6 julho 2010/Opera Mundi http://operamundi.uol.com.br
Daniella Cambaúva
Vinte e sete anos após o fim da ditadura militar argentina (1966-1983), o ex-ditador Jorge Rafael Videla senta mais uma vez no banco dos réus. Acostumado a manter-se calado durante os julgamentos, ontem (5/7), numa atitude inédita, Videla assumiu e defendeu os crimes cometidos no período. O fato provocou revolta entre ex-presos políticos, familiares de desaparecidos e políticos argentinos.
“Ver Videla me causa uma rejeição visceral, pois ele é o símbolo da pior ditadura”, disse o deputado portenho, Aníbal Ibarra, ex-prefeito de Buenos Aires, que foi secretário do julgamento das Juntas Militares. Videla e outros 24 acusados respondem pelo fuzilamento em 1976 de 30 detidos em uma prisão da província de Córdoba.
Na sessão de ontem, Videla não negou as acusações imputadas. “Assumo minha responsabilidade na guerra interna, meus subordinados se limitaram a cumprir minhas ordens”, afirmou diante do tribunal de Córdoba.
Segundo a imprensa local, os outros réus pediram para deixar a sala durante o depoimento do ex-ditador, que se comportou de forma “fria, como se estivesse justificando os crimes cometidos”, detalhou em uma reportagem publicada no Clarín a jornalista Marta Platía.
Após a declaração de Videla, a presidente da Associação das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, disse que “repudia a divulgação permanente das palavras do genocida”.
“Em vez de passar o que Videla disse, para que os jovens saibam o que aconteceu durante a ditadura, as Mães acreditam que é preciso mostrar o que ele fez”, afirmou, por meio de um comunicado. Segundo Hebe, as palavras de Videla são “repugnantes”, pois o ex-ditador quer justificar a tortura, os fuzilamentos, sequestros e destruição de famílias.
Desde sexta-feira (2/7), o ex-ditador, 84 anos, está sendo julgado por crimes de violação de direitos humanos, como assassinato, tortura, sequestro e prisão arbitrária. Essa foi a primeira vez que o ex-ditador deu uma declaração pública após a redemocratização, segundo o promotor Julio César Strassera, que acompanha o julgamento de ex-repressores.
Na avaliação do promotor Carlos Gonella, no depoimento de Videla está “evidente a cumplicidade com o terrorismo de Estado”.
“Estamos diante de um julgamento paradigmático do que foi o terrorismo de Estado e o que é importante é que vai ficar em evidência o consentimento que houve entre setores da sociedade civil que atuaram junto com aquele governo”, afirmou Gonella, citado pelo Diário de Julgamento, criado pela associação Hijos da filial de Córdoba para reunir e divulgar o material do processo.
Ficha
Videla encabeçou o golpe de estado de 24 de março de 1976 que substituiu a então presidente Isabelita Perón por uma junta militar, formada por ele, representando o Exército, o almirante Emilio Eduardo Massera da Marinha e o brigadeiro general Orlando Ramón Agosti pela Força Aérea, dando início ao “Processo de Reorganização Nacional”.
Hoje, devem ser ouvidos os outros 24 réus. Depois, serão apresentadas provas e documentos, além de testemunhos de ex-presos e familiares. Segundo o Ministério Público da Argentina, desde 2003, 625 pessoas foram processadas por violações de direitos humanos cometidas na ditaduras. Destas, 53 foram condenadas.
O ex-ditador, que também enfrenta acusações na Itália, na Espanha, na França e na Alemanha pelas mortes de civis na Argentina, chegou a ficar em cadeias militares e em prisão domiciliar, mas agora está em uma cela comum. Com o ex-ditador já condenado à prisão perpétua, o julgamento que começa nesta sexta não pode elevar seu tempo na cadeia, mas as famílias das vítimas consideram que uma possível condenação pode ajudar a superar as mortes.
