28 julho 2016, Odiario.info http://www.odiario.info
(Portugal)
Eduardo Grüner
Professor na Universidade de Buenos Aires (UBA)
Os haitianos ainda hoje pagam
caro o atrevimento de em 1804 terem aprovado a mais radical e igualitária das
Constituições do século XIX.
Eduardo Grüner ensina-nos que os haitianos não se limitaram a construir a 1ª República independente negra do mundo, mas também descobriram que eles estavam excluídos da «totalidade» da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que haviam recebido com alvoroçada e vã esperança.
E para isso, logo no seu artº 14º a Constituição haitiana de 1804 define a totalidade, agora a partir da parte que havia sido excluída (eles), e prescreve:
«Todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros», denominação que não excluía brancos nem mulheres…
Eduardo Grüner ensina-nos que os haitianos não se limitaram a construir a 1ª República independente negra do mundo, mas também descobriram que eles estavam excluídos da «totalidade» da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que haviam recebido com alvoroçada e vã esperança.
E para isso, logo no seu artº 14º a Constituição haitiana de 1804 define a totalidade, agora a partir da parte que havia sido excluída (eles), e prescreve:
«Todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros», denominação que não excluía brancos nem mulheres…
Começo por citar uma abruptamente
uma frase justamente célebre em certos meios restritos, ainda que devesse sê-lo
muito mais conhecida, pelo seu profundo alcance numa teoria crítica da
identidade. A frase é esta:
«Todos os cidadãos, de ora em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros».
Esta frase não é a expressão de
um capricho, nem um improviso provocatório, e muito menos um delírio
surrealista. É o artigo 14º da Constituição Haitiana de 1805, promulgada por
Jean-Jacques Dessalines, de acordo com os rascunhos de Toussaint Louverture em
1801, mas cuja institucionalização teve que
esperar pela Declaração de
Independência de 1804, com Toussaint já morto nas prisões napoleónicas. E, na
passada, sirva esta referência para questionar a bizarra ideia de festejar o
chamado «Bicentenário» das revoluções independentistas americanas em 2010,
quando a primeira, a mais radical e a mais inesperada dessas revoluções foi
levada a cabo em 1804 e não em 1810. A mais radical, digo bem, visto que nela
foram os ex-escravos africanos – isto é, a classe dominada por excelência, e
não as novas elites «burguesas» compostas por europeus brancos – os que tomaram
o poder para fundar uma republica, justamente chamada negra.
Mas voltemos à nossa pequena
frase citada. O que é que se está a jogar na sua estranha formulação?
Recordemos alguns antecedentes mínimos. Haiti – que antes de 1804 se chamava de
S. Domingos – era de longe a mais rica colónia francesa no Caribe, e há até
quem afirme que era a mais rica colónia em qualquer parte. Em 1789, quando
rebenta a chamada revolução «Francesa», havia nessa sociedade plantadora e
esclavagista produtora de açúcar e café uns 500.000 escravos de origem
africana, uns 27.000 colonos brancos e uns 34.000 «mulatos». Já no princípio do
século XVIII os cartesianos ocupantes franceses, com a sua racionalista paixão
taxonómica, tinham acreditado poder detetar e classificar 126 tonalidades
diferentes de «negritude», cada uma com a sua respetiva denominação e
«caracterologia». Rebentada a revolução na metrópole, os escravos recebem
alvoroçados as notícias sobre o seu maior documento político, a Declaração dos
Direitos Universais do Homem e do Cidadão, só para rapidamente se inteirarem
que eles não são membros desse «universal»: são a parte sem a qual o Todo não
poderia funcionar (qualquer coisa mais que uma terça parte das receitas
francesas provenientes do trabalho escravo de S. Domingo), pelo que devem ficar
como a particularidade excluída do «Universal», para que o novo «Todo» possa
ser sustentado pela economia. E que por isso mesmo terão que iniciar – em 1791
– um longo e violento processo revolucionário próprio, com a paradoxal
finalidade de cumprir esse postulado de «universalidade» que lhes é alheia, ou
melhor dito roubada, o que custará aos ex-escravos a bagatela de 200.000 vidas.
O verdadeiro paradoxo – quase nos atrevíamos a dizer o escândalo – é que a
revolução haitiana é nesse sentido, «mais francesa que a francesa» porque é
haitiana – porque é a particularidade que por definição falta à «Totalidade».
O artigo 14º é pois, como costuma
dizer-se, uma reparação, jurídico-política em primeiro lugar, mas também e
sobretudo, «filosófica», e de uma radicalidade filosófica autenticamente
inédita.
