quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A HIPOCRISIA DO MEME “EU SOU CHARLIE” E DA TAL “LIVRE MANIFESTAÇÃO”

13 janeiro 2015, Redecastorfoto http://redecastorphoto.blogspot.com.br (Brasil)

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real; de outro, é o protesto contra a miséria real. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo. (Marx)

O ataque à redação de Charlie Hebdo chocou o público, horrorizado pela morte violenta de 12 pessoas, no centro de Paris. As imagens de vídeo, vistas por milhões, dos pistoleiros disparando e matando um policial já ferido, deram extraordinária atualidade aos eventos da 4ª-feira (7/1/2015).

Imediatamente depois do tiroteio, estado e imprensa-empresa imediatamente se puseram a tentar explorar o medo e o estado de confusão em que a opinião pública foi lançada. Mais uma vez, aí está exposto o caráter do terrorismo, de total fracasso político e de ação essencialmente
reacionária. Serve aos interesses do Estado, que se serve da ocasião que os terroristas lhe dão, para mobilizar o apoio ao militarismo e ao autoritarismo.

Em 2003, quando o governo Bush invadiu o Iraque, a oposição do público francês foi tão clara e avassaladora que o governo do então presidente Jacques Chirac foi obrigado a opor-se à guerra, mesmo sob a mais furiosa pressão política que os EUA aplicavam à França.

Hoje, 12 anos depois, com o presidente François Hollande dedicado a fazer da França o principal aliado dos EUA na “guerra ao terror”, o ataque em Paris lhe cai ao colo.

Para o sucesso de seus esforços, Hollande pode confiar na imprensa-empresa, que nessas circunstâncias dirige todas as próprias energias para manipular emocionalmente os públicos audientes e para desorientá-los o mais possível, na discussão política. A imprensa-empresa capitalista sabe combinar astutamente a supressão da informação, meias verdades e deslavadas mentiras; e assim “monta” uma narrativa que é pensada para apelar não só aos instintos mais basais da população, mas, simultaneamente, também aos seus mais elevados sentimentos democráticos e idealistas.

Por toda a Europa e nos EUA, o que se diz é que o ataque contra a revista Charlie Hebdo foi assalto contra a liberdade da imprensa-empresa e contra o inalienável direito de jornalistas, em sociedade democrática, de expressarem-se com liberdade, sem, por isso, terem a vida ameaçada. O assassinato dos cartunistas e editores de Charlie Hebdo está sendo proclamado um assalto aos princípios da liberdade de manifestação que, supostamente, seriam muito importantes e sempre respeitados pela Europa e pelos EUA.

O ataque à revista Charlie Hebdo é, então, apresentado como mais um ultraje perpetrado por muçulmanos que não conseguiriam tolerar as “liberdades” ocidentais. A partir disso, dever-se-ia concluir que a “guerra ao terror” – quer dizer, o massacre, pelos imperialistas, de populações inteiras no Oriente Médio, Ásia Central e África do Norte e Central – seria necessidade urgente e inevitável.

Nessa orgia de hipocrisia democrática, ninguém faz qualquer referência aos militares norte-americanos, cujas guerras no Oriente Médio resultaram na morte de, pelo menos, 15 jornalistas. Na narrativa em curso, segundo a qual a “Liberdade de Expressão Está sob Ataque”, ninguém faz qualquer menção ao míssil ar-terra disparado em 2003 contra a redação de Al Jazeera em Bagdá, que matou três jornalistas e feriu quatro.

Nem nada se escreveu sobre o assassinato de dois jornalistas da Reuters, em julho de 2007, que trabalhavam em Bagdá, o fotógrafo Namir Noor-Eldeen e seu assistente, Saeed Chmagh. Os dois foram mortos num ataque deliberado de atiradores a bordo de um Apache norte-americano, quando trabalhavam no leste de Bagdá.

