14 de Novembro de 2016,
Brasil de Fato (Brasil)
João Pedro Stedile
Além de São Francisco de Assis, agora temos mais um Francisco
revolucionário
Estive
recentemente no 3° Encontro Mundial de Movimentos Populares em
Diálogo com o Papa Francisco, realizado no Vaticano de 2 a 5 de
novembro. Participaram mais de 200 delegados de 60 países,
representando movimentos inseridos nas lutas sociais de três áreas:
trabalho, terra e teto. Do Brasil, estávamos em oito delegados escolhidos pelos
movimentos populares dessas áreas.
O encontro se insere em
um processo permanente de debate, que iniciamos em 2013, do qual resultou
o primeiro encontro no Vaticano, em outubro de 2014,
depois um segundo mais massivo e latino-americano,
quando reunimos mais de 5 mil militantes populares em Santa Cruz de
la Sierra, Bolívia. E, agora, o terceiro encontro, de novo no
Vaticano.
Esse processo de
debates e diálogos entre o Papa Francisco e os movimentos
populares partiu de uma vontade política do pontífice, de dialogar e dar
protagonismo aos movimentos populares em todo mundo, como estímulo à
organização dos trabalhadores e
dos mais pobres, como esperança e
necessidade para as mudanças necessárias no sistema capitalista.
Por isso, os delegados
são escolhidos entre os dirigentes de movimentos populares, de todos os
continentes, com a maior pluralidade possível, considerando etnias, religiões,
idade, culturas e equidade de gênero. Ele pediu que se
evitasse levar agentes de pastorais da Igreja Católica, pois eles
teriam outros espaços. Mas sempre participam também desse processo de
diálogo, representantes do Vaticano, em especial da Pontifícia
Comissão de Justiça e Paz, e alguns bispos e cardeais, que tenham vínculos
reais com os movimentos populares em suas regiões.
No primeiro
encontro, a base do diálogo foi o debate sobre a realidade e a causa
dos problemas que vivem os trabalhadores nas três esferas da luta social.
Foi apresentado um amplo diagnóstico e reflexões sobre as saídas necessárias.
Usando sempre o método ver-julgar-agir. O Papa Francisco construiu um
documento, que, na essência, se resumiu na defesa de um programa de
que não deveríamos ter mais: “Nenhum camponês sem terra; nenhum
trabalhador sem direitos; e nenhuma família sem moradia digna!”.
Entre o primeiro e o
segundo encontro, seguiu-se um diálogo em torno dos problemas
ambientais, dos agrotóxicos, das sementes transgênicas, em que o
Papa consultou muitos especialistas, teólogos, bispos e movimentos que
atuam nessa área. E o resultado foi uma esplêndida encíclica: “Louvado
seja!”, na qual o Papa sistematiza reflexões, analisa as causas dos problemas
ambientais e propõe soluções. O texto é a mais profunda e rica
contribuição teórica e programática sobre o tema produzida em
todos os tempos. Uma contribuição que nem mesmo a tradição teórica de
esquerda havia produzido.
Depois, no segundo
encontro da Bolívia, com presença marcante de
afro-descendentes, povos indígenas e povos com conflitos em seus territórios,
como o povo curdo, avançou-se para o direito ao território.
O Papa inseriu em suas reflexões o conceito de que todo o povo
tem o direito a soberania popular sobre o seu território. E
avançou-se também na concepção de que os bens da natureza que existem nesses
territórios devem ser aproveitados em beneficio de todo povo, ou
seja, trata-se de um bem comum e não apenas um recurso a ser transformado
em mercadoria e renda extraordinária, como querem as empresas capitalistas
que exploram os bens da natureza, como os minérios, petróleo, água e
biodiversidade.
