13
janeiro 2015, Redecastorfoto
http://redecastorphoto.blogspot.com.br (Brasil)
9/1/2015, David North*, World Socialist Web Site The hypocrisy of the free speech “I am Charlie” meme
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real; de outro,
é o protesto contra a miséria real. A religião é o soluço da criatura oprimida,
o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de
espirito. É o ópio do povo. (Marx)
O
ataque à redação de Charlie Hebdo chocou o
público, horrorizado pela morte violenta de 12 pessoas, no centro de Paris. As
imagens de vídeo, vistas por milhões, dos pistoleiros disparando e matando um
policial já ferido, deram extraordinária atualidade aos eventos da 4ª-feira
(7/1/2015).
Imediatamente
depois do tiroteio, estado e imprensa-empresa imediatamente se puseram a tentar
explorar o medo e o estado de confusão em que a opinião pública foi lançada. Mais uma
vez, aí está exposto o caráter do terrorismo, de total fracasso político e de
ação essencialmente
reacionária. Serve aos interesses do Estado, que se serve
da ocasião que os terroristas lhe dão, para mobilizar o apoio ao militarismo e
ao autoritarismo.
Em
2003, quando o governo Bush invadiu o Iraque, a oposição do público francês foi
tão clara e avassaladora que o governo do então presidente Jacques Chirac foi
obrigado a opor-se à guerra, mesmo sob a mais furiosa pressão política que os
EUA aplicavam à França.
Hoje,
12 anos depois, com o presidente François Hollande dedicado a fazer da França o
principal aliado dos EUA na “guerra ao terror”, o ataque em Paris lhe cai ao
colo.
Para
o sucesso de seus esforços, Hollande pode confiar na imprensa-empresa, que
nessas circunstâncias dirige todas as próprias energias para manipular
emocionalmente os públicos audientes e para desorientá-los o mais possível, na
discussão política. A imprensa-empresa capitalista sabe combinar astutamente
a supressão da informação, meias verdades e deslavadas mentiras; e assim
“monta” uma narrativa que é pensada para apelar não só aos instintos mais
basais da população, mas, simultaneamente, também aos seus mais elevados
sentimentos democráticos e idealistas.
Por
toda a Europa e nos EUA, o que se diz é que o ataque contra a revista Charlie
Hebdo foi assalto contra a liberdade da imprensa-empresa e contra o
inalienável direito de jornalistas, em sociedade democrática, de expressarem-se
com liberdade, sem, por isso, terem a vida ameaçada. O assassinato dos
cartunistas e editores de Charlie Hebdo está sendo proclamado um
assalto aos princípios da liberdade de manifestação que, supostamente, seriam
muito importantes e sempre respeitados pela Europa e pelos EUA.
O
ataque à revista Charlie Hebdo é, então, apresentado como mais
um ultraje perpetrado por muçulmanos que não conseguiriam tolerar as
“liberdades” ocidentais. A partir disso, dever-se-ia concluir que a “guerra ao
terror” – quer dizer, o massacre, pelos imperialistas, de populações inteiras
no Oriente Médio, Ásia Central e África do Norte e Central – seria necessidade
urgente e inevitável.
Nessa
orgia de hipocrisia democrática, ninguém faz qualquer referência aos militares
norte-americanos, cujas guerras no Oriente Médio resultaram na morte de, pelo
menos, 15 jornalistas. Na narrativa em curso, segundo a qual a “Liberdade
de Expressão Está sob Ataque”, ninguém faz qualquer menção ao míssil ar-terra
disparado em 2003 contra a redação de Al Jazeera em Bagdá, que
matou três jornalistas e feriu quatro.
Nem
nada se escreveu sobre o assassinato de dois jornalistas da Reuters, em julho
de 2007, que trabalhavam em Bagdá, o fotógrafo Namir
Noor-Eldeen e
seu assistente, Saeed Chmagh. Os dois foram mortos num ataque deliberado de
atiradores a bordo de um Apache norte-americano, quando trabalhavam no leste de
Bagdá.
O
público norte-americano e planetário viu pela primeira vez o vídeo que prova
que aqueles jornalistas foram assassinados a sangue frio, com um grupo de civis
iraquianos, filmado por um dos soldados norte-americanos matadores – porque o
vídeo foi “vazado” por Wikileaks, com outros materiais sigilosos, depois que
chegou às mãos do ex-soldado dos EUA, cabo Bradley-Chelsea Manning.
