desenvolver infraestruturas, reforçar as intituições, desenvolver capacidades, prestar serviços e adquirir tecnologias adequadas. Inundam as transferências de verbas (setecentas em nove meses) sem respeitar minimamente a Lei do Orçamento e a Lei da Gestão Financeira. A capacidade do Governo deixou de se medir pelos resultados obtidos, pela qualidade e utilidade do produto adquirido mas sim pelo dinheiro dispendido ao longo do ano. Fala-se do crescimento económico que é apresentado como o fim em si do desenvolvimento. Não se olha para a qualidade deste crescimento reflectida na prestação dos serviços ao público, no número de postos de trabalho criados, em obras com impacto económico e social a curto, médio e longo prazos. Ignoram-se outros elementos ou efeitos macro e micro-económicos e sociais como o PIB, o custo e a qualidade de vida, a saúde materno-infantil, a qualidade da educação, o índice de desenvolvimento efectivo nas áreas rurais, a balança comercial, o índice da pobreza, a inflacção, etc. Fecham-se os olhos à degradação da Administração Pública onde imperam o nepotismo, a corrupção, o conluio, a arrogância, a incompetência trazida com a admissão em massa de amigos, membros dos respectivos Partidos e familiares para os serviços públicos.
A quinta grande reforma foi e é a governação por decretos do Governo e Directivas do Primeiro Ministro. Decretos e Directivas que violam a Constituição e atropelam as Leis. (Como exemplos podemos apresentar a aberração legal que foi a Directiva do Primeiro Ministro para abrir caminho a que o Orçamento de 2008 pudesse ser executado até Julho de 2009. Com isto o Ano Fiscal em vez de coincidir com a ano civil, prolongou-se por mais dezoito meses. Mas têm o desplante de apresentar “carryover 0” de 2008 para 2009. Outro exemplo é mais recente: através de um Decreto-Lei que o Presidente da República promulgou, assinando de cruz, Xanana Gusmão introduz normas de “aprovisionamento especial” como forma subtil de adoptar um Orçamento Rectificativo sem ter que passar pela discussão e aprovação do Parlamento Nacional). Sim, Xanana teve a possibilidade de voltar ao Parlamento Nacional e apresentar para aprovação o Orçamento Rectificativo de 2009 transportando verbas não executadas para outras rubricas orçamentais. Só que Xanana parece ter acordado tarde demais do sonho “inovador” como ele próprio afirma na carta endereçada ao Presidente do Parlamento nacional. Assim, violou a Lei orçamental e a Lei de Gestão financeira. O “aprovisionamento especial” só se admite para executar rúbricas de orçamento já aprovadas pelo Parlamento Nacional. O “aprovisionamento especial” não pode ser usado para se efectuarem transferências ilegais de verbas. (Mais adiante trataremos deste assunto com mais detalhes”).
A sexta grande reforma realciona-se com a função pública. Esta transformou-se num monstro devorador dos recursos públicos e não no bom administrador e gestor dos mesmos, como se exige que seja num Estado de Direito Democrático.
A sétima grande reforma está na relação contas e resultados. Não existem preocupações em se fazer o balanço para se aferir se os resultados obtidos e as receitas colectadas correspondem ou justificam o volume das despesas já efectuadas. Não há uma minima preocupação em contabilizar os custos e torná-los mais efecientes. Tudo se faz movido pela intuição (com base numa experiência passada de unidades autónomas de resistência), de modo empírico (revela-se ódio a um raciocinio objectivo, científico, a decisões com base na Lei e nas melhores práticas) e irresponsável (porque se considera acima de todas as normas reguladoras de uma governação democrática ).
A oitava grande reforma passa pela interferência na justiça. O Governo viola a Constituição e as Leis, desrespeita a Justiça, intimida os Juízes (expulsando os mais corajosos), enfraquece os Tribunais, retira prisioneiros das prisões.
A nona grande reforma está na relação com o sector privado. O Governo não investe com vista a reforçar a capacidade do Sector. Só dispende. A propalada promoção do sector privado faz-se através da distribuição de avultadas somas de dinheiro público sem a minima preocupação com a estruturação de projectos com claras especificações de modo a se poder permitir uma fiscalização efectiva e grarantir a qualidade da obra ou do produto adquirido. Compra-se sem se preocupar com a qualidade do produto comprado (não se sabe se se compra o produto ou o vendedor, tornando-o parceiro na onda delapidadora do herário público, cúmplice. O caso de geradores a óleos pesados é um exemplo incontornável desta má prática. Outro menos falado é o projecto da construção de uma base de apoio às actividades no Mar de Timor em Suai). Obras, só de fachada (jardins, urinóis públicos sem água, etc.) e reabilitação de residências oficiais feitas sem limites orçamentais, atingindo os quinhentos, seiscentos e setecentos mil dólares. Projectam-se quarteis de sessenta milhões de dólares para uma Polícia Nacional de não mais de três mil e quinhentos efectivos em todo o país. Qual é então a rátio utente/custo do projecto?
