10
janeiro 2015, Leonardo Boff
https://leonardoboff.wordpress.com (Brasil)
Há
muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris, matando vários
cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes mais profundas
deste fato condenável mas que exige uma interpretação que englobe seus vários
aspectos ocultados pela midia internacional e pela comoção legítima face a um
ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis
muçulmanos. Evidentemente não se responde com o assassianto. Mas também não se
devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a
lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos. Publico aqui um
texto de um padre que é teóloogo e historiador e conhece bem a situação da
França atual. Ele nos fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas
reflexões nos ajudam a ver
a complexidade deste anti-fenômeno com suas
aplicações também à situação no Brasil: Lboff
***************************
Eu
condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a violência,
apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou da paz e
me esforço para ter auto controle sobre minhas emoções…
Lembro
da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da
humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”.
Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece,
acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que
os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem,
que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa
imprensa, à honestidade, que a revista Veja, a Globo e outros veículos da
imprensa brasileira promoveram nesta última eleição.
A
Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970, é mais ou
menos o que foi o Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi
conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a
revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten
(identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita europeia). E
porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem
mais…
O
editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em
2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que
gerou críticas da colega de revista Mona Chollet (críticas que foram resolvidas
com a demissão sumaria dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi
substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o
comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã,
ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…
A
França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das
ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na
sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de
segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os atentados do
World Trade Center, a situação piorou.
Alguns
chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os “gigantes do humor
politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de “mártires da liberdade de
expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do
Charlie Hebdo, como os comentários políticos de colunistas da Veja, são de
péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas,
criminosas até, por dois motivos.
O
primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o
Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito
central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os
muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a
imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…
Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?
Note
que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos
específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã,
por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os
valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato
imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações
islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais
franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância (ver Caso
Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas eleições
e no julgar com dois pesos e duas medidas casos de corrupção de políticos do
PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.
Foi
como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as
charges e textos contra o Islã e contra o cristianismo, se tem dúvidas, procure
no Google e veja as publicações que eles fazem, não tenho coragem de
publicá-las aqui…
Mas
existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os
muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam
caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo
alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e “explodir”…). Alguns
argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do
momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização.
Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um
desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se
fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela
não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…
E
aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de
muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a
frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A
piada tem esse poder. Mas piadas são sempre preconceituosas, ela transmite e
alimenta o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as
pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe
terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho
muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que
inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a
Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são
alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas.
Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é
hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…
Uma
das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam
católicos e judeus…
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas
isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos
significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se
decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas
sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos
fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia,
isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode
usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso
também é censura. Nem toda censura é ruim…
Deixo
claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou
dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser
banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos
devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E
é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de
balas de fuzis ou bombas.
Voltando
à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do
que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine
Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida.
Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra exatamente as raízes
da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou
esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em
seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não
abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de
medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até…
charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do
mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De
longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de
culto islâmico na França foram atacados, um deles com granadas!, nessa
madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen,
que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos
ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).
Por
isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou
Charlie. Je ne suis pas
Charlie.
Nenhum comentário:
Postar um comentário