No que diz respeito ao tema que
hoje nos traz aqui, a sua dinâmica questiona criticamente, de facto, todas as
dúvidas de qualquer princípio de «identidade» universal. Com a declaração de
independência de 1804 nasce, como dizíamos, uma república «negra», mas com nome
indígena («Hayti», é o antigo nome da ilha na língua taína). Primeira
manifestação de pluralidades «identitárias» cruzadas.
Mas se se quiserem mais provas da
densidade filosófica do conteúdo político da revolução, bastaria citar o
primeiro parágrafo do Preâmbulo da nova constituição, promulgada por Dessalines
em 20 de maio de 1805:
«Na presença do Ser Supremo, perante quem todos os mortais são iguais, e que disseminou tantas classes de seres diferentes cobre a superfície do globo com o único propósito de manifestar a sua glória e poder através daa diversidade das suas obras…».
Já não se trata, vê-se, da
simples homogeneidade abstrata da igualdade perante a Lei (humana ou divina).
Começa-se por afirmar uma igualdade universal para, no mesmo movimento, asseverar
a diferença e a diversidade. Apela-se à retórica ilustrada da revolução
francesa (o «Ser Supremo») para imediatamente dotar o Ser de determinações
particular-concretas. A frase seguinte avança um pouco mais neste caminho:
«…Perante a criação inteira,
cujos filhos despossuídos temos tão injustamente e durante tanto tempo sido
considerados…»
Outra vez a totalidade da criação
é especificada pela sua parte excluída, «despossuída» -- por essa
parte-que-não-tem-parte, como diria Jacques Rancière: para o nosso caso, os
antigos escravos negros («etnia» e classe são novamente evocados para definir
um não-lugar na totalidade). Tudo concorre para a arquitetura textual de uma
complicada dialética na qual universalismo e particularismo, na verdade, se
referenciam mutuamente, ainda que sem operar uma «síntese superadora», como
faria uma certa vulgata hegeliana: a igualdade universal não poderia ser
alcançada sem a exigência particular dos escravos negros que foram «expulsos»
da universalidade; ao contrário, a sua exigência particular só tem sentido pela
sua referência á universalidade. A primeira desborda a segunda e à segunda
é-lhe pequena a primeira. A parte é mais que o «Todo» ao que a parte lhe faz
falta.
Esta estrutura ainda se manifesta
mais quando confrontamos aqueles artigos do corpo constitucional que abordam
especialmente as questões «raciais» e de «classe». O artigo 12º adverte-nos que
«Nenhuma pessoa branca, de qualquer nacionalidade, poderá pôr pé neste
território na qualidade de amo ou proprietário, nem no futuro adquirir aqui
propriedade alguma»; o artigo seguinte, no entanto, aclara que «o artigo
procedente não terá qualquer efeito sobre as mulheres brancas que tenham sido
naturalizadas pelo governo (…). Incluídos na presente disposição estão também
os alemães e polacos (?) naturalizados pelo governo». E assim chegamos ao nosso
famoso artigo 14º, que agora citamos de forma completa: «Todas as distinções de
cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família,
onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante,
serão conhecidos pela denominação genérica de negros».
Não sabemos por que razão se faz
a estranha especificação sobre os «alemães e polacos» naturalizados. Mas sem
dúvida que a sua menção é o cúmulo do «sarcasmo» particularista, ainda mais
sublinhado pelo facto de também os alemães e os polacos – que costumam ser
associados à pele branquíssima e aos cabelos loiros dos saxões e dos eslavos –
passarem agora a ser negros. Esta generalização à primeira vista absurda tem o
enorme valor de produzir uma disrupção do «racialismo» biologista ou
«naturalista», que entre os finais do século XVIII e princípios do século XIX
terem começado a impor-se: se até os polacos e os alemães podem ser decretados
«negros», então é evidente que negro é uma denominação política (ou
político-cultural se quisermos), isto é, arbitrária, (num sentido mais ou menos
saussiriano da arbitrariedade do signo linguístico) e não natural nem
necessária. E que, portanto, o foi sempre: com o mesmo gesto se «des-constroi»
a falácia racista que atribui traços diferenciais às 126 «espécies» de
negritude.
