21 junho 2010/Vermelho http://www.vermelho.org.b
Em 21 de junho de 1830 nascia o grande líder abolicionista Luiz Gama. Apesar da importante contribuição que deu à causa da libertação dos escravos, o que faria dele um dos principais heróis do povo brasileiro, seu nome e feitos continuam praticamente desconhecidos.
Por Augusto Buonicore
Filho de Luiza Mahin, uma africana nagô que era líder do seu povo, e de um fidalgo português. Nasceu livre, mas foi vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha apenas 10 anos de idade. Fugiu do cativeiro e ganhou o mundo. Mesmo sem ter diploma universitário, se destacou como grande defensor da causa da liberdade. Sua ação abnegada nos tribunais garantiu a libertação de mais de quinhentos escravos.
Utilizava-se das brechas existentes nas próprias leis escravistas, que não eram respeitadas pelos fazendeiros. A principal delas era a de 1831, pela qual foram declarados livres todos os escravos que ingressassem no país após aquela data.
Na verdade, esta havia sido uma lei “para inglês ver” e jamais foi aplicada pelas autoridades brasileiras. No entanto, como não foi revogada, continuava em vigor. Gama conseguiu provar que muitos dos negros escravizados deveriam, legalmente, ser considerados homens e mulheres livres. Calcula-se que existiam cerca de 500 mil pessoas nessa infame situação.
Se tais ações fossem vitoriosas e se generalizassem poderiam representar um golpe de morte ao sistema escravista brasileiro. O próprio Ministério da Justiça imperial passou a pressionar os juizes para que não concedessem o pleito dos advogados abolicionistas. Luiz Gama escreveu: “Sou detestado pelos figurões da terra, que já me puseram a vida em risco; mas sou estimado em muito pela plebe. Quando fui ameaçado pelos grandes, que hoje encaram-me com respeito, e admiram minha tenacidade, tive a casa rondada e guardada pela gentalha”.
Ele era um político radical e estaria à frente daqueles que fundariam o Partido Republicano. Mas, rapidamente, se desentendeu com a maioria conservadora da nova organização. A principal divergência deu-se, justamente, em torno das propostas de abolição dos escravos. Os republicanos ligados aos grandes fazendeiros pregavam uma abolição gradual, com clausulas de permanência do trabalhador no município e indenização aos proprietários. Gama, pelo contrário, defendia a libertação imediata, sem condições e sem indenização. Escreveu ele: “Aos positivistas da macia escravidão, eu anteponho o das revoluções da liberdade; quero ser louco como John Brown, como Espártacus, como Lincoln, como Jesus; detesto, porém, a calma farisaica de Pilatos”.
Certa vez, quatro escravos mataram um fazendeiro e se entregaram à polícia. Logo em seguida, foram linchados por “populares” incitados por escravocratas, com a complacência das autoridades locais. Luís Gama, indignado com a chacina, afirmou: “Eu, que invejo, com profundo sentimento, esses quatro apóstolos do dever, morreria de nojo, de vergonha, se tivesse a desgraça de achar-me entre essa horda inqualificável de assassinos (...) Miseráveis: ignoram que mais glorioso é morrer livre, em uma forca, ou dilacerado pelos cães na praça pública, do que banquetear-se como os Neros na escravidão”. Esta foi mais uma prova do seu profundo compromisso com a causa dos escravos. Vários abolicionistas menos radicais, como Joaquim Nabuco, se chocavam com afirmações belicosas como essas.
Suas posições em defesa da abolição imediata, sem indenização, e da república trouxeram-lhe grandes infortúnios pessoais. Ele e sua família viviam à beira da miséria. As dificuldades, no entanto, não abalaram seus ideais nem o levaram a fazer concessões de princípios. Numa carta dirigida ao filho afirmou, com certa ponta de orgulho: “não se aterrorize com a extrema pobreza que lhe lego, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude”. (Veja a carta ao final do texto)
No dia 24 de agosto de 1882 morreu Luís Gama. São Paulo parou. Milhares de pessoas seguiram silenciosamente seu cortejo pelas ruas da cidade. Um jornal afirmou: “jamais esta capital (...) viu mais imponente e espontânea manifestação de dor para por um cidadão”. E continuou descrevendo a cena: “No meio do caminho, grande número de pretos, que tomavam parte no acompanhamento, não consentiu que ninguém mais conduzisse o corpo. E eles revezando-se entre si, conduziram-no pelo resto do caminho”. E pelas mãos dos negros paulistas seu corpo desceu ao túmulo.
Sob inspiração das idéias de Luis Gama, na segunda metade da década de 1880, formou-se uma ampla frente abolicionista envolvendo escravos, a pequena-burguesia urbana, a jovem burguesia industrial, o proletariado e setores da burocracia de Estado. Um dos catalizadores desse movimento emancipador foi a ação dos próprios homens e mulheres escravizados. Naquele período houve um aumento astronômico no número de rebeliões e de fugas. Estima-se que 1/3 dos 173 mil escravos tenha se evadido das fazendas paulistas apenas nos dois últimos anos que antecederam a abolição.
Leia, abaixo, a pungente carta autobiográfica escrita por Luiz Gama e endereçada ao seu amigo Lúcio de Mendonça. Ela deveria servir de subsídio para elaboração de um verbete que comporia um Almanaque Literário, editado em 1881.
São Paulo, 25 de julho de 1880
Meu caro Lúcio
Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito.
Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória.
Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguezia de Sant'Ana, a 21 de junho de 1830, por as 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.
Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.
Dava-se ao comércio era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.
Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma "casa de dar fortuna", em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses "amotinados" fossem mandados por fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores.
Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio-te.
Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.
Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho "Saraiva".
Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspeto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão. Tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principal-mente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa.
Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias.
Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir.Oh! eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio.
Este alferes Antônio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província.
Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas.
Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu "baiano".
Valeu-me a pecha!
O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egidio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.
Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: "— Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?
“Na Bahia, respondi eu. ‘Baiano?’ exclamou admirado o excelente velho.” Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno". Repelido como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio nº 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia.
Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar.
Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do sr. Cardoso, veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi-Guassu, onde é fazendeiro.
Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras.
Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se.
Estive, então, preso 39 dias, de 1º de julho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavorido saltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna.
Voltei para a minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.
Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. sr. conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho.
Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço público", pelos conservadores, que então haviam subido ao poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte.
A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis.
Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos, e redigi alguns.
Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no "Ipiranga", à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.
Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras.
Teu Luiz.
Carta-testamento escrita por Luiz Gama para seu filho
Meu filho,
Dize a tua mãe que a ela cabe o rigoroso dever de conservar-se honesta e honrada; que não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude.
Tu evitas a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos.
Sê republicano, como o foi o Homem-Cristo. Faze-te artista; crê, porém, que o estudo é o melhor entretenimento, e o livro o melhor amigo.
Faze-te o apóstolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigência e a ignorância. Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil.
Sê cristão e filósofo; crê unicamente na autoridade da razão, e não te alies jamais a seita alguma religiosa. Deus revela-se tão somente na razão do homem, não existe em Igreja alguma do mundo.
Há dois livros cuja leitura recomendo-te: a Bíblia Sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan.
Trabalha, e sê perseverante.
Lembra-te que escrevi estas linhas em momento supremo, sob a ameaça de assassinato. Tem compaixão de teus inimigos, como eu compadeço-me da sorte dos meus.
Teu pai Luiz Gama
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