13 maio 2015, Correio da Cidadania http://www.correiocidadania.com.br (Brasil)
Escrito
por Valéria Nader* e Gabriel Brito, da redação colaborou Raphael
Sanz
Os poucos meses que já se passaram nesse segundo mandato da presidente
Dilma Rousseff, o quarto sob o comando do Partido dos Trabalhadores, podem
trazer sensações tão díspares quanto intensas. De um lado, a briga de facções
que se instalou entre o governismo, envergonhado e tacanho, e forças
oposicionistas, oportunistas e golpistas. De outro, a apatia de setores médios
da população e a revolta entre forças políticas e sociais progressistas.
O cenário não poderia
ser muito diferente para um governo que se elegeu sob marketing eleitoral
mentiroso e que, nem bem iniciado o segundo mandato, parecia velho. Para
complicar, um governo que, nesse exato momento, dá mostras de nem mesmo estar
governando de fato.
Para ajudar a
compreender essa intrincada conjuntura política nacional, o Correio da
Cidadania entrevistou André Singer, professor da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP e autor de importantes obras de interpretação
sócio-política da realidade nacional, dentre elas, aquelas que se destinam ao
entendimento do fenômeno chamado de ‘lulismo’.
Singer ressalta a
fraqueza política do atual governo – algo que teria suas sementes já em 2012,
desde que as pressões por um ajuste recessivo se reforçaram, ameaçando o ensaio
desenvolvimentista do começo do primeiro mandato da presidente Dilma. “Olhando
pelo ângulo da pressão do capital, era praticamente certo que seria feito o que
estamos vendo agora. Surpreendente é que, durante a
campanha para a reeleição,
a presidente optou por um discurso à esquerda, o que mobilizou setores da
sociedade para um engajamento em sua campanha, decisivo para a vitória. Dessa
forma, quando ela, 24 horas depois, deixou vazar que iria escolher alguém do
mercado para o Ministério da Fazenda, e confirmou, criou-se uma decepção muito
grande. Isso começou, assim, a desenhar um quadro de enfraquecimento político”.
Ainda que a ideia do
impeachment tenha atualmente expressão institucional no país, já que encampada
por segmentos poderosos do maior partido de oposição, o PSDB, Singer acredita
que a presidente irá cumprir seu mandato. Quanto ao lulismo e o petismo, o
cientista político enxerga seus futuros em aberto. Mas é enfático em afirmar
que o primeiro atravessa o seu momento mais difícil e que o PT é hoje um
partido que gravita fundamentalmente em torno do lulismo. Isso, em sua visão,
significa que deixou de ser um “partido de classe”.
Singer discorre,
finalmente, sobre os atuais protestos e manifestações, pró e contra o governo,
que ocorrem país afora e sobre as possibilidades que se abrem para a atuação da
esquerda. Como colunista de um dos jornais de maior circulação no país, a Folha
de S. Paulo, e uma das raras vozes na mídia corporativa a trazer um debate
alternativo e progressista, dá sua opinião sobre a mídia hoje no Brasil.
Por Valéria Nader e
Gabriel Brito, da Redação
Colaborou Raphael Sanz
Correio da Cidadania:
Aumentos tarifários, desaceleração econômica, crise hídrica e elétrica,
escândalos de corrupção. Como vê hoje o país e o seu governo, que pareceu velho
nem bem iniciado o segundo mandato e que agora dá mostras de quase nem mesmo
estar governando de fato?
André Singer: No que diz respeito à economia, meu enfoque é político, já que não sou
economista. Mas, pelo que vejo, a situação de hoje precisa ser compreendida à
luz do que vem ocorrendo desde 2012. Creio que a presidente Dilma tentou, entre
2011 e 2012, fazer uma suave, porém importante, inflexão da política econômica,
no sentido de tentar modificar o chamado tripé macroeconômico neoliberal. Ela
produziu uma importante redução da taxa de juros, chegamos perto de uma taxa
real de 1,5% em sua fase mais baixa, o que é muito significativo na economia
brasileira. Produziu uma pequena desvalorização do real e algumas ações no
sentido de controle cambial, fundamentais para a retomada da indústria
brasileira. E, simultaneamente, manteve o investimento público, que já vinha
desde o segundo governo Lula.
Portanto, esse conjunto
de ações apontava na direção de uma retomada do crescimento, com
reindustrialização e aceleração da distribuição de renda. Entre 2011 e 2012,
poder-se-ia dizer que as melhores promessas da campanha de 2010 eram cumpridas.
