21 maio 2015, Contexto Livre
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Proposta de desmantelar barcos que
transportam africanos para fora do Continente deveria ter sido feita antes da
escravidão
Com um certo cinismo, seria até
possível considerar o apelo de Federica Mogherini, chefe da diplomacia da União
Européia, para desmantelar o esquema de imigração de africanos para o Velho
Mundo. Claro que mesmo assim seria preciso discordar de qualquer ação militar,
contra homens e mulheres que não tem como se defender em alto mar. Mas a ideia
tem um defeito anterior e essencial: um atraso de cinco séculos.
Aqueles barcos que hoje atravessam
o Mediterrâneo são sucessores diretos de milhares de embarcações, de várias
etapas da tecnologia de navegação, que deixaram a África a partir do momento em
que a civilização européia organizou e explorou a escravidão de um Continente
inteiro, mudando sua história e comprometendo seu futuro. Perdemos a conta dos
milhões de seres humanos que foram transportados pelos oceanos, em porões
sombrios, famintos, correntes nos pés. Mas sabemos que ali começou uma história
que
não volta mais e que deve ser encarada como aquilo que foi e é.
Veja que epopeia, desde aquela
fase da evolução humana que os autores europeus chamam de Descobrimento,
povoando nossa imaginação com homens de olhar intrépido, lunetas e calças de
almofada.
A riqueza daquele período se
encontrava na América mas o braço que tinha músculos para explorar o ouro e a
prata — e depois colher o café, plantar o algodão — erguendo tantos degraus de
civilização e de cultura, vinha da África. Foi dali que saiu a mão-de-obra
cativa e baratíssima que permitiu os primeiros séculos de globalização.
Talvez fossem embarcações maiores,
muito mais infectas e menos seguras. Mas eram os mesmos barcos com as mesmas
pessoas, os bisavós, trisavós, tataravós. Não adianta negar: chegaram até hoje.
Estão aí, na nossa frente, ao nosso lado.
Naquele período tardio e muito
menos glorioso, que deve ser compreendido como o primeiro e colossal o
holocausto da história da humanidade — a observação é da judia Hannah Arendt —
o inesquecível Rei Leopoldo, da Belgica, mandava decepar mãos, braços e pernas
de negros que não entregavam uma cota fixa de diamantes para o império
colonial.
Quando este colonialismo selvagem,
sem pudores, parou de funcionar, inventou-se o apartheid, o colonialismo
interno, protegido pelos heróis do conservadorismo contemporâneo, adorados por
jovens economistas de senho franzido: Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
O projeto de ataque militar aos
barcos que hoje atravessam o Mediterrâneo expressa um momento de regressão
cruel da história humana, quando uma diplomacia imperial controla, corrompe e
derruba governos, inviabiliza Estados nacionais, planeja transformar nações
inteiras em campos de exploração e enriquecimento rápido.
Mas a dificuldade não vêm da
África. Está na Europa.
Enfrentando a pior crise econômica
dos últimos 80 anos, respondida com políticas suicidas de austeridade, os povos
europeus assistem ao ressurgimento do fascismo — em diversas variações — em
suas fronteiras. A prolongada crise econômica mundial não está na China, nem
nos Estados Unidos. Mas no enfraquecimento da Europa, região que abriga o maior
e mais rico mercado consumidor do planeta.
Em cada país, os ataques aos
direitos dos trabalhadores e da população pobre são questionados, dia após dia.
No plano externo, vigora uma diplomacia da pilhagem e da exploração, sem
qualquer perspectiva de estimulo ao desenvolvimento e combate a miséria — ainda
que dentro dos marcos tradicionais da divisão mundial da riqueza.
É essa falta de perspectiva que
expulsa os africanos de seu continente, novamente assaltado pela História dos
outros. A violência política é consequência. O fanatismo também.
Sejam ou não capazes de aceitar a
ideia, os povos europeus tem uma imensa responsabilidade política e moral com o
destino dos povos africanos. O mesmo vale para o império norte-americano,
principal promotor e beneficiários das últimas etapas de globalização, que tudo
controla e vigia.
Não é caridade. Têm o dever de
devolver uma parte do que tomaram no momento em que se decidiu transformar o
mundo numa realidade integrada e a humanidade numa grande massa, heterogênea e
mesmo desigual, mas interdependente. E quem discorda precisa admitir que já
passaram cinco séculos para se defender outra ideia.
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