16 de setembro de 2019, 11:27 h, Brasil 247
(Brasil) https://www.brasil247.com/blog/o-acordo-de-alcantara-e-a-violacao-da-soberania-nacional
Por Larissa Ramina, Carol Proner e
Gisele Ricobom
*Doutoras em direito internacional,
membros da Secretaria de Relações Internacionais da Associação Brasileira de
Juristas pela Democracia - ABJD
É imperativo que o parlamento brasileiro
possa reagir a este agressivo assédio e que impeça a celebração de acordos
pautados pelas circunstâncias do período mais subalterno de nossa história. Não
há dúvidas a respeito da importância de fortalecer o Programa Espacial
Brasileiro
Recentemente Jair Bolsonaro reagiu a
declarações do Presidente francês Emmanuel Macron condenando as queimadas na
Amazônia, alegando violação da soberania brasileira. É importante pontuar que
soberania nacional não é incompatível com o interesse internacional na preservação
da maior floresta tropical do mundo, o que nos obriga a uma reflexão ressalvada
do que significa efetivamente defender a soberania nacional.
Paradoxalmente, o ufanismo indecoroso
do governo brasileiro não parece tão engajado em outras situações. Acumulam-se
exemplos de desnacionalização de nossos interesses para beneficiar os Estados
Unidos. Desde o fim da exigência de visto para cidadãos norte-americanos sem
qualquer contrapartida, fazendo com que o governo federal deixe de arrecadar
cerca de R$ 60,5 milhões por ano, são ostensivas as medidas em proveito do Big
Brother. Notem-se as negociações relativas à perda do controle acionário da
Embraer, terceira maior empresa de fabricação de aeronaves do mundo, para a
norte-americana Boeing, já que se trata de empresa estratégica na geopolítica
militar (o negócio envolve a criação de uma nova empresa com o setor de aviação
comercial da Embraer, o mais lucrativo da empresa e competitivo
internacionalmente); ou a entrega do Pré-sal, jazida com estimativa de 143,1
bilhões de barris – recursos que já
estão sendo entregues para exploração
internacional desde o golpe de Estado de 2016, quando foram leiloados a valor
inferior ao que teria sido gerado de recursos para o país se tivessem sido
explorados pela Petrobras; também são exemplos, na área agropecuária, a
concessão de uma cota de até 750 mil toneladas para importação de trigo dos EUA
sem taxas e a abertura do mercado brasileiro para a carne suína estadunidense
sem contrapartida imediata.
Alcântara segue na mesma direção. A
celebração do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas – AST com os EUA para a
utilização da Base de Alcântara, no Maranhão vem sendo construído de modo pouco
transparente e sem a participação popular, representando graves riscos aos interesses
do país, a começar pelo fato de ser negociado por um presidente que bateu
continência para a bandeira americana durante as eleições de 2018.
No final da década de 1970, o governo
militar lançou a Missão Espacial Completa Brasileira, que previa a criação de
um centro espacial no País. A área escolhida foi a Ilha do Cajual, onde fica a
cidade de Alcântara, no Maranhão. O local é considerado uma das melhores zonas
de lançamento do mundo, por estar próximo da linha do Equador, que permite
economizar 30% no combustível necessário para essas operações. O local é ideal
para os EUA na América do Sul, pois está em frente à África e é estratégico
para sua geopolítica mundial de confronto com a Rússia e com a China. Por outro
lado, Alcântara está na Foz do Amazonas, no Atlântico Sul.
Não é de se desprezar os movimentos
coordenados que estão acontecendo em outras frentes. Os EUA já reativaram a
quarta frota naval em 2008, e por isso pretendem utilizar o espaço geográfico
brasileiro para o controle de todo o Atlântico Sul.
