quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A AGENDA REAL DA FUNDAÇÃO GATES

4 novembro 2014, Resistir.info http://www.resistir.info (Portugal)

por Jacob Levich*

"Agências do governo dos EUA têm um longo historial na investigação de armas biológicas alegadamente defensivas em laboratórios sitos na Libéria e Serra Leoa. Isto inclui o Center for Disease Control and Prevention (CDC), o qual é agora a agência de ponta para administrar o alastramento do ébola dentro dos EUA.
Por que a administração Obama despachou tropas para a Libéria quando elas não têm qualquer treino para tratamentos médicos nos africanos que estão a morrer? Como é que o ébola do Zaire, onde foi identificado pela primeira vez em 1976, foi para a África Ocidental a cerca de 3.500 km de distância?"
Prof. Francis Boyle, da Universidade de Illinois.

"Está a tentar encontrar lugares onde o dinheiro terá a máxima alavancagem, como se pode salvar o máximo de vida por dólar, por assim dizer", observou Pelley. "Certo. E transformar as sociedades", respondeu Gates. [1]

Em 2009 o auto-designado "Good Club" – uma reunião das pessoas mais ricas do mundo cujo valor líquido colectivo totalizava então uns US$125 mil milhões – encontrou-se a portas fechadas em Nova York para discutir uma resposta coordenada a ameaças apresentadas pela crise financeira global. Liderado por Bill Gates, Warren Buffett e David Rockfeller, o grupo resolveu descobrir novos meios de tratar as fontes de descontentamento no mundo em desenvolvimento, em particular a "superpopulação" e as doenças infeccionas. [2] Os bilionários presentes comprometeram-se a despesas maciças em áreas do seu próprio interesse, sem levar em consideração as prioridades de governos nacionais e de organizações de ajuda existentes. [3]

Pormenores da cimeira secreta escaparam para a imprensa e foram saudados como um ponto de viragem para a Grande Filantropia. Foi dito que fundações burocráticas tradicionais como a Ford, Rockefeller e Carnegie render-se-iam ao "filantrocapitalismo", uma nova
abordagem muscular para a caridade na qual as presumidas qualificações empresariais de bilionários seriam aplicadas directamente aos mais prementes desafios do mundo.

Os filantrocapitalistas de hoje vêem um mundo cheio de problemas que eles, e talvez apenas eles, podem e devem endireitar. ... A sua filantropia é "estratégica", "consciente do mercado", "orientada pelo impacto", "baseada no conhecimento", muitas vezes de "alto compromisso" e sempre conduzida pelo objectivo de maximizar a "alavancagem" do doador do dinheiro. ... Os filantrocapitalistas tentam cada vez mais encontrar meios de aproveitar a motivação do lucro para alcançar o bem social. [4]

Exercendo "enorme poder que podia remodelar nações de acordo com a sua vontade",[5] os doadores bilionários agora abraçariam abertamente não só a teoria baseada no mercado como também as práticas e normas organizacionais do capitalismo corporativo. Contudo, o impulso geral das suas caridosas intervenções permaneceria coerente com as antigas tradições da Grande Filantropia, como discutido abaixo:

I. The World's Largest Private Foundation (A maior fundação privada do mundo)
II. Fundações e imperialismo
III. Gates and Big Pharma (Gates e a grande indústria farmacêutica)
IV. A Broader Agenda (Uma agenda mais vasta) 


(...)
II. Fundações e imperialismo

Quando aqueles que têm agressivamente estabelecido e mantido monopólios a fim de acumular vastos capitais viram-se para actividades caritativas, não precisamos assumir que os seus motivos são humanitários. [21] Na verdade, em certas ocasiões estes "filantropos" definem seus objectivos mais directamente como fazer o mundo mais seguro para a sua espécie. Numa carta publicada no sítio web da sua Fundação, Bill Gates invoca "o auto-interesse esclarecido dos ricos do mundo" e adverte que "se as sociedades não puderem proporcionar saúde básica para as pessoas, se não puderem alimentá-las e educá-las, então suas populações e problemas crescerão e o mundo será um lugar menos estável". [22]