O público norte-americano e planetário viu pela primeira vez o vídeo que prova que aqueles jornalistas foram assassinados a sangue frio, com um grupo de civis iraquianos, filmado por um dos soldados norte-americanos matadores – porque o vídeo foi “vazado” por Wikileaks, com outros materiais sigilosos, depois que chegou às mãos do ex-soldado dos EUA, cabo Bradley-Chelsea Manning.

E como agiram os EUA e a Europa, quando se tratou de proteger o direito ao livre exercício de expressão de WikiLeaks? Julian Assange, fundador e editor de WikiLeaks, foi e continua alvo da mais incansável perseguição. Figuras conhecidas no mundo político e “midiático” nos EUA e no Canadá denunciaram Assange como “terrorista” e exigiram que fosse preso. Houve “democratas” que pregaram publicamente, até, o assassinato de Assange.

Até hoje prossegue um processo fraudulento, em que Assange foi alvo de acusações falsas de “estupro”, armado por serviços de inteligência dos EUA e da Suécia. Foi obrigado a buscar abrigo na Embaixada do Equador em Londres, onde permanece sob vigilância constante da polícia britânica – que pode prendê-lo se Assange deixar o território da embaixada. Quanto a Chelsea Manning, continua presa, já condenada a 35 anos de prisão por crime de traição.

Eis como as grandes “democracias” capitalistas dos EUA e da Europa demonstraram, até hoje, o seu compromisso com a livre expressão e a segurança dos jornalistas!

A narrativa desonesta e hipócrita que estado e imprensa-empresa encarregam-se de construir e distribuir exige que Charlie Hebdo e os cartunistas e jornalistas assassinados sejam convertidos em mártires da livre manifestação e representantes de uma sempre reverenciada tradição democrática do jornalismo hardcore pressuposto “iconoclasta”.

Em coluna publicada no Financial Times na 4ª-feira (7/1/2015), o historiador liberal Simon Schama inclui Charlie Hebdo numa gloriosa tradição de irreverência “jornalística”, que seria “o próprio sangue vital da liberdade”. Relembra os grandes satiristas europeus entre os século XVI e XIX, que não poupavam os grandes e poderosos. Dentre seus alvos ilustres, Schama nos relembra do brutal Duque de Alba, que, nos anos 1500s afogou em sangue os holandeses que lutavam por liberdade; o “Rei Sol” francês, Luiz XIV, o primeiro-ministro britânico William Pitt; e o Príncipe de Gales.

A sátira, ensina Schama, passou a ser o oxigênio da política, permitindo a risada saudável que tudo ventila nos cafés e nas tavernas, onde caricaturas circulavam todos os dias, todas as semanas.

Schama tenta pôr Charlie Hebdo numa tradição à qual, por justiça, a revista não pertence. Todos os grandes satiristas aos quais Schama refere-se foram manifestação de um Iluminismo democrático e esclarecido – que usava o escárnio como arma contra os poderosos e corruptos defensores do privilégio aristocrático. Em todos os seus muitos retratos em que Charlie Hebdo degradou os muçulmanos, a revista e seus autores zombaram, exclusivamente, dos mais pobres dos pobres e dos mais fracos dos fracos.

Falar com clareza sobre o caráter sórdido, cínico e degradado de Charlie Hebdo não é pactuar com os assassinatos. Mas quando o slogan “Eu Sou Charlie” passa a ser adotado e promovido pela imprensa-empresa [Murdoch é Charlie” (NTs)] como “lema” das manifestações de protesto, todos os que não tenham sido completamente dominados e já sejam controlados pelo estado e pela imprensa-empresa de propaganda do capital são obrigados a replicar:

Nos opomos ao ataque violento contra o jornal, mas não somos, nem nada temos a ver com a revista Charlie Hebdo: nós não somos Charlie.

Os marxistas conhecemos há muito tempo a luta para superar a influência da religião nas massas. Mas os marxistas sempre fazemos essa luta com clara compreensão de que a fé religiosa é mantida por condições adversas e por miséria e sofrimentos desesperados. Não se zomba de nenhuma religião: temos de compreender e criticar a religião, como Marx compreendeu e criticou:

O fundamento da crítica não religiosa é: o homem cria a religião; não é a religião que cria o homem. E a religião é, bem entendido, a autoconsciência e o autossentimento do homem que ainda não é senhor de si mesmo ou que novamente se perdeu (...) A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo.