O problema é que o projeto, ao qual chamo de ensaio desenvolvimentista, deu
errado. No sentido de que o investimento, em lugar de crescer, caiu, já em
2012, e a inflação deu uma pequena subida. A soma dessas duas coisas criou uma
situação bem difícil para o governo Dilma.
Do ponto de vista
político, o assunto que mais interessa, ou que melhor conheço, houve uma
recomposição do empresariado e da burguesia brasileira, que tinha se dividido
entre duas frações: uma rentista e outra produtivista. Essa divisão ficou mais
clara no segundo governo Lula, mas vinha se mostrando desde o primeiro.
Paradoxalmente, em 2012
houve uma recomposição em torno das bandeiras neoliberais. E ninguém sabe muito
bem por que isso aconteceu. Minha hipótese é de que tenha sido por razões
políticas, mas não é o que interessa discutir aqui. O fato é que aconteceu.
Dilma chegou no final de
2012 numa situação econômica um pouco difícil e com uma frente burguesa inteira
contra ela, cobrando aquilo que está sendo feito agora. Entre 2012 e 2014, na
verdade, a presidente de certa forma adiou o processo, o fez pela metade,
porque autorizou o BC a aumentar juros novamente, o que, em certa medida, tem a
ver com a inflação, mas, por outro lado, impede o processo desenvolvimentista.
Ao mesmo tempo, ela
seguiu algumas das políticas desenvolvimentistas polêmicas do ponto de vista da
esquerda: através das desonerações da folha de pagamentos, uma reivindicação
importante dos industriais para aumentar a competitividade da indústria brasileira,
mas que, no médio e longo prazo, se dá às custas da previdência dos
trabalhadores. No primeiro momento, o Tesouro segura, mas depois haverá
cobrança sobre a previdência.
Assim, digamos que 2013
e 2014 foram anos de política híbrida, pois não se teve mais condição de
continuar desvalorizando o real por conta do impacto sobre a inflação e da
subida de preços dos produtos importados. Dessa forma, seria preciso começar a
produzir aqui, imediatamente. Se não tem investimento pra isso, não tem produção
e a equação não fecha.
Resultado: a pressão
pelo ajuste recessivo veio crescendo ao longo dos anos, de tal forma que,
olhando pelo ângulo da pressão do capital, era praticamente certo que seria
feito o que estamos vendo agora. Surpreendente é que, durante a campanha para a
reeleição, a presidente optou por um discurso à esquerda, o que mobilizou
setores da sociedade para um engajamento em sua campanha, decisivo para a
vitória.
Dessa forma, quando ela,
24 horas depois, deixou vazar que iria escolher alguém do mercado para o
Ministério da Fazenda, e confirmou, criou-se uma decepção muito grande. E um
sentimento de engano muito forte. Isso começou, assim, a desenhar um quadro de
enfraquecimento político, que foi se acentuar na medida em que essa política de
ajuste recessivo já pegou a economia em uma condição ruim. A economia já tinha
parado em 2014, já tínhamos uma espécie de prenúncios vagos de desemprego, que
vieram a se concretizar. E o ajuste acentua a paralisia e o retrocesso
econômico.
Esse cenário potencializa
rapidamente decepção em setores mais progressistas. E há um segundo elemento de
fraqueza política, bastante grave, e que se combina aos fatores de crise: de um
lado, a investigação da operação Lava Jato, que, não obstante podermos discutir
diversos aspectos de como interpretar o assunto, bem complexo, é,
evidentemente, um grande escândalo de corrupção, e pega a base do governo. Há
políticos do PSDB aqui e ali envolvidos, mas a base de governo está no centro e
é o alvo de um importante desgaste. De outro lado, ocorreu o erro tático de se
disputar a presidência da Câmara contra o Eduardo Cunha e sofrer uma derrota
visível, que deu muita liberdade ao Cunha de se colocar numa posição que, na
realidade, é de oposição ao governo.
Combinados esses elementos,
temos um governo que começa muito fraco e com um ajuste recessivo que ninguém
sabe bem até onde vai. Lendo os economistas, vemos um grau de incerteza. Há
aqueles que dizem que será um ajuste mais rápido e suave, tem quem diga que
será longo e catastrófico, e tem quem fica no meio termo. No fundo, ninguém
sabe o que vai acontecer e onde o processo vai parar. É o panorama em que nos
encontramos hoje.