Há que insistir: através do «ato
da fala» -- este verdadeiro e poderoso performativo – produz-se uma inquietante
aporia filosófica, a de que o universal é derivado de uma generalização de um
dos seus particulares. E não é de um qualquer, mas, uma vez mais, do que até
então tinha sido «materialmente» excluído. É uma aporia quase «benjaminiana»: é
o polo extremo, o que se contrapõe à pretensão de universalidade, o que põe a
constelação na sua totalidade. Como disse não sem discreto sarcasmo Sybille
Fischer, «chamar a todos os haitianos, para além da cor da sua pele, negros, é
um gesto semelhante ao de chamar a todas as pessoas, independentemente do seu
sexo, mulheres. De qualquer forma, e para voltar ao tema, está clara a intenção
político-cultural da cláusula. Finalmente, para que é necessário introduzi-la,
se começou por se aclarar que no Haiti não será permitida nenhuma classe de
distinções pela cor da pele? O sentido não é, pois, meramente jurídico:
trata-se de não ocultar nem disfarçar, na história que agora se pode chamar
«haitiana», o lugar determinante que nela teve o conflito político entre as
«raças». O artigo 14º (e toda a constituição à qual pertence) faz de facto a
crítica , inclusive antecipada, de uma (ideo)lógica constitucional que imagina
o estado-nação «moderno» como uma unidade homogénea, sem distinções de classes,
«raças», género, etc.. E também, há que dizê-lo, faz a crítica – muito mais
«antecipada» – de certas (ingénuas ou não) celebrações «multiculturalistas» até
que ponto a emergência das «diferenças» são uma função das desigualdades
produzidas pelo poder.
No entanto, ao mesmo tempo há na
constituição de 1805, e no próprio artigo 14º, uma conceção unitária da nação.
Mas veja-se com que critério: «Todas as distinções de cor necessariamente
desaparecerão entre os filhos de uma mesma família, onde o Chefe de Estado é o
pai». «Paternalismo», dizíamos antes – e naturalmente, podíamos acrescentar
«patriarcalismo» –; a nação é pensada como uma grande família unida e
indivisível (onde, já o sabemos, todos os membros são «negros»), dirigida –
como corresponde à metáfora – pelo «pai» e também Chefe de Estado (ainda que
não só: já vimos que, alegoricamente, há ao mesmo tempo um regresso à Mater
implícita nessa carne negra, sem a qual não se pode pensar a cidadania
haitiana). É justamente contra esta analogia entre o Estado e a família (uma
oposição que na tradição política europeia pode já detetar-se na Grécia Antiga
e a sua distinção entre polis e oikos, central inclusivamente como motivo de
conflito trágico, tal como se encontra na Antígona de Sófocles), é contra esta
analogia, dizíamos, que lutam os primeiros grandes teorizadores do Estado
«europeu-moderno» (o debate pode ler-se em Maquiavel, em Hobbes, em Locke).
Obviamente, trata-se antes de mais de um combate contra o «paternalismo»
feudal. Mas é também um argumento tendente à separação entre «sociedade
política» e «sociedade civil» – ou mais genericamente, entre Estado e sociedade
–, separação necessária para a autonomia da ascendente classe «burguesa». De
qualquer modo, essa é uma questão europeia «ocidental». O artigo 14º nada tema
ver com essa polémica, e por outro lado, ao considerá-la de facto alheia,
refuta também a sua «naturalidade»: a unidade «política» que levanta como
programa é a da estrutura social não «tradicional» ou «pré-moderna», mas,
simplesmente, africana, isto é, outra, na qual a lógica do poder «político» é
indistinguível do que os antropólogos estudaram como estruturas do parentesco
que, segundo diz o próprio Lévy-Strauss, transformam a consanguinidade
biológica em aliança social e política [1]. Outra demonstração, pois, de
politização – isto é de materialização, no sentido estrito – de uma «natureza»
abstrata.
