28 dezembro 2014, Pátria Latina
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Opera Mundi
Filipe
Figueiredo
Guerra
do Paraguai deixou mais de meio milhão de pessoas mortas (Wikicommons)
Conflito
deixou legado de cerca de meio milhão de mortos, entre soldados e civis;
paraguaios desejam reafirmar nacionalidade
Em dezembro de 2014, celebra-se o
150° aniversário do maior conflito armado da América do Sul, conhecido no
Brasil como Guerra do Paraguai, travada entre 1864 e 1870. Também chamado de
Guerra da Tríplice Aliança ou Ñorairõ Guazú (“Guerra Grande”, em guarani), o
conflito deixou um legado de cerca de meio milhão de mortos, entre soldados e
civis. Um número preciso jamais será obtido, mas as estimativas das mortes
civis paraguaias flutuam entre 300 mil e um milhão; em números relativos, algo
entre 40% e 90% de sua população. O clichê diz que deve-se estudar a história
para compreender o presente. Cento e cinquenta anos depois, em uma América
Latina em desenvolvimento, com o Cone Sul do continente em ritmo de integração,
uma ferida permanece aberta, originada na guerra.
A relação do Paraguai com o
Brasil possui duas facetas. O país possui a quarta maior fronteira terrestre
com o Brasil, foco de intenso intercâmbio econômico. Na última década, o
comércio bilateral cresceu cerca de 300%, chegando
ao patamar de US$ 4 bilhões
em 2013. As exportações brasileiras para o país quintuplicaram. Hoje, o Brasil
exporta cerca de US$ 3 bilhões anuais para o Paraguai, e os investimentos
estrangeiros diretos brasileiros estão em segundo no ranking de capital
estrangeiro no país. Mesmo no desenvolvimento interno paraguaio, o Brasil
representa elemento essencial. Ano passado, foi inaugurada a linha de
transmissão que leva energia da usina de Itaipu à região de Assunção,
financiada pelo Brasil por meio de projeto do Fundo de Convergência Estrutural
do Mercosul (Focem).
A Usina de Itaipu é talvez o
principal marco das relações entre Brasil e Paraguai pós-guerra. A normalização
dessa relação se deu apenas na década de 1940; as décadas anteriores, embora de
relação amistosa, foram marcadas por repetidas remarcações fronteiriças e
negociações dos termos da paz de 1872. Em 1941, Getúlio Vargas realiza a
primeira visita de um Chefe de Estado brasileiro ao Paraguai, perdoa o restante
das dívidas de guerra e inicia o processo de devolução de documentos e troféus
do conflito. Em 1965, a inauguração da Ponte da Amizade consolida essa relação
pacífica que culmina, em 1973, com o Tratado de Itaipu, que estabelece a
construção da hidrelétrica binacional. Em 1991, o Tratado de Assunção, capital
paraguaia, estabelece o Mercosul com a expectativa de marcar um novo momento
nas relações políticas do Cone Sul.
A outra faceta demonstra
distensão e também como o conflito não foi totalmente superado. Em 1980, o
general João Baptista Figueiredo, então presidente, continua o processo de devolução
de documentos históricos e de troféus de guerra, incluindo a espada de Solano
López, líder paraguaio de 1862 até sua morte na batalha de Cerro Corá, em 1870.
A restauração de troféus e documentos históricos da guerra ao Paraguai é
matéria extremamente sensível na população e na política paraguaia. Hoje, o
último grande troféu da guerra e razão de disputa é o canhão El Cristiano. O
antigo canhão paraguaio, capturado pelas forças brasileiras, hoje é tombado
como patrimônio histórico brasileiro e está no Museu Histórico Nacional, no Rio
de Janeiro. Seu nome, traduzido como O Cristão, é explicado pela sua origem:
suas doze toneladas de bronze vieram dos sinos das igrejas paraguaias.
Em 2009, o Paraguai consultou o
Brasil sobre mais essa devolução de um objeto histórico da Guerra do Paraguai.
O então presidente Lula encaminhou o tema ao Ministério da Cultura, mas o tema
nunca avançou mais do que o suficiente para gerar polêmica e debate entre
historiadores, militares e a sociedade. A importância da peça fica clara em
declarações de políticos paraguaios. Em março de 2013, disse o então presidente
do Paraguai, Federico Franco: "Não haverá paz nem entre os soldados nem
entre a sociedade paraguaia enquanto não for recuperado o canhão
Cristiano'", em ocasião de cerimônia que homenageia os paraguaios mortos
na guerra. Federico Franco assumiu a presidência paraguaia após o atribulado
processo de impeachment, ou deposição, de Fernando Lugo, em junho de 2012 -- o
que está diretamente ligado ao segundo aspecto da relação entre Paraguai e
Brasil.
Com sua economia extremamente
ligada, até codependente, ao Brasil, o Paraguai não possui uma postura de
confiança ou aliança com Brasília. Em 2005, os valores pagos pelos brasileiros
a Assunção pelo seu excedente de energia elétrica produzida em Itaipu foram
renegociados de forma agressiva, com setores da sociedade paraguaia afirmando
que o Brasil “passava a perna” no Paraguai. O país, especialmente seu
legislativo conservador dominado pelo Partido Colorado, também condenou, e
condena, a postura brasileira durante a crise institucional vivenciada pelo
país em 2012, especialmente pelo fato do Paraguai ter sido suspenso do Mercosul
por supostamente violar sua cláusula democrática; com a ausência de Assunção no
processo, a Venezuela foi alçada ao posto de membro pleno do bloco.
O tema ainda é motivo de
protestos paraguaios, embora tenha sido oficialmente resolvido em agosto de
2013, com um reunião os presidentes Horácio Cartes, eleito no Paraguai naquele
mês, Nicolás Maduro, da Venezuela, e Dilma Rousseff; o encontro foi realizado à
margem da Cúpula da Unasul. Somam-se aos dois episódios citados a disputa
social interna ao Paraguai, entre paraguaios e “brasiguaios”, brasileiros que
residem na região fronteiriça. A disputa por terras já deixou vítimas fatais. A
mesma extensa fronteira terrestre que favorece o comércio está também
diretamente relacionada ao tráfico de drogas e de contrabando na região, outro
problema social que afeta as relações entre os dois países.
A sociedade paraguaia também se
queixa do que classifica de intervenções brasileiras na política interna
paraguaia. O presidente do Paraguai deposto em 1999, Raúl Cubas Grau, o general
Lino Oviedo, implicado na mesma crise política, e o ditador Alfredo Stroessner,
que governou o Paraguai por 35 anos, todos se exilaram no Brasil. A perspectiva
alimentada no Paraguai, sobre o Brasil, independente de ser ou não razoável, é
a de um império vizinho, que faz comércio e desenvolve, mas também explora e
intervêm. A semente dessa perspectiva contemporânea foi plantada na década de
1860, quando da derrota e destruição do Paraguai após ter iniciado o último
grande conflito da Bacia do Prata. A demanda paraguaia pelo canhão El
Cristiano, antes de ser apoiada ou não, deve ser compreendida. O interesse do
Paraguai não é pelo objeto ou pelo seu bronze, é por um símbolo que reafirme
sua nacionalidade, ferida 150 anos atrás.
*Filipe Figueiredo
é redator do Xadrez Verbal
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