O Brasil nunca conseguiu realizar
lançamentos para colocar satélites em órbita. Décadas depois e três tentativas
fracassadas de mandar para o espaço veículos lançadores de satélites (VLS) – em
uma delas 21 pessoas morreram -, o governo Bolsonaro assinou o Acordo em março
de 2019, que vinha sendo negociado desde o golpe de 2016. Cabe lembrar que um
primeiro AST foi firmado com os EUA em 2000, tendo sido barrado no Congresso
Nacional. Em 2002, foi firmado outro Acordo com a Ucrânia, que viria a criar a Alcântara
Cyclone Space, empresa binacional com o objetivo de comercializar e lançar
satélites utilizando-se da tecnologia de foguetes ucraniana e do CLA. O Acordo
foi abandonado definitivamente em 2015 por motivos variados, mas sobretudo
porque os EUA nunca admitiram que o Brasil tivesse um programa espacial
autônomo.
Basicamente, o AST atual visa
regulamentar o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por
parte do governo norte-americano e de empresas desse país. Foguetes e satélites
desenvolvidos com tecnologia estadunidense, tanto do governo como de empresas
privadas autorizadas por ele, poderão ser lançados de Alcântara, e o Brasil
receberá como contrapartida uma compensação financeira com o aluguel da base.
O problema é que o Acordo está
envolvido em uma séria de polêmicas e de suspeitas de atentar contra a
soberania nacional. Já no Artigo I, fica evidente que a maior limitação imposta
pelos EUA está no cerceamento da transferência de tecnologia, quando prevê que
“Este Acordo tem como objetivo evitar o acesso ou a transferência não
autorizados de tecnologias relacionadas com o lançamento, a partir do Centro
Espacial de Alcântara...”. Tal limitação interfere nas decisões soberanas do
Brasil no sentido de desenvolver tecnologia avançada na área espacial, pois
está explícito que não haverá transferência tecnológica para que o Brasil
retome a construção de seus próprios VLS.
No Artigo II §14 e 15, o Acordo prevê
a existências de “áreas restritas” e “áreas controladas”. “Áreas controladas”
seriam áreas cujo acesso é controlado por Brasil e EUA, ao passo que “áreas
restritas” seriam áreas onde o Brasil “somente permitirá acesso a pessoas
autorizadas pelo Governo dos Estados Unidos da América”. Dito de outra forma, o
Brasil não tem terá qualquer controle das atividades exercidas nas áreas
restritas, pois não terá acesso, não poderá fiscalizar os equipamentos, ou
seja, não saberá o que está sendo lançado e nem o destino do lançamento.
No Artigo III, §1, (A) o Brasil assume
o compromisso de não permitir o lançamento de “Espaçonaves Estrangeiras ou
Veículos de Lançamento Estrangeiros de propriedade ou sob controle de países os
quais, na ocasião do lançamento: ...tenham governos designados por uma das
Partes como havendo repetidamente provido apoio a atos de terrorismo
internacional.” Ora, o Brasil fica impedido de decidir para quem vai alugar a
base, pois não poderá aluga-la para países que os EUA unilateralmente listarem
como apoiadores do terrorismo. Atualmente, estão nesta lista Irã, Coreia do
Norte, Sudão e Síria, embora ela sofra alterações regularmente. Todavia o Irã,
por exemplo, é parceiro estratégico do Brasil. Nesse sentido, não seria
exagero observar que o AST serve para garantir que os EUA reservem o direito de
determinar quem usará a base.
No §1, (B) do mesmo Artigo III, o
Brasil de compromete a “não permitir o ingresso significativo, quantitativa ou
qualitativamente, de equipamentos, tecnologias, mão-de-obra ou recursos
financeiros no Centro Espacial de Alcântara, oriundos de países que não sejam
Parceiros (membros) do MTCR”. Ocorre que o Regime de Controle de Tecnologia de
Mísseis (MTCR, na sigla em inglês) só tem 34 Estados-membros, dentre os quase
200 países existentes hoje. Portanto, o Brasil fica proibido de lançar satélites
em parceria com países como a China, por exemplo.
Já o Artigo III, § 2 dispõe que o
Brasil “poderá utilizar os recursos financeiros obtidos por intermédio das
Atividades de Lançamento para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Programa
Espacial Brasileiro, mas não poderá usar tais recursos para a aquisição,
desenvolvimento, produção, teste, emprego ou utilização de sistemas da
Categoria I do MTCR.” Na prática, isso significa a proibição do uso de recursos
gerados em Alcântara para financiar o Programa Espacial Brasileiro, evitando
que o Brasil avance no desenvolvimento da tecnologia para construção de seus
próprios sistemas completos de foguetes e veículos aéreos não tripulados
(incluindo mísseis balísticos, veículos espaciais, foguetes-sonda, mísseis de
cruzeiro, drones-alvo e drones de reconhecimento), capazes de fornecer uma
carga útil de pelo menos 500 kg a uma faixa de pelo menos 300 km, seus
principais subsistemas completos (como estágios de foguetes, motores, conjuntos
de orientação e veículos de reentrada) e software e tecnologia relacionados,
além de instalações de produção especialmente projetadas para esses
itens.
O exame dos primeiros artigos do AST
já sugere a possibilidade de violações à soberania nacional. De fato, parece
que seu objetivo principal é assegurar aos EUA uma base militar em território
brasileiro na qual exerçam sua própria soberania em detrimento da soberania
brasileira, e onde possam desenvolver livremente atividades de cunho militar.
Essa situação impõe limites diretos à soberania territorial do Brasil,
tratando-se de verdadeira cessão de parte do território brasileiro, na qual o
Brasil não terá acesso livre sem autorização de um país estrangeiro. Isso
equivale a concordar em que o território brasileiro possa ser utilizado pelos
EUA para quaisquer finalidades, inclusive militares, atentando contra a
soberania nacional e consequentemente contra a própria Constituição Federal de
1988. Por outro lado, o Acordo não pressupõe a contrapartida de transferência
de tecnologias dos EUA para o Brasil, impede o desenvolvimento da tecnologia
espacial brasileira, e se satisfaz tão somente com uma contrapartida financeira
relativa ao aluguel da área.
A defesa do AST pelo governo
brasileiro se baseia em argumentação de cunho exclusivamente econômico,
escapando da discussão das implicações de um alinhamento geopolítico e
tecnológico com os EUA no setor espacial. Isso porque o Acordo cria
salvaguardas políticas, além das tecnológicas, impondo limites à soberania
nacional. Se a vantagem brasileira será exclusivamente econômica, o Brasil
poderia assinar contratos específicos para cada lançamento, não tendo
justificativa para aceitar tamanhas limitações a sua soberania territorial. A
terceirização de áreas fundamentais para a defesa de um Estado, como no caso do
CLA, pode ser um erro estratégico gravíssimo, pois a partir do momento em que
os EUA se instalarem em Alcântara, será mais fácil manter a política externa
brasileira alinhada aos seus interesses, e cada vez mais difícil adotar uma
política externa independente.
Infelizmente, desde o golpe de Estado
de 2016 o país amarga uma postura diplomática antinacional, que o coloca numa
posição de subordinação a interesses estrangeiros. Há um mudança de rumo
evidente das posições do Brasil em relação a América do Sul, com o
enfraquecimento do Mercosul e da Unasul, e em relação a parceiros estratégicos,
com o afastamento dos Brics, que reúne Rússia, Índia, China e África do Sul. O
retrocesso é tamanho que se pode falar de subalternização explícita aos interesses
dos EUA.
Mais grave ainda é a situação quando
consideramos que essas decisões vêm sendo tomadas sem a participação popular,
atendando contra a soberania popular, que por sua vez está estritamente
vinculada aos valores democráticos.
É imperativo que o parlamento
brasileiro possa reagir a este agressivo assédio e que impeça a celebração de
acordos pautados pelas circunstâncias do período mais subalterno de nossa
história. Não há dúvidas a respeito da importância de fortalecer o Programa
Espacial Brasileiro e, por essa exata razão, é preciso garantir que seja feito
da forma mais altiva e soberana possível, respeitando a nossa tradição em
defesa nacional.
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