E
como agiram os EUA e a Europa, quando se tratou de proteger o direito ao livre
exercício de expressão de WikiLeaks? Julian Assange, fundador e editor de
WikiLeaks, foi e continua alvo da mais incansável perseguição. Figuras
conhecidas no mundo político e “midiático” nos EUA e no Canadá denunciaram
Assange como “terrorista” e exigiram que fosse preso. Houve “democratas” que
pregaram publicamente, até, o assassinato de Assange.
Até
hoje prossegue um processo fraudulento, em que Assange foi alvo de acusações
falsas de “estupro”, armado por serviços de inteligência dos EUA e da Suécia.
Foi obrigado a buscar abrigo na Embaixada do Equador em Londres, onde permanece
sob vigilância constante da polícia britânica – que pode prendê-lo se Assange
deixar o território da embaixada. Quanto a Chelsea Manning, continua presa, já
condenada a 35 anos de prisão por crime de traição.
Eis
como as grandes “democracias” capitalistas dos EUA e da Europa demonstraram,
até hoje, o seu compromisso com a livre expressão e a segurança dos
jornalistas!
A
narrativa desonesta e hipócrita que estado e imprensa-empresa encarregam-se de
construir e distribuir exige que Charlie Hebdo e os
cartunistas e jornalistas assassinados sejam convertidos em mártires da livre
manifestação e representantes de uma sempre reverenciada tradição democrática
do jornalismo hardcore pressuposto “iconoclasta”.
Em
coluna publicada no Financial Times na 4ª-feira (7/1/2015), o
historiador liberal Simon
Schama inclui Charlie
Hebdo numa gloriosa tradição de irreverência “jornalística”, que seria
“o próprio sangue vital da liberdade”. Relembra os grandes satiristas europeus
entre os século XVI e XIX, que não poupavam os grandes e poderosos. Dentre seus
alvos ilustres, Schama nos relembra do brutal Duque de Alba, que, nos anos
1500s afogou em sangue os holandeses que lutavam por liberdade; o “Rei Sol”
francês, Luiz XIV, o primeiro-ministro britânico William Pitt; e o Príncipe de
Gales.
A
sátira,
ensina Schama, passou a ser o oxigênio da política, permitindo a risada
saudável que tudo ventila nos cafés e nas tavernas, onde caricaturas circulavam
todos os dias, todas as semanas.
Schama
tenta pôr Charlie Hebdo numa tradição à qual, por justiça, a
revista não pertence. Todos os grandes satiristas aos quais Schama refere-se
foram manifestação de um Iluminismo democrático e esclarecido – que usava o
escárnio como arma contra os poderosos e corruptos defensores do privilégio
aristocrático. Em todos os seus muitos retratos em que Charlie Hebdo degradou
os muçulmanos, a revista e seus autores zombaram, exclusivamente, dos mais
pobres dos pobres e dos mais fracos dos fracos.
Falar
com clareza sobre o caráter sórdido, cínico e degradado de Charlie Hebdo não
é pactuar com os assassinatos. Mas quando o slogan “Eu Sou Charlie” passa a ser
adotado e promovido pela imprensa-empresa [“Murdoch
é Charlie” (NTs)] como
“lema” das manifestações de protesto, todos os que não tenham sido
completamente dominados e já sejam controlados pelo estado e pela
imprensa-empresa de propaganda do capital são obrigados a replicar:
Nos
opomos ao ataque violento contra o jornal, mas não somos, nem nada temos a ver
com a revista Charlie
Hebdo: nós não somos Charlie.
Os
marxistas conhecemos há muito tempo a luta para superar a influência da
religião nas massas. Mas os marxistas sempre fazemos essa luta com clara
compreensão de que a fé religiosa é mantida por condições adversas e por
miséria e sofrimentos desesperados. Não se zomba de nenhuma religião: temos de
compreender e criticar a religião, como Marx compreendeu e criticou:
O
fundamento da crítica não religiosa é: o homem cria a religião; não é a
religião que cria o homem. E a religião é, bem entendido, a autoconsciência e o
autossentimento do homem que ainda não é senhor de si mesmo ou que novamente se
perdeu (...) A
miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o
protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de
um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio
do povo.
