15 novembro 2014, ODiario.info http://www.odiario.info (Portugal)
Em Kobane trava-se um combate desesperado entre os curdos sírios e
o Estado Islâmico (ISIS). O que está em causa não é apenas a resistência contra
esta força fundamentalista e fascista. É a defesa de uma experiência de gestão
política dirigida fundamentalmente pelo PYD, o ramo sírio do PKK turco. E isso
explica a traição da “comunidade internacional” a essa resistência.
As bravas mulheres de Kobane – onde os curdos sírios combatem
desesperadamente contra o Estado Islâmico (ISIS) – estão prestes a ser traídas
pela “comunidade internacional”. Estas guerreiras também combatem, além dos
terroristas do califa Ibrahim, as traiçoeiras agendas dos EUA, Turquia e da
administração do Curdistão iraquiano. O que é está de facto a acontecer em
Kobane?
Comecemos por falar de Rojava. O verdadeiro significado de Rojava
(as três províncias de maioria curda do norte da Síria) é transmitido neste
editorial (em turco) publicado pelo activista encarcerado Kenan Kirkaya. Nele
argumenta que há em Rojava, um “modelo revolucionário” que desafia nada menos
do que “a hegemonia do sistema capitalista de estado-nação”, muito para além do
seu significado regional “para os curdos, ou sírios, ou para o Curdistão”.Kobane, uma região agrícola, está no epicentro desta experiência não violenta de democracia, possibilitada por um acordo no início da tragédia síria entre Damasco e Rojava (não apoiem a mudança de regime contra nós, e não vos faremos mal). Aqui, por exemplo, argumenta-se que “se apenas um único aspecto de um verdadeiro socialismo pudesse sobreviver ali, milhões de descontentes seriam atraídos para Kobane”.
Em Rojava, a tomada de decisões acontece por meio de assembleias
populares, multiculturais e multireligiosas. Os três mais altos funcionários em
cada municipalidade são um curdo, um árabe e um cristão assírio ou arménio; e
pelo menos um destes três deve ser mulher. As minorias não curdas têm suas
próprias instituições e falam os seus próprios idiomas.
Entre uma grande quantidade de conselhos de mulheres e jovens,
também há um exército feminista, cada vez mais conhecido, a milícia Estrela YJA
(“União de mulheres livres”, a estrela simboliza a deusa mesopotâmica Ishtar).
O simbolismo não poderia ser mais representativo: pensem nas forças
de Ishtar (Mesopotâmia) combatendo as forças do ISIS (originalmente uma deusa
egípcia), convertida num califado intolerante. No jovem Século XXI, as
barricadas femininas de Kobane estão na vanguarda da luta contra o fascismo.
Inevitavelmente, deveria haver um bom número de pontos de intersecção entre as Brigadas Internacionais combatendo o fascismo na Espanha, em 1936, e o que está acontecendo em Rojava, conforme destaca um dos pouquíssimos artigos a esse respeito, publicados nos meios de comunicação dominantes ocidentais.
Se estes componentes não bastaram para enlouquecer wahhabis e
takfiris profundamente intolerantes (e os seus poderosos patrocinadores em
petrodólares do Golfo), temos a situação política global.
A luta em Rojava é dirigida essencialmente pelo PYD, que é o ramo
sírio do PKK turco, as guerrilhas marxistas em guerra contra Ancara desde os
anos 1970. Washington, Bruxelas e a NATO, sob permanente pressão turca, sempre
associaram o PYD e o PKK aos “terroristas”.
Um cuidadoso exame do indispensável livro do líder do PKK Abdullah
Öcalan, Confederalismo Democrático, revela que essa equação
terrorista/estalinista é um engano (Öcalan está confinado à ilha-prisão de
Imrali desde 1999).
Aquilo por que lutam o PKK e o PYD é o “municipalismo libertário”.
De facto, é exatamente o que Rojava tem tentado: comunidades que se governam a
si mesmas, que aplicam a democracia directa, utilizando como pilares conselhos,
assembleias populares, cooperativas dirigidas pelos trabalhadores; e defendidas
por milícias populares. Daí, o posicionamento de Rojava na vanguarda de um
movimento mundial de economia/democracia cooperativa, cujo objectivo em última
instância seria deixar de lado o conceito de estado-nação.
Esta experiência não tem lugar politicamente apenas no norte da
Síria; em termos militares, foram o PKK e o PYD os que realmente conseguiram
resgatar essas dezenas de milhares de yazidis acurralados pelo EI/ISIS no Monte
Sinjar, e não as bombas dos EUA, como se dizia. E agora, como relata a
co-presidente do PYD, Asya Abdullah, o que é necessário é um “corredor” para
romper o cerco de Kobane pelos terroristas do califa Ibrahim.
O jogo de poder do sultão Erdogan
Enquanto isso Ancara parece prolongar uma política causadora de
problemas com os vizinhos.
Para o Ministro de Defesa turco, Ismet Yilmaz, “a principal causa
do EI é o regime sírio”. E o Primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, que inventou a
agora defunta doutrina “zero problemas com os nossos vizinhos”, enfatizou
repetidamente que Ancara somente intervirá com tropas em Kobane para defender
os curdos se Washington apresentar um “plano pós-Assad”.
E depois existe um personagem que ultrapassa a realidade: o
Presidente turco Tayyip Erdogan, conhecido também como Sultão Erdogan.
Os decretos do sultão Erdogan são bem conhecidos. Os curdos sírios
devem combater contra Damasco, sob o comando dessa criação decadente: o
Exército Livre Sírio (que deve ser treinado, precisamente, na Arábia Saudita);
devem deixar de lado qualquer ideia de autonomia; devem aceitar docilmente a
solicitação turca de que Washington confia numa zona de exclusão aérea sobre a
Síria e também uma fronteira “segura” no território sírio. Não é surpreendente
que tanto o PYD como Washington tenham rejeitado essas exigências.
