Pepe Escobar*
Tradução: Patrícia Zimbres
Pepe
Escobar escreve sobre a crise de Hong Kong: "O drama que se desenrola em
Hong Kong, na verdade, é um microcosmo do quadro mais amplo: hipercapitalismo neoliberal
turbinado confrontado com zero de representação política. Esse
"acerto", que só convém ao 0,1%, simplesmente não pode continuar como
era antes"
O que
está realmente acontecendo em Hong Kong? Para um ex-residente com profundos
laços culturais e emocionais com o Porto Fragrante, é bem difícil assimilar
tudo o que vem ocorrendo com base apenas em fria lógica geopolítica. O mestre
cineasta Wong Kar-Wai disse uma vez que quando lhe ocorreu a ideia de Happy
Together, ele decidiu filmar a história de seus personagens em Buenos
Aires, porque a cidade era a mais distante possível de Hong Kong.
Há
algumas semanas eu andava pelas ruas da longínqua Buenos Aires sonhando com
Hong Kong. A Hong Kong a que Wong Kar-Wai se refere em sua obra-prima não
existe mais. Embora lamentavelmente sem as fascinantes tomadas visuais de
Christopher Doyle, acabei voltando a Hong Kong para logo descobrir que a cidade
que eu conhecia também não existe mais.
Comecei
minha jornada no
meu antigo bairro, Sai Ying Pun, onde morei em um estúdio de
um arranha-céu cantonês médio, estreito e superpovoado (eu era o único
estrangeiro), do outro lado da rua da belíssima escola art-déco St. Louis e não
muito longe da Universidade de Hong Kong. Embora distante apenas vinte
minutos de caminhada do Central - o coração empresarial e político da cidade -
Sai Ying Pun é em grande parte um bairro de classe média com alguns bolsões de
classe operária, que só recentemente entrou em processo de gentrificação,
depois da inauguração de uma estação local do MTR, o metrô.
Mongkok,
do outro lado da baía, em Kowloon, com sua densidade populacional
estarrecedoramente alta, é o local do frenético pequeno comércio de Hong Kong,
sempre lotado de estudantes à caça de pechinchas estilosas. Sai Ying Pun, ao
contrário, é uma espécie de vislumbre lânguido da Hong Kong da década de 50: o
bairro facilmente poderia ser o cenário de um filme de Wong Kar-Wai.
Desde
aposentados até a Sra. Ling, a lavadeira - que ainda mora lá, mas agora sem sua
vasta população de gatos ("Em casa!") - o refrão é unânime: protestos
sim, mas eles têm que ser pacíficos. Em Kowloon, na noite anterior, ouvi
histórias angustiadas sobre professores doutrinando alunos de escola
primária para que eles fossem às passeatas de protesto. Não em St. Louis, me
disseram. A Universidade de Hong Kong é uma outra história: caldo de cultura de
protestos, em parte esclarecidos, onde o hit do momento nas humanidades é
analisar a China como a "ditadura perfeita", onde o Partido Comunista
Chinês nada fez além de promover nacionalismo grosseiro, militarismo e
"agressão" na propaganda e no trato com o restante da Ásia.
Quando
chegamos no Central, a matriz hongkonguêsa do hiper turbocapitalismo, os
"protestos" se transfiguram em palavrão de plebe rude, péssimo para os
negócios, inaceitável nos restaurantes do velho e discreto hotel Mandarin e do
mais suntuoso Mandarin Oriental, e também na sede do HSBC e do Banco da China,
projeto dos arquitetos Norman Foster e I.M. Pei, na sede do J.P. Morgan -- com
uma loja Armani no térreo -- ou no ultra-exclusivo China Club, o favorito das
velhas fortunas de Xangai.
Prada encontra a luta de classes
É nos
finais de semana, em especial aos domingos, que todas as contradições internas
de Hong Kong -- e também do turbocapitalismo -- explodem no Central. Há décadas
que empregadas domésticas filipinas, aos domingos, fazem ocupações
improvisadas, uma versão benigna do Occupy Central em dialeto tagalog
com legendas em inglês. Afinal, elas não têm um parque público onde possam se
reunir em seu único dia de folga, e por isso ocupam a galeria coberta do HSBC e
fazem alegres piqueniques nas calçadas em frente às butiques Prada.