A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é uma exigência formulada pela felicidade real. Exigir que alguém renuncie às ilusões acerca da própria situação é exigir que renuncie a uma situação que precisa de ilusões. Criticar a religião é pois, em germe, a crítica deste vale de lágrimas, de que a religião é a auréola. [Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843-1844, marxists.org]

E basta ler essas palavras para perceber a grande distância moral que separa o marxismo, de um lado, e, de outro lado, o cinismo político doentio de uma “ex-esquerda”, que se manifesta no discurso de Charlie Hebdo.

Nada há, em Charlie Hebdo que ilumine alguém ou alguma coisa, muito menos que ajude algum pobre a viver. Tudo, ali, é achincalhe obsceno, pueril, tolo, arrogante, zombaria para desqualificar a religião muçulmana (e também outras religiões) e suas tradições.

As caricaturas antimuçulmanos, cinicamente provocativas, que apareceram em tantas capas de Charlie Hebdo alimentaram, inflaram e facilitaram o crescimento de movimentos chauvinistas de direita na França. É absolutamente absurdo pretender, como argumento para defender Charlie Hebdo, que as charges eram objetos de “boa fé, bom riso” e não buscavam consequências políticas.

À parte do fato de que o governo francês busca desesperadamente apoio para sua agenda cada dia mais militarista na África e no Oriente Médio, a França é país no qual a influência da Frente Nacional neofascista cresce sem parar, rapidamente. Nesse contexto político, Charlie Hebdo facilitou o crescimento de uma forma de sentimento politizado, antimuçulmanos, que se aproxima, muito preocupante e perturbadoramente, do antissemitismo politizado que emergiu como movimento de massas na França, nos anos 1890s.

Ao servir-se sempre de caricaturas horrorosas, vulgares, que criam e simultaneamente divulgam uma imagem sinistra e estereotipada dos muçulmanos, Charlie Hebdo faz lembrar as publicações racistas, baratas, que tiveram papel significativo no processo de incendiar a violência antissemita que enlouqueceu a França durante o famoso Caso Dreyfus, que irrompeu em 1894, quando um oficial judeu foi falsamente acusado e, na sequência condenado, por espionar a favor da Alemanha.

O mais infame dos jornais, usado para inflar o ódio aos judeus entre a população francesa levava o título, precisamente, de “A palavra livre”, La Libre Parole, animado pelo jornalista antissemita Edoard Adolfe Drumont. Esse jornal fazia uso efetivo e intensivo de charges, todas carregadas da mais empenhada propaganda antissemita. Aquelas caricaturas antissemitas inflamaram a opinião pública, incendiaram as massas contra Dreyfus e os que o defendiam, como Emile Zola (J’accuse).

Este nosso websiteThe World Socialist Web Site, assentado sobre princípios políticos há muito tempo definidos e afirmados, opõe-se inequivocamente ao ataque terrorista contra Charlie Hebdo.

Mas absolutamente nos recusamos a aceitar que Charlie Hebdo seja apresentado como mártir da casa da democracia e da livre manifestação do pensamento. Ativamente alertamos nossos leitores para que não se deixem seduzir pela agenda reacionária que está motivando e dando alento à campanha hipócrita e desonesta que está chegando às ruas.

*David North (nasceu em 1950) é norte-americano. Atualmente  é Presidente nacional do Partido da Igualdade Socialista nos Estados Unidos (SEP), anteriormente chamado Liga dos Trabalhadores. Serviu como secretário nacional do SEP. Foi o principal líder político e teórico do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) após a cisão da organização com o Partido Revolucionário dos Trabalhadores. É também Presidente do Conselho Editorial Internacional do World Socialist Web Site, a voz do CIQI. Autor de vários livros e artigos sobre a história do movimento socialista. Ele ministra palestras sobre Política e História do marxismo.


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