Guaranís da região do Chaco boliviano são Escravos em pleno século XXI
Naimi Núñez para a TeleSUR
24 maio 2008/Fonte: Tirem as Mãos da Venezuela
http://tirem-as-maos-da-venezuela.blogspot.com/
Por trabalhos forçados a mais de doze horas diárias, as mulheres ganham a metade que os homens, e os meninos e os idosos pelo geral não ganham nada. (Foto: Abi)
Mais de mil famílias vivem escravizadas na região do Chaco, na Bolívia. Os indígenas, entre eles idosos e meninos, trabalham mais de doze horas diárias sem receber pagamento algum. A situação é vista com preocupação pela Comissão Inter-americana de Direitos Humanos.
Historicamente a nível mundial, a problemática da escravatura e da servidão, supõe-se que é um assunto resolvido à vários séculos. Mas na Bolívia o problema está mais vigente que nunca. Na região do Chaco boliviano, que abarca os departamentos (do sul da Bolívia) de Chuquisaca, Tarija e Santa Cruz, desde à várias décadas, centenas de famílias guaranís que residem nesta região, vivem sob um sistema de servidão e semi-escravidão baseado na super-exploração da força de trabalho familiar. Estas pessoas, pertencentes às chamadas comunidades cativas, realizam trabalhos forçados em fazendas por mais de doze horas diárias, sem pagamento algum ou acesso a direitos básicos como a educação, a segurança social, a liberdade de movimentos e à propriedade da terra.
A comunidade guaraní, a terceira mais numerosa dos povos indígenas de Bolívia, actualmente conta com uma população de 170 mil pessoas, das quais mais de mil famílias vivem registadas em situação de escravatura em fazendas das províncias de Luis Calvo e Hernando Siles, no departamento de Chuquisaca; Grande Chaco e O'Connor, departamento de Tarija, e na cordilheira do Alto Parapetí, departamento de Santa Cruz. "É uma vergonha que na Bolívia do século XXI continue existindo a escravatura", disse o Capitão Grande do Conselho de Capitães Guaranís de Chuquisaca, Efraín Balderas, ao lamentar que ainda existam comunidades cativas de seu povo em pelo menos cinco províncias de três departamentos do país planáltico e que em seu conjunto abarcam a 15 municípios.
Balderas, alto e moreno, é um líder indígena que até à adolescência trabalhou como peão numa das fazendas chuquisaqueñas sob um regime de exploração laboral. Mas que teve a sorte de estudar e conseguir através da educação essa liberdade que centenas de famílias de seu povo ainda anseiam. A situação dos guaranís no sul de Bolívia é vista com preocupação por organismos internacionais como a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH), a Organização de Estados Americanos (OEA) e Organizações Não Governamentais (ONG).
A realidade
O número total concreto de guaranís no Chaco boliviano é difícil de contabilizar, e ainda mais o é o número daqueles que estão em situação de escravatura. O certo é que, sem dúvida, as suas vidas são muito precárias e as relações laborais com os donos das fazendas nas quais trabalham, ainda na contra mão de sua vontade, são pouco claras já que os pagamentos em sua maioria se fazem em géneros e não em dinheiro, com contas que se transmitem de geração em geração. Estes indígenas e as suas famílias trabalham mais de doze horas diárias sem receber salário, senão retribuições irregulares em géneros.
Rogelio Molina, empregado da fazenda Iguembito, localizada no município de Huacareta, na província Hernando Siles do departamento de Chuquisaca, conta que está à "trinta e três anos" trabalhando "para Federico Reynaga (proprietário), como meu pai trabalhou para o pai desse fazendeiro".
Com o tempo o mundo dos meninos torna-se igual ao dos adultos. Mas o mais assombroso, é que muitos latifundiários levam as meninas (indígenas) a partir dos 7 anos às cidades e as fazem regressar à propriedade com filhos para que também trabalhem para eles, segundo denunciou Justo Molina, presidente do Conselho de Capitães de Chuquisaca, quee defende os direitos dos guaranís.
Neste tempo, Rogelio começou ganhando três bolivianos (0,3 dólares) como vaqueiro ou cuidador de gado bovino. Para sustentar os seus 13 filhos conseguia um rendimento de 200 ou 150 bolivianos (cerca de 20 dólares ao mês): "Me descontavam algum arrozito, que lhes comprávamos, isso era anotado", diz, e recorda que os trabalhos domésticos realizados por sua esposa na fazenda nunca mereceram reconhecimento algum. "Nem um centavo, nunca lhe pagaram".
Os chamados "ajustes" são o resultado da soma na qual se incluem ítems como "progressos" ou "pedidos" de víveres para comer, pelo que geralmente resultam em saldos negativos para os empregados guaranís, pelo que terminam com dívidas em lugar de ganhos. E é que os termos trabalhistas que se conhecem obedecem a "arranjos" por um pagamento salário incompreensivelmente saldado uma vez ao ano. Situação que não só varia de acordo com a fazenda, senão de acordo com condições de género e etárias: as mulheres ganham menos metade que os homens, e os meninos e os idosos a maior parte das vezes não ganham nada. Fortunato Silva e Vitória Méndez, pais de oito filhos, por sua vez recebem por suas lidas um ou dois quilos de arroz na fazenda de Crispín Pérez, também localizada em Huacareta.
Em Chuquisaca, onde há mais casos de guaranís escravizados, assombrosamente reproduz-se uma situação que se acreditava desaparecida. É aí que há relatos de que os trabalhadores recebem chicotadas se não cumprem com a sua tarefa. Apesar de isto não ser generalizado, existem casos documentados com vídeos que provam que sim ocorrem. Alguns "cativos", inclusive, dormem em celeiros e não podem sair da fazenda. "Os patrões proíbem que as famílias que vivem nas suas fazendas se comuniquem com organismos e lhes restringem a educação ou as condições sanitárias mínimas", afirma Justo Molina, presidente do Conselho de Capitães de Chuquisaca, que denunciou a "violação dos direitos humanos" das numerosas pessoas que vivem na sua comunidade e explicou que 90 por cento desta população é analfabeta.
Precisamente, o analfabetismo é a principal causa da opressão dos latifundiários sobre os indígenas guaranís, já que, ao não saber ler nem escrever, não só estão impedidos de aceder ao conhecimento e informação sobre seus direitos, como também não podem exercer nenhum controle sobre as suas contas e livros de dívidas que são levados pelos patrões. Ao analfabetismo soma-se o desconhecimento dos seus direitos que lhes assiste e não lhes permite deliberar com os patrões as suas condições laborais, nem nenhuma outra situação que lhes afecte. As condições precárias de trabalho e — portanto — de vida das famílias guaranís submetidas a uma situação laboral marcada historicamente pelo abuso, pela servidão e pelo paternalismo, que as fez cativas em sua própria terra, são práticas ainda vivas no Chaco boliviano, como se o tempo, e a modernidade, nunca tivessem passado por essas terras.
Escravos desde a infância
A escravatura no Chaco também se estende aos meninos. As meninas começam como domésticas nas fazendas e depois ficam como cozinheiras, enquanto os meninos iniciam-se como moços de recados, isto é, realizam tarefas menores para os fazendeiros e depois, de adultos, trabalham a terra. Na maioria dos casos, não recebem pagamentos por seus trabalhos. A "criação" dos meninos implica o início precoce da lida nas fazendas, como Virginia Parar, filha de trabalhadores da propriedade Iguembito, em Chuquisaca, que começou de menina como doméstica e aos 15 anos tornou-se cozinheira. Um exemplo mais evidente é o de Rosi Silva, empregada da fazenda Voyguazú, de Juan Ortiz; ela e seu irmão menor foram "cedidos ao patrão": "Minha mamãe entregou-nos aos dois, meu irmão entendeu-se com o patrão e tem 12 anos". Ao ser consultada sobre se desejam sair da fazenda comentou, com ar de desesperança, que "ele também – igualmente a ela – quer sair mas não o deixam, ele quer estudar". E isto porque a escola está proibida para estas crianças, bem como sair das fazendas. A situação jurídica dos meninos e menores de idade é incerta, pois muitos encontram-se sujeitos aos patrões mediante estranhas ligações de familiares (de padrinhos).
Em muitos casos, os guaranís dirigem-se ao fazendeiro como "papi" ou "mami", e muitos deles, segundo estudos executados pela administração de Justiça, levam o apelido dos patrões. "Eu os criei, os pais deles morreram, e eles se entenderam com nós", explica Humberto López, proprietário da fazenda "El Vilcar", que assegura que essa é a razão de que tenha uma família de guaranís a seu serviço. As relações de servidão disseminam-se com as relações de parentesco: "Já me acostumei a eles (aos patrões) como papai, como mamãe, como abuelitos", comentou Eriberta Montes. "Aqui ficarei com os abuelitos (avós) até que eles morram", acrescentou resignada a guaraní que cresceu na fazenda e que agora tem seis filhos, que talvez sejam outro elo mais na cadeia perpetua de trabalho da sua mãe e dos seus avós.
No entanto, a amabilidade do trato entre empregador e empregado tem limites concretos, quando se vê o lugar onde Eriberta e seus pequenos dormem: num pátio traseiro da fazenda onde os couros de ovelha lhes servem de camas. Com o tempo o mundo dos meninos torna-se o dos adultos. Mas o mais assombroso, é que muitos latifundiários levam as meninas a partir de 7 anos às cidades e as fazem regressar à propriedade com filhos para que também trabalhem para eles, segundo denunciou Justo Molina.
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