Especial: Memórias do passado de terror
Esma: Por dentro da escola de tortura argentina
Argentina julga primeiro presidente da ditadura militar
Videla assume culpa por crimes na ditadura argentina
Hoje na História: Golpe militar instaura ditadura na Argentina
Ex-ditadores argentinos serão julgados em setembro por roubo de bebês
------------------ LER TAMBEM
Argentina/MEMÓRIAS DO PASSADO DE TERROR
3 julho 2010/Opera Mundi http://operamundi.uol.com.br
Luciana Taddeo (Buenos Aires)
A ferida aberta pela última ditadura militar na Argentina nunca foi cicatrizada. Quase 30 anos depois da repressão, as organizações de direitos humanos, parentes de mortos e desaparecidos continuam manifestando a dor gerada pelos atos de violência cometidos no país entre 1976 e 1983.
A evocação à memória da repressão é expressada na capital do país, Buenos Aires, de várias maneiras: desde pichações nos muros que questionam o destino dos desaparecidos até antigos CCDs (Centros Clandestinos de Detenção) transformados em espaços culturais, que hoje divulgam os crimes cometidos no período. Passeatas frequentes pedem a prisão dos militares e das autoridades envolvidas.
A presença nesses locais e eventos ajuda a entender este período da história argentina, a partir da reconstrução tanto do funcionamento da autoridade militar na época, como da desaparição e morte de cerca de 30 mil pessoas e ainda a resistência à impunidade dos responsáveis, que se mantém mesmo após a reabertura democrática, em 1984.
A pesquisadora Sabrina Osowski, responsável pela capacitação dos guias da ESMA (Escola de Mecânica da Armada), antes um dos maiores locais de tortura do país, afirma que as visitas são um exercício de memória, debate e discussão. “Nosso interesse não é que as pessoas tirem fotos e levem um chaveiro, mas que entendam como isso foi possível e o que estes fatos nos dizem sobre nossa atualidade. Tentamos não transformar a visita em um show de horror, e sim dar ferramentas para que saiam daqui com inquietudes e pesquisem mais sobre o assunto”.
Para ajudar quem também busca conhecer em pessoa a história recente do país vizinho, o Opera Mundi preparou um roteiro que vem sendo seguido por visitantes em Buenos Aires entre locais que marcaram a ditadura argentina.
Praça de Maio
Todas as quintas-feiras, as Mães da Praça de Maio marcam presença nesta que é a principal praça de Buenos Aires, em frente ao palácio do governo, pedindo justiça por seus filhos desaparecidos. Suas marchas de resistência à ditadura começaram aos sábados, nos anos 1970, mas como nesse dia o comércio fecha e há poucas pessoas nas ruas, elas acabaram transferidas para as quintas, sempre às 15h30.
ESMA
Este edifício teve dupla função durante a ditadura militar: a prisão de oposicionistas e a formação de novos militares. Segundo estimativas, cerca de 5 mil pessoas passaram por suas celas e salas de tortura. A instituição ficou nas mãos das forças armadas até 2007, três anos depois de o ex-presidente Néstor Kirchner ordenar o desalojamento dos militares e a restituição do prédio à prefeitura de Buenos Aires.
Hoje, é possível visitar as dependências do local com uma visita guiada aos dormitórios dos militares, ao Casino de los Oficiales (área onde mantinham e torturavam os presos), bem como à maternidade clandestina, onde se realizava o parto das presas grávidas, muitas das quais tiveram seus filhos sequestrados e ilegalmente adotados por outras famílias.
Como o local conserva provas utilizadas em processos judiciais, apenas um grupo restrito de pessoas é autorizado a fazer as visitas gratuitas de pelo menos duas horas. Por isso, é importante marcar horário com antecedência (Av. Libertador, 8151, em Nuñez, Buenos Aires. Agendamento de Visitas: Tel: +54 4704-5525).
Mural Justiça e Castigo
Obra inaugurada em 2007, no bairro portuário de La Boca, em homenagem aos 30 anos de luta das Mães da Praça de Maio. Criado por iniciativa de um grupo da Central de Trabalhadores Argentinos, o mural mostra o julgamento popular de militares, padres e empresários. Ao lado da representação, há um fragmento da Carta a La Junta Militar, do escritor detido e desaparecido, Rodolfo Walsh (Rua Suárez, 300, em La Boca, Buenos Aires).