A
abolição da religião como felicidade ilusória do povo é uma exigência formulada
pela felicidade real. Exigir que alguém renuncie às ilusões acerca da própria
situação é exigir que renuncie a uma situação que precisa de ilusões. Criticar
a religião é pois, em germe, a crítica deste vale de lágrimas, de que a
religião é a auréola. [Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel, 1843-1844, marxists.org]
E
basta ler essas palavras para perceber a grande distância moral que separa o
marxismo, de um lado, e, de outro lado, o cinismo político doentio de uma
“ex-esquerda”, que se manifesta no discurso de Charlie Hebdo.
Nada
há, em Charlie Hebdo que ilumine alguém ou alguma coisa, muito
menos que ajude algum pobre a viver. Tudo, ali, é achincalhe obsceno, pueril,
tolo, arrogante, zombaria para desqualificar a religião muçulmana (e também
outras religiões) e suas tradições.
As
caricaturas antimuçulmanos, cinicamente provocativas, que apareceram em tantas
capas de Charlie Hebdo alimentaram, inflaram e facilitaram o
crescimento de movimentos chauvinistas de direita na França. É absolutamente
absurdo pretender, como argumento para defender Charlie Hebdo, que
as charges eram objetos de “boa fé, bom riso” e não buscavam consequências
políticas.
À
parte do fato de que o governo francês busca desesperadamente apoio para sua
agenda cada dia mais militarista na África e no Oriente Médio, a França é país
no qual a influência da Frente Nacional neofascista cresce sem parar,
rapidamente. Nesse contexto político, Charlie Hebdo facilitou
o crescimento de uma forma de sentimento politizado, antimuçulmanos, que se
aproxima, muito preocupante e perturbadoramente, do antissemitismo politizado
que emergiu como movimento de massas na França, nos anos 1890s.
Ao
servir-se sempre de caricaturas horrorosas, vulgares, que criam e
simultaneamente divulgam uma imagem sinistra e estereotipada dos
muçulmanos, Charlie Hebdo faz lembrar as publicações racistas,
baratas, que tiveram papel significativo no processo de incendiar a violência
antissemita que enlouqueceu a França durante o famoso Caso Dreyfus, que
irrompeu em 1894, quando um oficial judeu foi falsamente acusado e, na
sequência condenado, por espionar a favor da Alemanha.
O
mais infame dos jornais, usado para inflar o ódio aos judeus entre a população
francesa levava o título, precisamente, de “A palavra livre”, La Libre Parole,
animado pelo jornalista antissemita Edoard Adolfe Drumont. Esse
jornal fazia uso efetivo e intensivo de charges, todas carregadas da mais
empenhada propaganda antissemita. Aquelas caricaturas antissemitas inflamaram a
opinião pública, incendiaram as massas contra Dreyfus e os que o defendiam,
como Emile Zola (“J’accuse”).
Este
nosso website, The World Socialist Web Site, assentado
sobre princípios políticos há muito tempo definidos e afirmados, opõe-se
inequivocamente ao ataque terrorista contra Charlie Hebdo.
Mas
absolutamente nos recusamos a aceitar que Charlie Hebdo seja
apresentado como mártir da casa da democracia e da livre manifestação do
pensamento. Ativamente alertamos nossos leitores para que não se deixem seduzir
pela agenda reacionária que está motivando e dando alento à campanha hipócrita
e desonesta que está chegando às ruas.
*David North (nasceu em 1950) é norte-americano. Atualmente
é Presidente nacional do Partido da Igualdade Socialista nos Estados
Unidos (SEP), anteriormente chamado Liga dos Trabalhadores. Serviu como
secretário nacional do SEP. Foi o principal líder político e teórico do Comitê
Internacional da Quarta Internacional (CIQI) após a cisão da organização com o
Partido Revolucionário dos Trabalhadores. É também Presidente do Conselho
Editorial Internacional do World Socialist
Web Site, a voz do CIQI.
Autor de vários livros e artigos sobre a história do movimento socialista. Ele
ministra palestras sobre Política e História do marxismo.
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