Tudo o dissemos anteriormente
poderíamos chamar uma identidade dividida – ou se se quiser, bifurcada –
haitiana. Temos uma nação nova, fundada «a partir do zero»: ao contrário do que
virá a suceder com as outras independências americanas há uma des-continuidade
radical (jurídica, sem dúvida, mas também e sobretudo étnico-cultural: é uma
nação «negra») em relação à situação colonial. Mas a sua «novidade» consiste,
antes de mais, num reconhecimento e uma encenação dos insolúveis conflitos
herdados da situação colonial e da lógica étnica, social e económica da
plantação: o ideário da Revolução Francesa é, simultaneamente conservado,
levado mais além dela mesma, um «mais além» onde se encontra com a cor negra; e
esse «cor local», para assim a chamar, obriga a um retrocesso – para lá das
conceções «evolucionistas» e «progressistas» eurocêntricas – para as tradições
sociais e míticas africanas. A sua modernidade – plenamente assumida sob o
ideário sob o ideário da Revolução Francesa – só pode ser «realizada» através
de um recurso à «tradição. Como reza essa extraordinária primeira frase da
biografia de Zapata por John Womack: «Esta é a história de uns camponeses que
não queriam mudar, e que por isso mesmo… fizeram uma revolução». Poderiam
citar-se várias outras instâncias paradoxais (talvez se devesse dizer
«dialéticas») para ilustrar esta bifurcação dos tempos modernos que, longe de
ser «extra moderna», pertence a uma modernidade que só quando se aborda a
partir do que Benjamin chamaria a história dos vencidos se mostra, ela também,
como tendo uma identidade dividida. No Haiti seria o caso da religião vudu ou
da língua crioula, que agora não temos tempo de discutir. Esta podia ser uma
via para pensar a sintomática e quase total ausência, na denominada Teoria
Pós-Colonial, de referências a um fenómeno como o haitiano, que parece dever
ser um exemplo paradigmático para as suas categorias. Com efeito, não ilustra
exemplarmente o artigo 14º o que Gayatri Spivak denominou essencialismo
estratégico? No entanto, parece que as coisas não foram assim tão fáceis.
Doris Garraway introduz uma
hipótese para explicar esta «impotência» da teoria pós-colonial face ao
fenómeno Haiti: a da não-pertinência das categorias de nacionalismo com as
quais os académicos tentam caraterizar os movimentos anticoloniais modernos,
categorias que não podem dar conta do fenómeno da revolução haitiana. Um dos
mais influentes textos sobre este tema, o de Benedict Anderson (que não é
preciso dizê-lo, nunca menciona o Haiti) [2], avança a sugestiva hipótese de o
nacionalismo não é um produto europeu pós-Revolução Francesa – como
convencionalmente se dá por assente) – mas uma «invenção» do mundo colonial na
sua luta por romper com as potências imperiais. O Haiti, no entanto, não
encaixa em nenhum dos paradigmas que Anderson expõe detalhadamente. Não é um
típico nacionalismo «crioulo» como os habituais nas independências da América
Latina, onde as minorias, brancas na sua maioria, propulsaram o que pode ser chamado
nativismo fronteiriço, ainda que conservando culturais europeus e uma ordem
social com supremacia branca. O Haiti também não é exatamente o caso dos
movimentos anticoloniais da Índia ou de África, que introduziram nas suas
questões de soberania um desejo de diferença absoluta com a Europa, baseada na
pureza das suas origens étnico-culturais. A revolução haitiana supôs uma
transculturação conflitual (ou catastrófica, como a denominámos noutro lugar)
marcada por uma tensão não-resolvida entre essas referências culturais: uma
tensão em boa medida ligada ao facto de, no momento se produzir o movimento
emancipatório, uma importante parte dos escravos insurretos (qualquer coisa
como mais de um terço do total) não serem «africanos» originários, mas os seus antepassados
provinham (uma proveniência forçada, naturalmente) de África, enquanto eles já
podiam ser considerados antilhanos ou caribenhos.
Há pois, neste caso, uma espécie
de triângulo «tensional» que é qualquer como simetricamente inverso do
triângulo atlântico, de que tanto se falou para qualificar o comércio
esclavagista, e que como tal supõe três vértices (África/Europa/América), e não
uma menos complexa oposição linear como noutros casos que temos mencionado
(África/Europa, Índia/Europa, etc.), ou uma continuidade cultural com
descontinuidade jurídica como no caso de outros movimentos independentistas
latino-americanos. O vértice «África» é aqui, naturalmente, o terceiro excluído
que se inclui, rompendo toda a possibilidade de um equilíbrio (ainda que
conflitual) entre os dois polos (Europa/Colónias) ao introduzir, por um lado, a
noção de um retorno mítico à «Guinea» (como os escravos denominavam África) e a
sua própria tensão interna pelos crioulos «afro-americanos», por outro a
questão da negritude, e tudo isso ao mesmo tempo aderindo (nunca é demais
repeti-lo com maiores e heterótipos alcances) ao ideário da Revolução Francesa
e da «modernidade».
Nem as teorias clássicas do
nacionalismo – que, como já dissemos, tendem a considerá-lo um fenómeno da
modernidade europeia – nem a teoria de Benedict Anderson –, se bem que procure
livrar-se de um inacabado eurocentrismo, constrói um a série de modelos em
nenhum dos quais se encaixa o caso haitiano – nem o mainstream da teoria
pós-colonial – que, com todas as suas «raízes» horizontais [rizomas],
«hibridices», «in-betweens» e tudo o mais continua, paradoxalmente, a pensar de
forma binária a relação metropolis / colónia – seguindo à nossa maneira Levy
Strauss – com a qual teve de se confrontar a revolução haitiana.