Correio da Cidadania:
Diante de todo esse quadro, acredita que vivemos, de alguma forma, uma crise institucional
no país, inclusive com a possibilidade de eventual abertura de um processo de
impeachment, ou mesmo de uma renúncia de fato da presidente, até pela celeuma
criada até aqui? O que resultaria para o país em um tal cenário?
André Singer: Estamos em uma situação em que tais cenários se colocam. Portanto, há a
possibilidade de uma crise institucional – que não está dada. Um elemento muito
importante é que os militares mostram interesse zero em intervir na cena
política. Estamos diante de uma situação que favorece saídas democráticas para
a crise. Por esse ponto de vista, o quadro é muito diferente de 1964. Por outro
lado, um governo muito fraco dá ensejo a movimentos de impeachment, os quais
considero movimentos de golpe branco. Por mais que setores da sociedade não
gostem do governo, e têm esse direito democrático, o impeachment não pode ser
usado como forma de sub-parlamentarismo.
Ou seja, não se pode
destituir um governo simplesmente por estar fraco, este não pode ser o pretexto
de impeachment. O instrumento não foi feito pra isso. Foi feito para que, em
casos extremos, nos quais ficarem comprovados crimes de responsabilidade, se
abra um processo. Impeachment serve para interromper uma situação na qual a
presidência da República está visivelmente comprometida com crimes de
responsabilidade. E não é o caso. Todo mundo sabe que a Dilma é uma mandatária
honesta, comprometida com valores republicanos. Pode-se fazer todo tipo de
crítica, mas um impeachment nessas condições seria um golpe branco.
No entanto, não podemos
deixar de enxergar que tal movimento existe na sociedade. Creio que, até este
momento, ainda é um movimento isolado. Porém, já há setores significativos do
PSDB que se manifestaram em favor. Por enquanto, o PSDB, como partido, não aprovou
tal proposta e conteve os que são favoráveis. Mas, na bancada de deputados
federais, essa é uma posição significativa. E se o principal partido de
oposição compra a ideia, ela deixa de ser movimento isolado na sociedade, e
passa a ter expressão institucional.
Eu realmente faço votos
de que isso não aconteça. E acho que todos aqueles empenhados na solução
democrática, onde me incluo, precisam reconhecer que até agora o PSDB não tomou
esse rumo. Precisamos trazer o PSDB para a solução democrática, e não
empurrá-lo para o lado de um golpe branco. Com relação à renúncia, sempre
haverá pressão nesse sentido, hoje pequena. Acredito que a presidente tem uma
biografia que mostra capacidade de resistência suficiente pra não chegar a tal.
Estamos diante de um
governo fraco. Tal fraqueza deverá continuar por um período não pequeno, o que
depende da economia, ainda que não exclusivamente, sendo que ninguém sabe
quanto tempo vai durar o processo recessivo e o quão profundo será. Mas
acredito que a presidente tem condições de cumprir o mandato, que é o que
devemos apoiar, mesmo fazendo as críticas, como eu as faço, a respeito do
ajuste recessivo, que considero equivocado.
Correio da Cidadania:
Você mencionou o sub-parlamentarismo. Ainda que afastado por ora o espectro de
uma renúncia ou impeachment, não estamos, de um certo modo, já vivendo sob uma
espécie de sub-parlamentarismo, uma vez diante de um governo fraco, sem um
comando pleno da economia e da política nacionais? Teremos pela frente um tempo
sob esse sub-parlamentarismo que você mencionou?
André Singer: Não podemos nos confundir com as palavras. Sem dúvida, é um governo
fraco, começou fraco. De fato, Dilma teve de delegar funções. Na economia,
houve uma terceirização, o Ministério da Fazenda aplica a política do PSDB. Na
política, teve de chamar o vice Michel Temer e entregar-lhe a articulação
política, que agora está na mão do PMDB. Existe essa espécie de delegação. Mas
não chamaria de sub-parlamentarismo, e sim de um governo presidencialista
fraco, num país hiper-presidencialista como o Brasil, não apenas no sentido de
que o presidente tem todas as atribuições de um presidente dos EUA: ele também
possui a atribuição de, até certo ponto legislar, por meio de Medidas
Provisórias e Decretos.