O padrão de tais actividades "filantrópicas" foi estabelecido nos EUA cerca de um século atrás, quando barões industriais tais como Rockefeller e Carnegie estabeleceram as fundações que portam os seus nomes, seguidas em 1936 pela Ford. Como argumentou Joan Roelofs, [23] durante o século passado a filantropia privada em grande escala desempenhou um papel crítico a níivel mundial a fim de assegurar a hegemonia das instituições neoliberais enquanto reforçava a ideologia da classe dominante ocidental. Redes entrelaçadas de fundações, ONG patrocinadas por fundações e instituições do governo dos EUA como a National Endowment for Democracy (NED) – notória como um "passador" para fundos da CIA – trabalham de mãos dadas com o imperialismo, subvertendo estados e movimentos sociais populares através da cooptação de instituições consideradas úteis à estratégia global dos EUA. Em casos extremos mas não pouco frequentes, fundações colaboraram activamente em operações de mudança de regime administradas pela inteligência dos EUA. [24]

O papel da Grande Filantropia, entretanto, é mais vasto. Mesmo esforços aparentemente benignos de fundações, tais como o combate contra doenças infecciosas, podem ser melhor entendidos quando colocados nos seus contextos históricos e sociais específicos. Recordar que escolas de medicina tropical foram estabelecidas nos EUA no fim do século XIX com o objectivo explícito de aumentar a produtividade de trabalhadores colonizados e ao mesmo tempo garantir a segurança dos seus supervisores brancos. Como escreveu um jornalista em 1907:

A doença ainda dizima populações nativas e remete para casa homens dos trópicos prematuramente velhos e desgastados. Até que o homem branco tenha a chave para o problema, esta mancha deve permanecer. Colocar grandes porções do globo debaixo do domínio do homem branco tem um toque grandiloquente; mas a menos que tenhamos os meios de melhorar as condições dos habitantes, isto é pouco mais do que uma jactância vazia. [25]

Precisamente este raciocínio fundamentou a formação da Fundação Rockfeller, a qual foi incorporada em 1913 com o objectivo inicial de erradicar a ténia (hookworm), a malária e a febre amarela. [26] No mundo colonizado as medidas de saúde pública encorajadas pela Comissão Internacional de Saúde da Rockfeller proporcionavam aumentos na extracção do lucro, pois a cada trabalhador agora podia ser pago menos por unidade de trabalho, "mas com força acrescida era capaz de trabalhar mais arduamente e mais tempo e recebia mais dinheiro no seu envelope de pagamento". [27] Além da eficiência aumentada do trabalhador – a qual não era necessariamente um desafio crítico para o capital em regiões onde vastas reservas de trabalhadores sub-empregados estavam disponíveis para exploração – os programas de investigação de Rockfeller prometiam maior alcance para futuras aventuras militares dos EUA no Sul Global, onde exércitos de ocupação muitas vezes ficaram incapacitados devido a doenças tropicais. [28]

Como Rockfeller expandiu seus programas internacionais de saúde em coordenação com agências dos EUA e outras organizações, foram obtidas vantagens adicionais para o núcleo imperial. A medicina moderna publicitava os benefícios do capitalismo para povos "retrógrados", minando sua resistência à dominação por potências imperialistas e criando ao mesmo tempo uma classe profissional nativa cada vez mais receptiva ao neocolonialismo e dependente da generosidade estrangeira. O presidente da Rockfeller observou em 1916: "Para os objectivos de apaziguar povos primitivos e suspeitosos, as medicinas têm algumas vantagens sobre metralhadoras". [29]

Após a II Guerra Mundial, a filantropia da saúde pública tornou-se estreitamente alinhada à política externa dos EUA pois o neocolonialismo abraçou a retórica, se não o conteúdo, do "desenvolvimento". Fundações colaboraram com a Agency for International Development (USAID) no apoio a intervenções destinadas a aumentar a produção de matérias-primas ao mesmo tempo que criavam novos mercados para bens manufacturados ocidentais. Uma secção da classe dominante dos EUA, representada mais destacadamente pelo secretário de Estado George Marshall, argumentou que "aumentos na produtividade do trabalho tropical exigiriam investimentos em infraestrutura social e económica incluindo maiores investimentos em saúde pública". [30]

Enquanto isso, o seminal Relatório Gaither, encomendado em 1949 pela Fundação Ford, encarregou a Grande Filantropia de avançar com o "bem estar humano" a fim de resistir à "maré do comunismo ... na Ásia e na Europa". [31] Em 1956, um relatório do International Development Administration Board para o presidente dos EUA enquadrou abertamente a assistência à saúde pública como uma táctica de ajuda à agressão militar ocidental na Indochina:

Áreas que à noite eram inacessíveis devido à actividade do Viet Minh, durante o dia recebiam bem as equipes de pulverização de DDT que combatiam a malária. ... Nas Filipinas, programas semelhantes tornam possível a colonização de muitas áreas anteriormente não habitadas e contribuem grandemente para a conversão de terroristas Huk em pacíficos proprietários de terra. [32]

Durante algum tempo, portanto, a filantropia ocidental actuou para modelar sistemas de saúde pública em países pobres, por vezes condescendendo em ceder o controle da infraestrutura e do pessoal treinado a ministérios da saúde nacionais. [33] Embora o investimento real em cuidados de saúde do Terceiro Mundo fosse escasso em comparação com as promessas extravagantes da retórica da Guerra Fria, alguma resposta a crises de saúde em países pobres foi considerada necessária no contexto da luta do pós-guerra por "corações e mentes".