Conversar
com elas sobre os protestos equivale a um PhD em luta de classes: "Nós é
que devíamos protestar contra nossos míseros salários e contra o tratamento
revoltante que recebemos dessas madames cantonesas", diz uma mãe de três
filhos de Luzon (70% de seu salário vão para remessas para a família, nas
Filipinas). "Esses garotos são tão mimados, eles são criados pensando que
são reizinhos".
Praticamente
todos em Hong Kong têm razões para protestar. Por exemplo, o batalhão da
limpeza -- que é quem tem que fazer o trabalho pesado depois de todo o gás
lacrimogêneo, dos latões de lixo incendiados, dos tijolos e do vidro quebrado,
como aconteceu no domingo. Seu salário mensal equivale a 1.200 dólares --
comparado à média salarial de Hong Kong, que é de cerca de 2.200 dólares.
Condições de trabalho horrendas são a norma: exploração, discriminação (muitos
são de minorias étnicas e não falam nem cantonês nem inglês) e absolutamente
nenhuma seguridade social.
Quanto
aos minguados grupos extremistas que praticam gratuitamente a destruição pela
destruição, eles, com toda a certeza, aprenderam suas táticas com os black
blocks europeus. No domingo, eles atearam fogo em uma das entradas da
ultra-congestionada estação de Wanchai e quebraram as vidraças do Ministério da
Marinha. A estratégia: interromper linhas do metrô, porque paralisar o Chek Lap
Kok -- um dos aeroportos com maior tráfego de passageiros do planeta -- deixou
de funcionar depois do fechamento de 12-13 de agosto, que provocou o
cancelamento de cerca de mil voos e levou a uma redução bastante pronunciada
dos passageiros vindos da China, do Sudeste Asiático e de Taiwan.
Na
França, o governo solta a Polícia Nacional, a temida CRS, contra os
manifestantes e ninguém se queixa invocando direitos humanos. Isso sem
mencionar que uma ocupação do Charles De Gaulle, de Heathrow ou do JFK seria
simplesmente impensável. O Chek Lap Kok, num dia de semana, está agora
fantasmagoricamente quieto. A polícia patrulha as entradas. Os passageiros que
chegam no trem-bala Airport Express agora têm que mostrar o passaporte e o
cartão de embarque antes de terem permissão para entrar no terminal.
Os
relatos da mídia ocidental, como seria de se esperar, centram-se nos
extremistas radicais, e também no significativo contingente de
quinta-colunistas. Neste último final de semana, algumas centenas de pessoas
realizaram um mini-protesto em frente ao Consulado Britânico, pedindo,
essencialmente, concessão de asilo político. Algumas delas possuem passaportes
BNO (British National Overseas) que, na prática, não servem para nada, por não
darem direito a trabalho ou residência no Reino Unido.
Outros
quinta-colunistas passaram o fim de semana acenando bandeiras da Grã-Bretanha,
Austrália, Canadá, França, Alemanha, Japão, Polônia, Coreia do Sul, Ucrânia,
Estados Unidos, Taiwan e, igualmente importante, a bandeira colonial de Hong
Kong.
Apresentando o Homo Hong Kong
Mas quem
são essas pessoas? Bem, isso nos leva necessariamente a um curso
intensivo sobre o Homo Hong Kong. Poucas pessoas em Hong Kong conseguiriam
identificar ancestrais anteriores à Guerra do Ópio de 1841 e ao subsequente
domínio do Império Britânico. A maioria delas sabe muito pouco sobre a
República Popular da China, e por essa razão, basicamente, não há muito rancor.
Elas são proprietárias de suas casas, o que é de crucial importância: elas
estão protegidas contra o problema número um de Hong Kong, que é seu mercado
imobiliário enlouquecido e altamente especulativo. E há também as elites da
velha China -- pessoas que fugiram da vitória de Mao, em 1949.
Inicialmente,
elas eram órfãs de Chiang Kai-Shek. Mais tarde, elas se dedicaram a odiar fervorosamente
o Partido Comunista. O mesmo se aplica a seus rebentos. Os super-ricos se
reúnem no China Club. Os menos abastados deles, no mínimo, conseguem comprar
apartamentos de cinco milhões de dólares no The Peak. O Canadá é a destinação
preferida, daí Hong-Couver ser uma parte significativa de Vancouver. Para eles,
Hong Kong é essencialmente uma escala, uma sala VIP luxuosa.