Contudo, não se sentem actividades de saúde pública a serem implementadas de modo estruturado, sistemático. Nenhuma preocupação com o saneamento, no mínimo, como parte do combate a malária, o dengue, etc..
O Governo faz a apologia da promoção do Sector Privado. Todos nós o fazemos e queremos que isto aconteça. A grande diferença aqui está na seriedade do processo. Sim, desenvolver o sector privado também é um processo. O que acontece é que não existe um programa claro de capacitação e desenvolvimento do sector. Longe da vontade séria de criar verdadeiros profissionais que possam competir no futuro, dentro e fora do país, prevalece o paternalismo barato de um Estado providência onde vem a tona a demagogia e o populismo. Assim, criam-se novos ricos mas nunca um sector responsável com capacidade para se afirmar neste mundo que é cada vez mais competitivo. Matam-se assim as potencialidades que existem no nosso país para o crescimento de um sector privado forte com o virus do facilitismo delapidador do herário público para agradar a uns e só em termos imediatistas, deixando a maioria cada vez mais vítima do elevado custo de vida. É a maior pandemia por que passa a nossa sociedade.(Será que podemos registar este novo vírus com o nome de vírus XG/RH?).
No que toca ao sector privado, em particular a nova geração de empresários, queremos incutir cultura empresarial e espírito empreendedor. Queremos e devemos aceitar o desafio da criação de uma classe de futuros investidores nacionais que se assumam como motor gerador de emprego e de riqueza na agricultura, no comércio, na indústria, nos serviços, nas construções, etc. Como disse, temos potencialidades. Importa saber adoptar um programa claro de desenvolvimento destas potencialidades. E isto não se compadece com medidas voluntarísticas e irresponsáveis como o apregoado “Pacote do Referendo” que mais adiante merecerá uma análise em detalhe.
A décima grande reforma passa pela manutenção de uma governação em permanente situação de emergência. O Governo, incapacitado de planear e programar os seus trabalhos, definir prioridades e metas como parte de todo um plano integrado, governa em função de um Comando unipessoal na total subordinação aos sonhos do seu chefe. Assim, em nome de uma estabilização económica e de uma emergência (?) na satisfação das necessidades básicas do povo, importa arroz para o consumo de dois anos. O mesmo pretende fazer em relação a material de construção. Há informações que indicam que até a data ainda está por chegar ao Porto de Dili arroz que teoricamente deveria ter chegado até 31 de Dezembro de 2008.
Por outro lado, distribuem-se tractores aos agricultores, em particular, agricultores filiados nalguns Partidos que compõem a AMP. Naturalmente, a solução da agricultura não se limita a distribuição de tractores. Muito menos se pode querer que os agricultores aumentem a produção entregando tractores sem a devida preparação minima, treinos para a utilização dos mesmos e sem condições para a sua manutenção. Para haver aumento de produção alguns factores são necessários ter em conta. Eles são preço e qualidade dos produtos ou a necessidade se produzir. Se se prolongar a situação de emergência com distribuição de produtos básicos mais baratos, há necessidade de se baixar os custos de produção doméstica com aumento de produtividade e de qualidade. Se esta equação não for considerada, mesmo que o Governo utilize receitas de outras fontes para adquirir toda a produção doméstica, não resolve o problema. Simplemente não consegue a competitividade. Há pois a necessidade de se encontrar aqui um equilíbrio entre o que é volitivo e o que é racional. Ginasticar um pouco o cérebro não encurta a vida a ninguém.
Na verdade, mantendo oficialmente a permanência da situação de emergência facilita porque abre caminho para dispensar concursos públicos na aquisição de serviços e produtos ou na adjudicação de obras. Tudo é feito por acerto directo (“single source”). No acto, ficam as portas abertas para se negociarem as comissões em vez dos preços. Quanto mais cara for a obra ou o produto, mais elevada é a comissão. Melhor, quanto mais cheio é o envelope mais cara é a obra. E assim a Sociedade Unipessoal (i) Limitada, vulgo, “IV Governo Constitucional” vai delapidando o herário público, para retirar da pobreza os seus associados. Destes, a chamada AMP, porque todos beneficiam ou porque todos se sentem dentro do mesmo barco, o Comandante Xanana Gusmão beneficia da garantia de cumplicidade no Parlamento e também do Presidente da República (sem direito a veto) que cada vez mais se afirma como advogado e porta-voz da Sociedade Unipessoal (i) Limitada. Escudam-se no passado do Xanana para justificar todos os seus erros e incapacidades demonstradas no presente.
Obs.: Na segunda parte falarei sobre mais “reformas”.
(continua)
* Secretario-Geral da FRETILIN e Primeiro-Ministro do I Governo Constitucional
Nenhum comentário:
Postar um comentário