A queda da União Soviética abriu a presente fase da filantropia em saúde pública, caracterizada pela exigência ocidental de "governação da saúde pública" – alegadamente como uma resposta à difusão de doenças comunicáveis acelerada pela globalização. A saúde foi redefinida como uma preocupação de segurança; o desenvolvimento do mundo é retratado como uma fervilhante placa de Petri de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), SIDA e infecções tropicais, alastrando "doença e morte" por todo o globo [34] e exigindo que potências ocidentais estabeleçam sistemas de saúde centralizados destinados a "ultrapassar os constrangimentos da soberania estatal". [35] Intervenções imperiais no campo da saúde são justificadas nos mesmos termos das recentes intervenções militares "humanitárias": "Interesses nacionais agora obrigam a que países se empenhem internacionalmente na responsabilidade de protegercontra ameaças à saúde importadas ou de ajudar a estabilizar conflitos externos de modo a que não possam perturbar a segurança global ou o comércio ". [36]

Proporcionar apoio a operações para cuidados de saúde nacionais já não está na agenda; ao contrário – em conformidade com programas de ajustamento estrutural que exigiram ruinosos desinvestimentos em saúde pública por todo o mundo em desenvolvimento [37] – ministérios da saúde são rotineiramente ultrapassados ou comprometidos através de "parcerias público-privadas" e esquemas semelhantes. Quando sistemas nacionais de saúde são esvaziados, as despesas de saúdo de países doadores e fundações privadas ascenderam dramaticamente. [38] Na verdade, o Council on Foreign Relations, com sede nos EUA, prevê um definhamento do serviços de saúde patrocinados pelo estado, a serem substituídos por um regime supranacional de "novas estruturas legais, parcerias público-privadas, programas nacionais, mecanismos de financiamento inovadores e maior empenhamento por parte de organizações não governamentais, fundações filantrópicas e corporações multinacionais". [39]

O caso exemplar de filantropia na era da governação global da saúde é a Fundação Gates. Amplamente dotada, basicamente livre de responsabilidades, não tolhida pelo respeito para com a democracia ou a soberania nacional, a flutuar livremente entre as esferas pública e privada, está posicionada do modo ideal para intervir com ligeireza e decisivamente em prol dos interesses que ela representa. Como observou Bill Gates: "Não vou ser posto fora do governo em eleições". [40] Relacionamentos de trabalho estreitos com a ONU, os EUA e instituições da UE, bem como poderosas corporações multinacionais, dão à BMGF (Bill & Melinda Gates Foundation) uma capacidade extraordinárias para harmonizar complexas agendas que se sobrepõem, assegurando que as ambições de corporações e dos EUA sejam avançadas em simultâneo. Para melhor entendimento de como opera a BMGF e no interesse de quem, vale a pena examinar os programas de vacinas global da Fundação, onde até recentemente o grosso do seu dinheiro e do seu músculo foi exercido.