É esse o
contingente que está por trás dos protestos, e ele não é pequeno.
A camada
inferior das elites da Fuga da China são os refugiados econômicos de 1949. Pior
para eles, que até hoje não têm imóveis nem poupança. Muitos dos adolescentes
facilmente manipuláveis que vêm tomando as ruas de Hong Kong vestidos de preto
e cantando "Glória a Hong Kong" e sonhando com a "independência"
são os filhos e filhas dessa gente. Claro que é um clichê, mas se aplica bem ao
caso desses adolescentes: eles se veem aprisionados entre Oriente e Ocidente,
entre um estilo de vida exageradamente americanizado e a atração da história e
da cultura chinesa tradicional.
O cinema
de Hong Kong, com todo o seu dinamismo pulsante e sua emocionante criatividade,
talvez ofereça a metáfora perfeita para a compreensão das contradições internas
do Porto Fragrante. Tomemos a obra-prima de Tsui Hark, de 1992, New Dragon
Gate Inn, com Donnie Yen e a deslumbrante Maggie Cheung, baseado no que
ocorreu em uma passagem crucial da Antiga Rota da Seda, seis séculos atrás.
Aqui,
poderíamos ver Hong Kong como a estalagem situada entre o despotismo imperial e
o deserto. Dentro dela, encontramos os fugitivos aprisionados entre o sonho de
escapar para o "Ocidente" e os proprietários cínicos e exploradores.
Isso se liga ao terror existencial, fantasmagoricamente camusiano do Homo Hong
Kong moderno: é possível que, em breve, ele venha a correr o risco de ser
"extraditado" para a maléfica China antes de ter chance de conseguir
asilo em um Ocidente benévolo. Uma fala fantástica do personagem de Donnie Yen
resume tudo isso: "Chuva nas montanhas do Portão do Dragão faz com que o
tigre Xue Yuan desça".
É bom ser um magnata
O drama
que se desenrola em Hong Kong, na verdade, é um microcosmo do quadro mais
amplo: hipercapitalismo neoliberal turbinado confrontado com zero de
representação política. Esse "acerto", que só convém ao 0,1%, simplesmente
não pode continuar como era antes.
Por
sinal, o que escrevi para o Asia Times sobre Hong Kong há sete anos poderia ter
sido escrito esta manhã. E só fez piorar. Mais de 15% da população de Hong Kong
hoje vive em pobreza real. Segundo dados do ano passado, o patrimônio líquido
total dos 21 magnatas mais ricos de Hong Kong, de cerca de 234 bilhões de
dólares, era equivalente às reservas fiscais de Hong Kong. A maioria desses
magnatas são especuladores do mercado imobiliário. Compare-se essa cifra ao salário
real dos trabalhadores de baixa-renda, que cresceu míseros 12,3% ao longo da
década passada.
Pequim,
embora com atraso, talvez tenha despertado para o principal problema de Hong
Kong: a insanidade de seu mercado imobiliário, tal como relatado no Asia Times.
No entanto, mesmo que os magnatas entendam o recado, o arcabouço básico da vida
em Hong Kong dificilmente será alterado: a busca do lucro máximo esmagando os
salários e qualquer tipo de sindicalização.
Portanto,
a desigualdade econômica continuará crescendo explosivamente, enquanto um
governo sem representatividade, "liderado" por um funcionário público
totalmente incompetente, continua a tratar cidadãos como não-cidadãos. Na
Universidade de Hong Kong ouvi algumas propostas sérias: "Precisamos de um
salário mínimo mais realista. "Precisamos de tributação real sobre ganhos
de capital e sobre a propriedade". "Precisamos de um mercado
imobiliário decente".
Será que
essas questões serão tratadas antes do prazo crucial -- 1º de outubro -- quando
Pequim estará celebrando, com grande alarde, o 70º aniversário da República
Popular da China? Claro que não. Problemas continuarão fermentando na Estalagem
do Dragão -- enquanto faxineiras mal-remuneradas e hiperexploradas continuarem
se confrontando com o mais sombrio dos futuros.
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