Com «bifurcação tri-partida
estamos a embalar, para uma maior clarificação, o que na verdade é um
pleonasmo: apesar do equívoco da raiz «bi», toda a bifurcação abre três
direções, como é fácil de ver no que se chama uma bifurcação do caminho, perante
a qual se podem avançar pela esquerda, pela direita ou retroceder (de volta à
«Guinea», digamos assim). A bifurcação, como sabemos, é uma figura central na
chamada teoria das catástrofes de René Thom e outros. E num outro registo
teórico e literário, é o lugar no qual Édipo se encontra com o seu destino:
esse cruzamento tem três caminhos ( o que os latinos chamam Trivium, de que
deriva o adjetivo trivial) onde, precisamente por não querer retroceder,
assassina o seu pai, Layo e precipita-se na tragédia.
Ora bem, num parágrafo acima
especulávamos com a ideia que os escravos – revertendo a lógica da
«universalização» da particularidade operada pelo eurocentrismo colonial – se
assumirem como a parte que se projeta para o todo, sublinhando a sua «universalidade»
como falsa, visto que trunca. A isso pode chamar-se universalismo particular,
enquanto oposto do particularismo «universal» europeu e enquanto cumpre a
premissa de um autêntico pensamento crítico: a de uma dialética negativa que
re-instala no centro do «universal» o conflito irresolúvel com o particular
excluído, põe a nu a violência da negação do «outro» interno, rejeitando as
tentações do pensamento «identitário». Este é o significado profundo do artigo
14º com a sua irónica – e politizada – universalização da cor negro. Mas o que
faz esta lógica é construir e constituir essa cor como o significante
privilegiado – ou se se preferir dizer assim, o operador semiótico fundamental
– de uma materialidade crítica, uma bifurcação catastrófica que vai atravessar,
de uma ou outra maneira, a produtividade discursiva (filosófica, ensaística,
ficcional, narrativa, poética e estética) da cultura antilhana. Desde já, o
cruzamento conflitual e a intertextualidade trágica são um processo presente em
toda a cultura latino-americana (e em toda a cultura neo – ou pós – colonial),
e nesse contexto deve ser pensado «a cor negro». Mas no caribe a questão da
negritude introdua uma especificidade, inclusive uma extremidade, que lhe dá
toda a sua peculiar singularidade. E essa «extremidade», essa especificidade
que também – sob a lógica do «artigo 14º - é criticamente universalizável,
enquanto mostra as aporias irresolvidas, e provavelmente irresolúveis, de uma
relação outra com uma «modernidade» presumidamente homogeneizada pela cultura
ocidental.
Esta última conclusão pode
tornar-se importante. Pessoalmente, sempre me surpreendeu a facilidade com que
o pensamento «pós» se submete – mesmo que seja para se opor – à versão
dominante da Modernidade apresentada como o que o mesmo pensamento denominou
uma grande narrativa homogénea e linear. Mas não há apenas uma «modernidade»: a
modernidade é tanto o particularismo universal do «Todos somos iguais menos
alguns» da Revolução Francesa como o universalismo particular do «todos somos negros
ainda que nem todos o sejamos» da Revolução Haitiana. O conceito de uma
identidade intencionalmente bifurcada mostrando, como dizíamos, que há outra
modernidade, ou inclusive uma contra-modernidade «periférica», talvez
permitisse libertar a oposição binária «modernidade / pós-modernidade em que
permanece encerrado o academismo pós, incluindo os estudos culturais e a teoria
pós-colonial. Desde já é uma via sempre incompleta e em processo de
des-totalização e re-totalização, como diria Sartre. A relação de
desconexão/reconexão bifurcante das identidades resguarda, ao fim e ao cabo, os
seus próprios enigmas, que talvez seja conveniente resguardar
Notas:
[1] Lévi-Strauss, Claude: Las Estructuras Elementales del Parentesco , Barcelona, Paidós, 1975.
[2] Anderson, Benedict: Comunidades Imaginadas , Mexico, FCE, 1998.
http://www.contrahegemoniaweb.com.ar/
[1] Lévi-Strauss, Claude: Las Estructuras Elementales del Parentesco , Barcelona, Paidós, 1975.
[2] Anderson, Benedict: Comunidades Imaginadas , Mexico, FCE, 1998.
http://www.contrahegemoniaweb.com.ar/
Este texto foi publicado em:
http://www.lahaine.org/haiti-a-partir-de-hoy
Tradução de José Paulo Gascão
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