Portanto, é muito forte
o presidencialismo aqui, a figura do presidente dá o norte do país, é o centro
em torno do qual gira a política nacional. Na medida em que a presidência se
enfraquece, temos um teor de confusão e, até certo ponto, irracionalidade,
porque as forças começam a agir por si próprias, às vezes de acordo com
interesses apenas locais, mas com importantes repercussões na vida do país.
Veja-se, por exemplo, a questão da terceirização. Temos, assim, uma situação
instável, mas não chamaria de sub-parlamentarismo. Chamaria de regime
presidencialista de presidência fraca. Quão fraca e por quanto tempo não
sabemos, mas a situação é essa.
Penso que o Brasil
precisa aprender a conviver com isso: em alguns momentos, a presidência vai
estar mais fraca, em outros, mais forte, mas não deixa de ser a presidência da
República. Esse é o nosso sistema de governo. Precisamos, no conjunto da
sociedade, não só nos acostumar a esse contexto, como construir mecanismos para
operar os conflitos, que podem acontecer por diversos motivos. Presidência
fraca não é presidência inexistente.
Correio da Cidadania:
Como um ideólogo e estudioso do que se convencionou chamar de 'lulismo’, o que
significa este conceito, em sua origem e nas atuais circunstâncias históricas
do país? E o que responderia a
outros estudiosos que veem hoje um esfacelamento da “hegemonia lulista”, em
função de se terem esgotado as condições econômicas que deram base a um de seus
sustentáculos essenciais, a conciliação de classes - o que, na acepção de
alguns estudiosos, como Ruy Braga, está também associado ao fim do
consentimento passivo das massas populares?
André Singer: Só faço um reparo: eu não sou ideólogo do lulismo. E aproveito a
oportunidade de falar disso. Sou um analista que tenta entender o processo político
brasileiro. O conceito de lulismo me pareceu útil pra compreender um
determinado período. Mas a pergunta é fundamental. É o momento mais difícil do
lulismo, desde que começou – e creio que começou a se gestar em 2003, não
antes. Neste processo de 12 anos, é o momento mais difícil.
Pego a pergunta em
termos literais, não para dar uma resposta fechada, mas pra focar na questão da
hegemonia. O que é hegemonia? Na minha opinião, é a capacidade de direção, de
dar uma orientação à sociedade, a partir de determinadas frações ou coalizões
de classe. Diria que o lulismo vive seu momento mais difícil porque sua
capacidade de direção está em xeque. Fundamentalmente, pela razão de que, se
este ajuste recessivo tiver a profundidade que pensam os analistas mais
pessimistas – um quadro de alto desemprego, seguro-desemprego restrito pela
aprovação das novas regras, lei de terceirizações aprovada –, teremos um
conjunto de medidas que vão rebaixar o custo da mão de obra, em outras
palavras, o valor do trabalho. Trata-se de algo que põe sob questão o modelo
lulista.
O modelo lulista é uma
política de redução da pobreza extrema, porém, com repercussões favoráveis
junto à classe trabalhadora organizada. À medida que se reduz o desemprego,
criam-se condições de luta pra classe trabalhadora organizada. E foi isso que
aconteceu nos últimos 12 anos. Tanto que houve ganhos salariais. Se formos ver,
não foram enormes, mas no conjunto foram. Tanto no salário mínimo, que cresceu
70%, como nos ganhos salariais das categorias que negociaram nos últimos 12
anos. Toda negociação salarial tinha um ganho de 1%, 2%, 3%, o que na soma é
significativo.
Portanto, houve uma
melhora da condição de vida dos trabalhadores em geral. Não só dos muito
pobres, que chamo de sub-proletariado, como também dos trabalhadores
organizados. Se agora passarmos a uma política que diminua o valor da mão de
obra, teremos uma novidade dentro do lulismo que questiona o próprio modelo.
A segunda coisa que
menciono: a base principal do lulismo não é a classe trabalhadora organizada,
embora ela seja indiretamente favorecida por tais medidas. É o
sub-proletariado. Acredito que, se a recessão for muito profunda, afetará esse
setor também, que até agora está protegido, porque as medidas mais diretamente
dirigidas a ele, como o Bolsa família, continuam. Mas repare, por exemplo, que
o Financiamento Estudantil (FIES – não diretamente dirigido a esse setor, mas
uma das políticas de caráter importante desenhadas no período) está sendo
cortado. Claro, porque o tamanho do contingenciamento de recursos do ajuste
obriga tais cortes.