Notas:
1. "The Gates Foundation: Giving Away a Fortune," CBS 60 Minutes , Sept. 30, 2010, www.cbsnews.com/news/the-gates-foundation-giving-away-a-fortune/3/ .
2. Paul Harris, "They're Called The Good Club – And They Want to Save the World," Guardian , May 30, 2009,/www.theguardian.com/world/2009/may/31/new-york-billionaire-philanthropists .
3. Andrew Clark, "US Billionaires Club Together," Guardian , Aug. 4, 2010,www.theguardian.com/technology/2010/aug/04/us-billionaires-half-fortune-gates .
4. Matthew Bishop and Michael Green, Philanthrocapitalism: How Giving Can Save the World (2008), pp. 3, 6.
5. Harris, op cit.
21. As pretensões ocasionais a Fundação gates à caridade desinteressada são desmentidas pelas políticas do seu consórcio (trust), o qual investe fortemente em "companhias que contribuem para o sofrimento em saúde, habitação e bem-estar social que a fundação esta a tentar aliviar". Andy Beckett, "Inside the Bill and Melinda Gates Foundation,"Guardian , July 12, 2010, www.theguardian.com/world/2010/jul/12/bill-and-melinda-gates-foundation .
22. Bill Gates, Annual Letter 2011, www.gatesfoundation.org/... .
23. Foundations and Public Policy: The Mask of Pluralism (SUNY Series in Radical Social and Political Theory 2003); ver também "New Study on the Role of US Foundations," Aspects of India's Economy No. 38, Dec., 2004, rupe-india.org/38/foundations.html .
24. Ex.: "Na Indonésia as redes de conhecimento patrocinadas pela Fundação Ford trabalharam para minar o governo neutralista de Sukarno que desafiou a hegemonia dos EUA. Ao mesmo tempo, a Ford treinava economistas (tanto na Universidade da Indonésia como em universidades estado-unidenses) para um futuro regime apoiante do imperialismo capitalista". Roelofs, "Foundations and American Power ," Counterpunch , April 20-22, 2012,www.counterpunch.org/2012/04/20/foundations-and-american-power/ .
25. Citado em E. Richard Brown, "Public Health in Imperialism: Early Rockefeller Programs at Home and Abroad", Am J Public Health , 1976 September; 66(9): 897–903, 897.
26. Desde os seus dias mais primitivos a filantropia de Rockfeller ocultava também uma agenda interna. A Fundação foi forçada a retratar-se do patrocínio de investigação no campo das relações trabalhistas depois de o Relatório da Walsh Commission de 1916 descobriu que estava "a corromer fontes de informação pública" num esforço para encobrir práticas de negócios predatórias e violência industrial. Jeffrey Brison, Rockefeller, Carnegie, and Canada , Montreal: McGill-Queen's University Press, 2005, p. 35.
27. E. Richard Brown, op. cit. , p. 900.
28. David Killingray, "Colonial Warfare in West Africa 1870-1914," reprinted in J. A. de Moor & H.L. Wesseling, eds.,Imperialism and War , Leiden : E.J. Brill : Universitaire pers Leiden, 1989, pp. 150-151.
29. E. Richard Brown, op. cit. , p. 900.
30. Randall Packard, "Visions of Postwar Health and Development and Their Impact on Public Health Interventions in the Developing World," reprinted in Frederick Cooper & Randall Packard, International Development and the Social Sciences , Berkeley: Univ. of California Press, 1997, p. 97. Num discurso em 1948 ao Quarto Congresso Internacional de Doenças Tropicais e Malária, Marshal, um dos principais arquitectos da política dos EUA durante os primeiros anos da Guerra Fria, esboçou uma visão grandiosa de cuidados de saúde sob o capitalismo "esclarecido": "É preciso pouca imaginação para visualizar o grande aumento na produção de alimentos e matérias-primas, o estímulo ao comércio mundial e, acima de tudo, a melhoria nas condições de vida, com as consequente vantagens culturais e sociais, que resultaria da conquista das doenças tropicais". Ibid ., p. 97.
31. Report of the Study for the Ford Foundation on Policy and Program , Detroit: Ford Foundation, November, 1949, p. 26,www.fordfoundation.org/pdfs/about/Gaither-Report.pdf .
32. Citado em Packard, op. cit ., p. 99.
33. Wilbur G. Downs, M.D., "The Rockefeller Foundation Virus Program 1951-1971 with Update to 1981", Ann. Rev. Med.1982 33:1-29, 8.
34. Andrew F. Cooper and John J. Kirton, eds., Innovation in Global Health Governance: Critical Cases , Aldershot: Ashgate Publishing, 2009, ch. 1.
35. Michael A. Stevenson & Andrew F. Cooper, "Overcoming Constraints of State Sovereignty: Global Health Governance in Asia", Third World Quarterly , vol. 30, no. 7, 3009, pp. 1379-1394.
36. Thomas E Novotny et al., "Global health diplomacy– a bridge to innovative collaborative action," Global Forum Update on Research for Health, vol. 5, 2008, p. 41. (Emphasis added.)
37. Ver Ann-Louise Colgan, Hazardous to Health: The World Bank and IMF in Africa , Africa Action position paper, April 18, 2002, h www.africafocus.org/docs02/sap0204b.php .
38. Global Health Watch, pp. 210-11.
39. David P. Fidler, The Challenges of Global Health Governance , CFR Working Paper, May, 2010,http://www.cfr.org/global-governance/challenges-global-health-governance/p22202 .
40. Entrevista com Bill Gates, NOW with Bill Moyers , May 9, 2003, transcript of television interview,http://www.pbs.org/now/transcript/transcript_gates.html .

Ver também: 
   

Nenhum comentário: