segunda-feira, 10 de novembro de 2008

AURORA DE UMA VENEZUELA INOVADORA

Marcos Arruda *

7 novembro 2008/ADITAL - Agência de Informação Frei Tito para a América Latina
www.adital.com.br

Adital - O processo de transformação que vive a Venezuela é, como qualquer processo histórico, carregado de contradições e conflitos entre as classes sociais. Há conflitos entre capital e trabalho, entre governantes e empresas, entre governantes e sociedade civil organizada, e também no interior desta. E há empresas estrangeiras que não se conformam com a defesa da soberania e dos interesses nacionais pelo Governo Chávez... em tempos de globalização. Mas, ao final de uma visita de trabalho à Venezuela,[1] parto de volta ao Brasil com a convicção de que na Venezuela prevalece a criação de algo novo e ainda não visto na história da América Latina e, talvez, do mundo.
Ontem assisti uma das sessões televisivas de Alô Presidente. O Presidente Hugo Chávez inaugurava a nova imprensa que irá produzir três livros por habitante por ano daqui por diante. Ele lidera uma grande campanha nacional de leitura. E leitura crítica. Algo que nunca vi em outro país, nem mesmo na Nicarágua Sandinista dos anos 80. Para isso duas a três vezes por semana ele passa duas horas ou mais diante de um público que lota o salão ou a praça e diante dos telespectadores, apresentando livros, revistas e jornais, lendo trechos, comentando, interpretando notícias, dialogando com o público, chamando pessoas a dar testemunho ou a levantar questões ou críticas. Uma das tônicas mais surpreendentes é a simplicidade de Chávez e a maneira afável e sensível como ele valoriza cada pessoa. Ele comenta conversas com o presidente recém empossado da Nicarágua, Daniel Ortega.
- Perguntei a Daniel: ‘Nesta hora de viagem de carro ao interior, quero que você me fale dos erros do seu governo anterior que levaram à derrota eleitoral de 1990.’ Aferrar-se a dogmas, a doutrinas, confiando mais nelas do que na incerteza que implica desvendar novos horizontes, descobrir novas realidades, abrir novos caminhos. Tirar a propriedade dos pequenos produtores, iludindo-se que socializar quer dizer estatizar o mais possível.
E Chávez termina o relato dos erros chamando a Venezuela a não repeti-los, mas sim evitá-los na construção da Pátria Bolivariana:
- Há que aprender de Fidel a não nos aferrarmos a nenhum dogma, nem implantar o socialismo como dogma.
O programa Alô Presidente é uma autêntica sessão de educação libertadora. Não há discursos, apenas diálogo, interação.
Leio o digiscrito do livro de Marta Harnecker, a escritora e lutadora chilena convidada a assessorar o governo na promoção da participação popular desde baixo. O livro consiste numa longa entrevista com Argenio Loreto, prefeito do município de Libertador, no estado de Carabobo. Convivi com Argenio nos dois dias de visita ao Estado de Lara, e nos tornamos amigos. Ficar conhecendo os detalhes da vida pessoal e política dele é uma experiência surpreendente: uma imensa riqueza se esconde naquele índio forte e risonho, enérgico e afetuoso com quem compartilhei reflexões sobre práticas de governo local ricamente inovadoras.
Uma revolução socialista e democrática está em processo na Venezuela. Sem alarde nem sangue, um povo se empodera a partir de uma vivência profunda e autêntica de poder popular. São exemplos protagônicos os dois municípios com que me familiarizei - Torres, no estado de Lara, que visitamos, e Libertador, que conheci apenas indiretamente, através de Argenio e da sua rica entrevista a Marta Harnecker, que em breve sairá em livro. Torres é dirigida pelo prefeito Julio Chávez, que revelou idêntico compromisso com a construção de um poder popular a partir das famílias e das comunidades rurais e urbanas do seu município. Visitamos três comunidades rurais e um banco comunal, conversamos com porta-vozes eleitos por elas aos respectivos Conselhos Comunais e aos Conselhos Locais de Planejamento Participativo, e participamos de uma reunião do Conselho Popular Municipal e do Orçamento Participativo.
As novas instâncias de poder popular nesses municípios começaram antes da Lei de Conselhos Comunais e antes que se generalizasse o processo de Reforma da Constituição de 1999, que pretende adaptar a Carta Magna ao movimento de aprofundamento da Revolução no sentido do Socialismo Bolivariano. Apresso-me, porém, a apontar que isto não ocorre ainda no país inteiro. E não ocorre tampouco sem contradições e conflitos.
As palavras Revolução e Socialismo podem parecer retumbantes e repetitivas de um passado que já não volta. Ledo engano. Revolução é parte essencial da história humana e ocorre sempre que um sistema político, uma cultura ou uma civilização agoniza e outra se constrói até se tornar hegemônica e ocupar seu lugar. A verdade é que tudo que começo a contar neste artigo vem carregado de novidade. Trata-se de um socialismo inovador, certamente induzido a partir do Presidente, mas que vem sendo construído a partir de baixo, do nível das famílias e das comunidades. As Assembléias Cidadãs, os Conselhos Comunais, os Territórios Sociais e os Governos Comunitários são invenções geniais. Eles visam realizar a integração das pessoas e das famílias de todo o país num movimento de cidadania ativa que dá substância ao empoderamento das pessoas, das comunidades e da população para exercer efetivamente o poder.