Agora, no terceiro
encontro, estava na pauta dos debates, novos temas relacionados com
os graves dilemas que a sociedade moderna está enfrentando
em todo o mundo. O primeiro tema foi a questão do Estado e da
democracia. Tivemos aqui a participação também do ex-presidente Pepe
Mujica, do Uruguai, e de outros dirigentes
políticos progressistas que enviaram reflexões. Há uma crítica
generalizada em todo mundo que a forma de funcionar do Estado burguês não
representa mais as bases republicanas dos interesses da maioria. Porque a
democracia representativa, formal, burguesa não consegue mais expressar
apenas pelo voto, o direito e a vontade da maioria da população. O capital
sequestrou a democracia pela forma de organizar as eleições.
E sobre esse tema, o
Papa reagiu e foi contundente que assombrou a todos, quando definiu que, na
realidade, existe um Estado mais que excludente, um estado terrorista, que
usa do dinheiro e do medo, para manipular a vontade das maiorias. O dinheiro
expressa a força do capital que sobrepassa as instituições democráticas e o
medo, imposto à população pela manipulação midiática permanente.
Entre todos
participantes, ficou a certeza de que precisamos aprofundar o debate em
nossos países, para construir novas formas de participação política do
povo que, de fato, garanta o direito do povo participar do poder político
em todos os espaços da vida social. E ninguém tem uma receita, uma fórmula,
depende da construção real na luta de classes de cada país. A realidade é
que esses processos eleitorais atuais não são democráticos e nem permitem a
realização da vontade do povo.
Um outro tema
debatido, que representou avanços em relação aos encontros anteriores, foi o
tema dos migrantes econômicos e dos refugiados políticos. A Europa vive
uma verdadeira tragédia com os refugiados do Oriente médio e da África.
Milhões, repito milhões, de pessoas estão migrando todos os dias, de todas
as formas, de barco, caminhando quilômetros e quilômetros para fugir
da morte rumo à Europa e lá encontram mais exclusão
e xenofobia, sendo que eles apenas estão lá, porque as empresas européias
são as principais fornecedoras de armas para a Arábia Saudita e governos
repressores da região.
Nesse sentido, a
reflexão dos movimentos seguiu na linha do direito a um território e da luta
contra a xenofobia. Do direito à autodeterminação dos povos e contra as guerras.
As guerras não resolvem nenhum conflito social e apenas criam mais problemas
sociais, além de ceifar a vida de milhares de pessoas, em geral os mais pobres
e trabalhadores. Todos os seres humanos são iguais, na sua natureza e nos
seus direitos. Aqui, emergiu a ideia de que devemos incorporar em todos nossos
programas a proposta da igualdade. A igualdade de oportunidades, de
direitos e deveres, é a única base de uma sociedade realmente democrática.
E, nesse tema, o
Papa Francisco revelou toda a sua coragem, ao denunciar que, quando um
banco vai a falência, logo surgem bilhões de euros para salvar seus
acionistas. Porém, quando um povo esta em dificuldade e migra, nunca há
recursos públicos para ajudá-los e encontra-se todo tipo de desculpas possíveis.
O Papa denunciou o sistema capitalista como autor dessa tragédia humana,
contemporânea que estamos vivendo, de exclusão, de superexploração dos
migrantes e dos refugiados, não só na Europa, mas em diversas regiões do
mundo, onde os países ditos ricos se protegem dos pobres e
migrantes, praticando ainda mais exclusão. Nunca se ergueram tantos muros
de exclusão, em tantos países, como agora.
Como vêem, os
debates foram muito interessantes. E devem seguir, por muito tempo
ainda, graças à abertura e à generosidade do Papa Francisco. Todos os
documentos na íntegra e os discursos do Papa podem ser encontrados aqui.
De nossa parte, da
delegação brasileira, levamos uma faixa com "Fora Temer",
em plena praça da Basílica de São Pedro, denunciando o golpe por aqui e saímos
convencidos de que, além de São Francisco de Assis, agora temos mais um
Francisco revolucionário na Igreja.
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