O Sultão Erdogan quer relançar o processo de paz com o PKK; e quer
conduzi-lo a partir de uma posição de força. Até agora a sua única concessão
foi permitir que peshmergas curdos iraquianos entrassem no norte da Síria, como
contrapeso para as milícias do PYD-PKK, e impedir dessa maneira o
fortalecimento de um eixo curdo anti-turco.
Ao mesmo tempo, o Sultão Erdogan sabe que o ISIS/ISIL/Daesh já
recrutou até 1 000 possuidores de passaportes turcos, número que continua a
aumentar. O seu pesadelo adicional é que a mistura tóxica de resíduos que
atinge o “Siraq” se estenda em força, mais cedo do que tarde, para dentro das
fronteiras turcas.
Cuidado com estes bárbaros às portas
Os terroristas do califa Ibrahim já comunicaram a sua intenção de
massacrar e/ou escravizar toda a população civil de Kobane. No entanto, Kobane,
per se, não tem nenhum valor estratégico para o ISIS/ISIL/Daesh (foi o que o
próprio Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, disse na semana passada;
porém depois, previsivelmente, retratou-se). No entanto, o muito persuasivo
comandante do PYD está plenamente consciente da ameaça ISIS/ISIL/Daesh.
Kobane não é essencial, comparada com Deir ez-Zor (que tem um aeroporto que serve o Exército Árabe Sírio) ou Al-Hasakah (que tem campos petrolíferos controlados por curdos com a ajuda do Exército Árabe Sírio). Kobane não tem aeroporto, nem campos petrolíferos.
Por outro lado, a queda de Kobane geraria uma imensa publicidade
positiva adicional para o muito hábil empreendimento do Califa, ampliando a
percepção de um exército vitorioso, especialmente entre novos potenciais
recrutas, com passaportes da União Europeia, bem como estabelecendo uma sólida
base muito próxima da fronteira turca.
Essencialmente, o que o sultão Erdogan está a fazer é combater
tanto Damasco (a longo prazo) como os curdos (a médio prazo), ao passo que
realmente abre o caminho (a curto prazo) ao ISIS/ISIL/Daesh. E no entanto, mais
adiante, o jornalista turco Fehim Tastekin tem razão: o treino de inexistentes
rebeldes sírios “moderados” na tão democrática Arábia Saudita, apenas conduzirá
à paquistanização da Turquia. Uma nova versão (mais uma) do cenário ocorrido
durante a jihad afegã dos anos 1980.
Se isto não fosse já suficientemente confuso, numa mudança do
terreno de jogo, e revertendo o seu dogma “terrorista”, Washington mantém agora
um acordo cordial com o PYD. E isso representa uma dor de cabeça adicional para
o sultão Erdogan.
Estas trocas entre Washington e o PYD ainda mexem. No entanto,
alguns factos dizem tudo: mais bombardeamentos dos EUA, mais abastecimentos
pelo ar por parte dos EUA (incluindo grandes fracassos, nos quais as novas
armas acabam por ficar nas mãos dos terroristas do Califa).
Não se deve esquecer um facto chave. Enquanto o PYD foi mais ou menos “reconhecido” por Washington, o chefe do PYD, Saleh Muslim, foi reunir-se com o astuto líder do Governo Regional do Curdistão (KRG), Masoud Barzani. Nessa ocasião, o PYD prometeu “compartilhar o poder” com os peshmergas de Barzani no governo de Rojava.
Os curdos sírios que foram obrigados a abandonar Kobane e a
exilar-se na Turquia e que apoiam o PYD não podem voltar à Síria; mas os curdos
iraquianos podem ir e voltar. Este suspeito acordo foi negociado pelo chefe de
informação do KRG, Lahur Talabani. O KRG, factor crucial, relaciona-se muito bem
com Ancara.
Isto lança mais luz sobre o jogo de Erdogan: quer que os
peshmergas, que são ferozes inimigos do PKK, se tornem a vanguarda contra o
ISIS/ISIL/Daesh e que dessa forma enfraqueça a aliança PYD/PKK. Mais uma vez, a
Turquia vira curdos contra curdos.
Washington, por sua parte, está a manipular Kobane para legitimar
completamente - utilizando uma veia “humanitária” R2P (responsabilidade de
proteger) - a sua cruzada contra o ISIS/ISIL/Daesh. Nunca é demais relembrar
que todo o assunto começou por um bombardeamento enviesado de Washington sobre
o espúrio, fantasmático grupo de Khorasan, que estaria a preparar um novo 11-S.
Khorasan, previsivelmente, desapareceu por completo das notícias.
A longo prazo, a tramóia dos EUA é uma séria ameaça para a experiência
de democracia directa em Rojava, que Washington apenas pode interpretar como
(Deus nos livre!) um regresso do comunismo.
Portanto, Kobane é agora um peão crucial num jogo impiedoso
manipulado por Washington, Ancara e Erbil. Nenhum desses actores quer que a
experiência de democracia directa em Kobane e Rojava tenha êxito, seja
expandida e comece a ser conhecida em todo o Sul. As mulheres de Kobane correm
um perigo mortal de ser, se não escravizadas, cruelmente traídas.
E o assunto torna-se ainda mais sinistro quando a acção do
ISIS/ISIL/Daesh em Kobane é vista essencialmente pelo que é: uma manobra de
diversão, uma armadilha ao governo de Obama. Na realidade, os terroristas do
Califa apontam para a província Al-Anbar no Iraque, que já controlam em grande
parte, e à crucial cintura de Bagdad. Os bárbaros estão às portas, não apenas
de Kobane, mas também de Bagdad.
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