Os mais audazes falam da construção de um Estado democrático, no interior e à margem do velho Estado oligárquico organizado e consolidado ao longo de séculos para servir aos interesses das classes privilegiadas. Há um projeto estratégico transformador e uma vontade política para torná-lo realidade, não a partir do Estado mas da sociedade organizada. Sua realização não é nada fácil nem é isenta de conflitos e contradições, obstáculos de ordem objetiva e, principalmente, subjetiva.
O que vimos na visita a Torres é uma amostra da socioeconomia solidária em construção na Venezuela. Há equívocos, mas a vontade política é acertada: construir iniciativas autogestionárias pelo país afora, lado a lado com instâncias de participação cidadã ativa no desenvolvimento econômico, social e humano local. O fundamento jurídico deste processo é a Constituição Bolivariana de 1999. Nela está definido o projeto de "garantir o pleno desenvolvimento humano", de "desenvolver o potencial criativo de cada ser humano, do pleno exercício de sua personalidade numa sociedade democrática"; de promover a participação cidadã como "a forma necessária de conseguir e garantir o pleno desenvolvimento, tanto individual quanto coletivo". A Constituição também identifica o planejamento democrático e o orçamento participativo em todos os níveis da sociedade e a "autogestão, a cogestão e as cooperativas de todo tipo" como exemplos das "formas de associação guiadas pelos valores da cooperação mútua e da solidariedade".
O Presidente Hugo Chávez falou enfaticamente desta visão em 2003, usando o conceito de economia social para dizer que ela fundamenta "sua lógica no ser humano, no trabalho, isto é, no trabalhador e na família do trabalhador, isto é, no ser humano." O professor Michael Lebowitz, no seu livro "El Socialismo no cae del cielo: un nuevo comienzo" (Monte Avila Editores Latinoamericana, Caracas, 2007), observa que "este é o conceito de uma economia que não está dominada pela idéia do lucro econômico e dos valores de troca (...) A economia social gera fundamentalmente valores de uso. Seu objetivo é a construção do homem novo, da mulher nova, da sociedade nova. Esta é uma visão conhecida, é o ideal que se encontra nas grandes religiões, nas tradições humanistas, nas sociedades indígenas - a idéia de uma família humana, de seres humanos associados pela solidariedade e não pelo interesse. " (Lebowitz, 2007:7-8) E resume a visão de Hugo Chávez citando sua fala de 2005: "Temos que criar um sistema comunal de produção e consumo, um sistema novo (...) com a participação das comunidades, através das organizações comunais, das cooperativas, da autogestão e de outras tantas maneiras de criar este sistema."
A Venezuela tem classes dominantes fortes e entrincheiradas em grandes propriedades rurais, em grandes empresas, em redes nacionais e internacionais de distribuição, e na grande mídia. A RCTV é apenas uma das potências midiáticas que defendia os interesses dessas classes. Frente aos ataques ao governo Chávez no Brasil e na imprensa internacional pela decisão recente de não renovar a concessão à RCTV, vale a pergunta: Por que é que a decisão dos governos dos Estados Unidos, Canadá, Espanha, França, Irlanda e Rússia de não renovar concessões a TVs e rádios não é denunciada pela mídia como atentado à liberdade de imprensa? (Ver Carta dos Leitores, O Globo, 5.6.2007). Essas elites são apoiadas pelas grandes potências do hemisfério Norte, que vêem em Chávez, assim como em Fidel Castro e Evo Morález, representantes da "má esquerda". Pois para elas há uma "boa esquerda", que na América Latina pode ser identificada em governos como os de Michele Bachelet, do Chile, Tabaré Vázquez, do Uruguai, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil. É "boa" porque não desafia nem enfrenta o capital globalizado. Esta é a análise do Professor Lebowitz em "Venezuela: um bom exemplo da má esquerda na América Latina" (revista Monthly Review, Nova York, julho-agosto de 2007). E aquelas elites estão ansiosas para impedir que o Equador, a Nicarágua e a Argentina pós-Nestor Kirschner venham a alinhar-se com a "má esquerda".

Nota
[1] Visita feita a convite do Centro Internacional Miranda, entre 17 e 22.7.07 para uma apresentação pública e debate sobre "O Ser Humano Integral e a Práxis: Empoderando Comunidades Locais" e para visitas ao interior do país.

* Socioeconomista e educador do PACS-RJ. Sócio do Inst. Transnacional (Holanda). Colab. da Rede Bras. de Socioeconomia Solidária e do Fórum Bras. de Economia Solidária. Membro coord. Intern. da Aliança por uma Economia Responsável, Plural e Solidária

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