Assim, elementos
importantes do lulismo estão sendo ameaçados. Talvez a diferença na minha
análise em relação a certos colegas é que não digo que o processo chegou ao
fim. O jogo está sendo jogado, e nesse sentido temos de considerar a
potencialidade do lulismo e a liderança, especificamente, do ex-presidente
Lula, que já parece mais disposto a disputar em 2018. Portanto, dentro do jogo.
Para estar no jogo, ele precisa conter essas medidas, senão não estará dentro.
Há uma razão política, portanto, pela qual digo: não vamos decretar o fim do
lulismo antes que ele acabe, mas vamos reconhecer que existem problemas muito
sérios em jogo.
O que tenho dito
repetidamente, e ainda vejo motivos pra sustentar, é que há margens de manobras
para o lulismo e o ex-presidente. Por isso não adotei a ideia de
sub-parlamentarismo. A presidente está acuada, mas tem margens que pode
utilizar, a depender de como a situação evoluir. Volto a dizer: há setores de
indeterminação, ninguém sabe.
Eu diria: ameaçado o
lulismo está. A eleição de 2014 já abateu setores lulistas, que decidiram votar
no PSDB e se converteram a este lado. Há, assim, realmente, grandes perigos,
mas não decretaria o fim do lulismo.
Correio da Cidadania:
Quanto ao PT, partido há 12 anos no comando do país, Chico de Oliveira, em
entrevista ao Correio, narrou não o enxergar hoje mais como um partido, mas
como uma liderança personificada, como uma expressão das forças que o lulismo
agrega. O que você tem a dizer sobre o partido e o seu futuro?
André Singer: Eu vi essas observações do professor Chico de Oliveira, a quem respeito
muito. Discordaria dele no seguinte: mesmo que sejam um conjunto de forças
lulistas, que giram em torno do ex-presidente Lula, ainda é um partido. Com
essas características. É, digamos, uma marca não só do atual PT, mas da
história dos partidos populares brasileiros. E este não é um tipo de
experiência que não se veja em outros lugares do mundo, isto é, lideranças
destacadas de alguma maneira se tornarem dominantes no partido.
Na época da primeira
guerra, o Weber dizia algo semelhante sobre a Alemanha. Que o presidencialismo
gera esse tipo de situação, porque os candidatos a presidente com muita
capacidade eleitoral subordinam o partido. Num certo sentido, é até bom, dizia
ele, porque tais lideranças têm capacidade de dar orientação, enquanto, em
partidos dominados por uma burocracia, não se sabe por onde se orientar.
Quero dizer apenas o
seguinte: eu concordo que hoje o PT gira em torno do lulismo. Foi o que tentei
dizer no meu livro Os
Sentidos do Lulismo, no capítulo 2, intitulado A segunda alma do Partido dos
Trabalhadores. Essa segunda alma é lulista. Não é mais o PT com a alma do
Sion. Portanto, mudaria um pouco mais a formulação: não é mais aquele partido.
Não é mesmo, e não é de hoje, não se trata de um fenômeno atual. Mas ainda é um
partido.
O que é atual é o
seguinte: a Operação Lava Jato, na sequência do Mensalão, é um golpe terrível e
o PT tem de se haver com isso de algum jeito, porque a autoridade moral do
partido está sendo minada. E não há partido que possa passar ligeiramente por
algo do tipo. Terá de enfrentar o problema. E agora surgem os primeiros sinais
de que o fará. Como exatamente, não sei, mas terá de enfrentar a questão.
Por outro lado, o
partido está comprometido, pois decidiu fazer a política da oposição no campo
econômico, o que gera um desgaste enorme. O partido está tendo de pagar, porque
é o partido do governo, ele está amarrado a este governo e, em certa medida, o
governo não o consultou -- segundo declarações que li de figuras como o
ex-governador Tarso Genro. Portanto, acho que essas duas circunstâncias
combinadas caracterizam um momento extremamente difícil para o PT, o que é
diferente das questões que se aplicam ao lulismo, embora estejam relacionadas.
Correio da Cidadania: Há
uma diversidade de vozes críticas que trabalham com a noção do efeito perverso
que o PT, com sua trajetória posterior aos anos de maior combatividade, teve
para o campo progressista de esquerda. O que diria quanto ao que significou e
significa o PT para a esquerda e para sua eventual reconstrução?