Lápides
Por toda a cidade há lápides com bordas coloridas com informações sobre mortos e desaparecidos, colocadas por seus amigos, familiares e a Comissão de Bairros pela Memória e Justiça.
Alguns endereços onde podem ser vistas: Rua Malabia, 2148, em Palermo; Rua Jorge Luis Borges, 2252, em Palermo; Rua Paraguay 2155, na Recoleta; Av. Corrientes com Medrano, em Almagro; Av. Callao, 274, em San Nicolás; Av. Corrientes com Uruguay, em San Nicolás.
Clube Atlético
Desde 2002, um grupo de arqueólogos trabalha na recuperação deste CCD, que funcionou em um porão, de fevereiro a dezembro de 1977 e foi demolido para a construção da autopista 25 de Maio. Mais de 1500 pessoas passaram por suas 41 celas estreitas (chamadas de “tubos”) e três salas de tortura. A iniciativa de recuperar o local surgiu a partir do pedido de um grupo de sobreviventes e de entidades de direitos humanos.
O lugar, que recebia visitas, está fechado devido à falta de segurança gerada pela autopista, que passa em cima do memorial. No entanto, do lado de fora é possível ver as escavações, plantas do local e uma grande silhueta, representando os desaparecidos, e placas com os nomes de cada um deles (Av. Paseo Colón com rua Cochabamba, em San Telmo, Buenos Aires).
Parque da Memória
A área de 14 hectares, localizada em frente ao Rio da Prata, reúne homenagens a desaparecidos. A principal delas é o Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado - quatro longos muros com os nomes, ano por ano, dos mortos e desaparecidos. Somente os das vítimas de 1976, o ano mais violento da repressão, ocupam 47 metros dos muros.
Os monumentos do parque comovem e convidam à reflexão. A 30 metros da costa se vê, com os pés sobre a água, uma escultura de aço em tamanho real de Pablo Míguez, sequestrado aos 14 anos, olhando para o horizonte. Outra instalação, intitulada 30.000, é composta por 25 bastões verticais com a pintura do retrato utilizado pela avó do artista Nicolás Guagnini, em protestos pelo filho desaparecido. À medida que o espectador se desloca, o rosto se distorce, aparece e desaparece, na frente do rio (Av. Costanera Rafael Obligado, ao lado da Cidade Universitária, em Belgrano, Buenos Aires).
El Olimpo
Os murais pintados na fachada das quatro ruas do quarteirão que ocupa este ex-CCD são uma das mais fortes expressões da insatisfação da sociedade argentina em relação à impunidade dos militares acusados de tortura e assassinatos.
Neles, há frases pintadas como “Os povos latino-americanos contra os genocidas de ontem e de hoje”, “Aqui se torturou” e “Você sabe por que Julio López não está aqui?”, em referência ao pedreiro desaparecido, em 2006, plena democracia, após depor contra Miguel Etchecolatz, primeiro militar acusado de crimes de lesa humanidade e condenado à prisão perpétua.
Quando os presos deste CCD chegavam ao quirófano (sala de cirurgia, em português), onde seriam torturados, eram recebidos com uma placa que dizia “Bem vindos ao Olimpo dos Deuses”. Hoje, em seu interior, há cartazes coloridos com informações das vítimas e uma biblioteca pública com livros proibidos durante a ditadura. O local também promove cursos em escolas sobre terrorismo de Estado e direitos humanos (Rua Coronel R. Falcón com av. Olivera, em Floresta, Buenos Aires).
El Aplauso
Localizada na entrada do Instituto Universitário Nacional de Artes, a escultura de sete pessoas agradecendo ao público foi feita pela artista Mariana Gabor em homenagem a atores desaparecidos durante o regime militar. Na escada frontal, estão expostos em placas de azulejos os nomes de 17 deles (Rua French, 3617, Buenos Aires).
Siga o Opera Mundi no Twitter
Nenhum comentário:
Postar um comentário