André Singer: O PT se deslocou da posição de um partido, outrora, nitidamente de
esquerda, o que foi algo extraordinário para o Brasil, pois, com a ilegalidade
do Partido Comunista, nunca tínhamos tido a experiência de um partido de classe
legal. E durante 20 anos, entre 1980 e 2002, o PT foi um projeto bem sucedido
de um partido de classe no Brasil. Isso marcou a política brasileira do
período. Com o deslocamento para o lulismo, o PT continua sendo um partido do
campo da esquerda, é extremamente sólido, muito enraizado e capilarizado no
Brasil. E com o lulismo, tornou-se um partido popular.
Isso deu uma chance à
esquerda que não foi aproveitada: houve um momento em que setores que sempre
votaram com os conservadores, e estiveram sempre sob sua sombra, estavam,
digamos, acessíveis para uma visão mais à esquerda. O que não foi aproveitado,
não houve a politização que poderia ter havido, razão pela qual chegamos hoje a
uma situação complicada. Porque não há dúvida de que o PT é o principal partido
do campo da esquerda, no entanto, como se deslocou, não é mais um partido de
classe. Portanto, não tem mais o trabalho de politização que fez durante seus
primeiros 20 anos e que foi muito útil pra classe trabalhadora brasileira.
Agora, como a esquerda
brasileira vai se reorganizar? Uma parte dela continua no PT, outra não está
mais e há outros partidos que sempre existiram fora do PT. Eu acho que o
momento indicaria a formação de uma frente de esquerda, que pudesse dar uma
orientação para o conjunto das forças progressistas numa hora tão delicada como
essa. Porém, tal frente passa por diversas questões, os interesses particulares
de cada partido, as diferenças dentro dos movimentos... Também existe a
tradicional e permanente tendência de a esquerda se dividir...
Sempre penso, mas talvez
seja um pensamento desejoso, que a esquerda talvez conseguisse repetir neste
momento justamente o que foi o PT nos anos 80: o grande guarda-chuva sob o qual
inúmeros setores de esquerda, que tinham muitas diferenças, conseguiram se
aglutinar e manter unidos. Seria preciso repetir uma operação desse grau de
inteligência política. Se será possível ou não, só o tempo dirá.
Correio da Cidadania: O
que pensa da ‘divisão’ do país, com manifestações sendo convocadas contra e a
favor do governo, de modo a se aproximarem muitas vezes a uma briga de facções?
Como você enxerga tais manifestações, as mais marcantes nos dias 13 e 15 de
março?
André Singer: Por um certo ponto de vista, são normais. Desde 2013, nas manifestações
de junho, vivemos um processo de agudização da luta de classes no país, de
conflitos distributivos e acirramento político. Portanto, é normal que num
momento político como esse as forças entrem nas ruas e façam manifestações
públicas. Mas uma novidade importante foi a potência das manifestações
convocadas pela oposição, ou por setores de oposição, em 15 de março e 12 de
abril. Foram muito grandes, sendo a primeira bem maior, mas a segunda ainda foi
grande, principalmente em São Paulo.
Elas expressam, a meu
ver, uma novidade. Não é só a direita que foi para a rua. É um fenômeno
importante, no caso, o espraiamento do antipetismo, um fenômeno social de
relevo, que pegou a chamada classe média tradicional em cheio. Com certas
conotações de ódio que são muito deletérias. Uma coisa é ter divergência
política, disputar a orientação do país; outra coisa é querer eliminar o
adversário. E vejo uma conotação antipopular nessa reação. Chego a qualificá-la
quase como uma reação contra o povo brasileiro, porque é uma reação contra a
melhora das condições de vida dos setores populares. Isso é muito ruim.
Porém, acho que também
há muita gente de centro nas manifestações. Tais pessoas, de centro, estão
insatisfeitas com a situação do país, por razões compreensíveis, e estão
procurando uma saída, de tal modo que, justamente pra voltar a falar de
hegemonia e direção, é preciso disputá-las e dar-lhes uma orientação. Minha
expectativa seria que se formasse uma frente de esquerda ampla o suficiente pra
poder oferecer uma alternativa ao que está sendo feito, em relação à saída
recessiva que vemos, e ver se construímos uma maioria em torno dessa opção, que
considero muito boa para o Brasil.
Correio da Cidadania:
Qual a sua opinião sobre tantas movimentações, greves e protestos sociais que
têm acontecido país afora, e que correm por fora daquelas que ocorrem com ‘dia
marcado? Indicam a possibilidade de incremento de massividade, quiçá um novo
junho de 2013?
André Singer: Não. Junho de 2013 não vai se repetir. Foi um processo confuso e muito
misturado, de tendências políticas antagônicas. E elas não têm por que estarem
juntas novamente. Aquele tipo de conformação não se repetirá. Não estou vendo
nenhuma saída desse tipo no curto prazo. Acho que viveremos um período longo de
disputa, o qual exigirá muita paciência e inteligência. Paciência no sentido de
que democracia é assim mesmo, quando a situação fica mais difícil e disputada,
os conflitos se acirram.
Acho importante dizer, e
vale pra direita, esquerda e centro, que é preciso apostar em saídas
democráticas. Vamos disputar, mas democraticamente. Isso faz bastante
diferença. E inteligência, do ângulo da esquerda, porque não será possível
construir uma saída econômica para o Brasil sem conformar uma grande maioria.
Porque as saídas que a esquerda gostaria envolvem confrontos com o capital
internacional. Não se faz esse confronto com chance de vitória se não houver
uma ampla maioria por trás. O problema todo é a construção dessa maioria. Por
isso insisto na questão de se construir a frente.
Correio da Cidadania:
Mas olhando tantas greves e protestos, sem muita conexão em nível nacional, mas
em número crescente nos últimos anos (a exemplo dos garis do Rio ou dos
professores em São Paulo e Paraná), acredita que possa surgir alguma
força alternativa organizada para além dos setores pró ou contra o governo, uma
espécie de “terceira via”?
André Singer: Esses movimentos mencionados, de fato, existem, e são expressão da luta
que está posta. Do mesmo modo que temos setores de direita e centro indo para a
rua em torno de um projeto que considero regressivo, temos setores que começam
a se mobilizar em torno de seus interesses específicos, mas apontando a um
projeto mais progressista. A questão, novamente, é juntar tudo em torno de uma
opção que aponte para o conjunto.
Não falamos muito disso
aqui, porque analisamos o ajuste recessivo, mas, numa próxima oportunidade,
talvez devamos falar das alternativas. Não podemos só criticar. Não se trata
apenas de resistir ao ajuste recessivo, mas também de oferecer uma alternativa
de direção. Assim, o problema está em como conformar, ao mesmo tempo, uma
grande frente que envolva tais movimentos em voga, muito importantes, e também
a construção de um projeto factível de desenvolvimento do país.
Os problemas reais estão
colocados. E não são simples de resolver. Digamos que seria a combinação das
duas coisas que permitiria pensar em uma alternativa. Não falaria em terceira
via, mas na elaboração de uma alternativa progressista para esta crise.
Correio da Cidadania:
Finalmente, como uma das raras vozes com espaço na grande imprensa a trazer a
visão de um campo mais progressista, como tem visto a postura dessa mídia, tão
criticada por espectros políticos de esquerda, e chamada de golpista por
representantes do governo?
André Singer: Temos de ter uma posição de princípio a favor da pluralidade dos meios
de comunicação e sua absoluta liberdade. E precisamos reconhecer que, com todos
os problemas que têm os meios de comunicação, eles são decisivos na
fiscalização do poder dentro das democracias. Podemos dizer que só se dá
atenção a algumas denúncias, e não a outras, o que deve ser considerado. Porém,
não podemos deixar de dizer que uma parte das denúncias tem revelado casos
reais, não são fatos inventadas. Portanto, é preciso partir do reconhecimento
do papel fiscalizador que os meios de comunicação exercem.
Posto isso, é verdade
também que os meios de comunicação maiores tendem a ter uma posição política,
social e econômica conservadora. Alguns deles preservam certa pluralidade
dentro da qual é possível abrigar pensamentos opostos. Mas, se olharmos a
média, a tendência é uma posição conservadora nos aspectos mencionados.
Portanto, cria-se um
desequilíbrio no debate democrático, que pode gerar uma distorção. Porque, se
os pontos de vista principais não têm um peso mais ou menos equivalente, de
alguma maneira está se falseando a realidade. E, num momento de crise, isso é o
mais preocupante.
Porém, acho que as
principais saídas estão naquilo que vocês fazem: construir veículos que
consigam se firmar e apresentar livremente pontos de vista alternativos, também
se apresentando ao debate. Não podemos deixar que a bandeira da liberdade de
imprensa e do respeito absoluto à liberdade de expressão fique na mão dos
liberais. Essa também é uma bandeira
socialista.
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*Valéria Nader,
jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito e
Raphael Sanz são jornalistas.
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