terça-feira, 25 de março de 2014

CRISE NA UCRÂNIA EXPÕE DESINTEGRAÇÃO DA ORDEM MUNDIAL PÓS-GUERRA FRIA, DIZ PESQUISADORA

23 março 2014, Carta Maior http://www.cartamaior.com.br (Brasil)

Para Kadri Liik, pesquisadora do Conselho Europeu de Relações Exteriores, crise na Ucrânia expõe desintegração da ordem internacional pós-guerra fria.

Marcelo Justo

A incorporação da Crimeia à Rússia e a crise com o Ocidente põe em questão a ordem mundial que surgiu após a guerra fria. As sanções econômicas de Washington contra um grupo de dirigentes russos e a ameaça de uma ampliação por decreto contra setores chave da economia russa tiveram como resposta a proibição, pelo governo de Vladimir Putin, do ingresso de políticos dos EUA no país.

A União Europeia apoiou com mais retórica que músculo esta dinâmica devido a sua forte dependência energética da Rússia e a interesses financeiros. Um documento secreto do gabinete do primeiro ministro britânico David Cameron mostra as contradições expostas pela crise no interior da Europa. “O Reino Unido não deveria, no momento, respaldar sanções comerciais ou fechar aos russos o acesso ao centro financeiro de Londres”, diz o documento.

Em outras palavras, para além da retórica incendiária do chanceler britânico William Hague, os interesses econômicos têm prioridade.
Segundo a pesquisadora sênior da primeira fundação pan-europeia de análise internacional, o ECFR (Conselho Europeu de Relações Exteriores), Kadri Liik, da Estônia, a atual situação é fundamental para o futuro das relações internacionais. A Carta Maior conversou com Liik sobre esse tema.

Os Estados Unidos e a União Europeia exigem que Moscou recue na incorporação da Crimeia que decidiu se separar da Ucrânia em um referendo realizado recentemente. Há alguma possibilidade de que isso ocorra?
A única maneira de fazer a Rússia retroceder seria pela via militar, mas ninguém está disposto a fazer isso. Assim, penso que a Crimeia seguirá fazendo parte da Rússia porque tampouco há alguma via diplomática para mudar a atual situação.

Do ponto de vista legal, isso deixará a Crimeia em uma espécie de limbo diplomático no qual não é reconhecida por ninguém, mas faz parte da Rússia.

Os EUA disseram que ampliarão as sanções econômicas que contam com o apoio mais simbólico que efetivo da União Europeia que depende muito da Rússia em nível energético e até financeiro, como é o caso do Reino Unido. Que impacto terão essas sanções?
As sanções econômicas dirigidas contra indivíduos até o momento só provocaram uma resposta similar da Rússia. Mas ainda que seja certo que há uma forte interdependência econômica entre a União Europeia e a Rússia, as coisas podem mudar. Se os países chegarem a conclusão de que a Rússia representa uma ameaça para o sistema internacional, podem aceitar certos sacrifícios econômicos.

Dependerá de como avaliem a situação. O fato de que a União Europeia esteja pensando tão detalhadamente o que fará, pode ser uma indicação da falta de vontade política ou um sinal de que querem adotar sanções bem mais pesadas, de modo a causar impacto máximo na Rússia sem afetar a economia mundial.

Não ocorrerá o que se deu em outras crises mundiais onde, após certo tempo, há uma aceitação do novo status quo, ou seja, que prevaleça uma política de fato consumado?
Isso dependerá em grande medida da atitude da Rússia nas próximas semanas e meses. Se a Rússia invadir o leste da Ucrânia, algo que não podemos excluir como possibilidade dada a acumulação de tropas russas na fronteira, a situação se agravará muito e, muito provavelmente, o Ocidente tratará a Rússia como um inimigo. Não haverá guerra, mas ingressaremos em uma nova guerra fria. Se a Rússia se abstiver de uma intervenção no leste da Ucrânia, é mais difícil prever o que ocorrerá. Um cenário possível é que, como você diz, sem fatos novos no terreno, se possa produzir uma normalização da atual situação.

Vladimir Putin disse expressamente que a Rússia não tem nenhum interesse em outra zona da Ucrânia.
É certo, mas Putin disse antes que não tinha interesse na Crimeia, de maneira que sua palavra está um pouco desvalorizada. A Crimeia não era um objetivo em si mesmo para a Rússia, ainda que tivesse um valor sentimental. O objetivo estratégico real é controlar Kiev e evitar uma Ucrânia pró-OTAN ou pró-União Europeia. O problema é que a Rússia poderia ter atingido esse objetivo de maneira diplomática. O novo governo da Ucrânia é muito débil, não representa o conjunto da população e o próprio Ocidente estava interessado em acalmar a Rússia para que se chegasse a um acordo, de maneira que teria pressionado a Ucrânia nesta direção. Mas a Rússia decidiu anexar a Crimeia. Isso gera uma indagação a respeito da real intenção da Rússia.

Ao mesmo tempo e olhando desde a perspectiva russa, desde a desintegração da União Soviética no início dos anos 90, a Rússia se opôs a uma série de medidas da OTAN que considerou ameaçadoras para sua própria segurança. Nisso coincidiram líderes políticos russos muito distintos, desde Mikhail Gorbachev, passando por Boris Yeltsin e chegando a Vladimir Putin. Iniciativas como a proposta no ano passado para uma associação econômica da União Europeia com a Rússia foram descartadas pela própria UE. A União Europeia e o Ocidente não cometeram sérios erros que levaram a essa situação? 
Há uma forte corrente de opinião que pensa isso. Mas creio que há uma premissa perigosa aqui, que é pensar a situação como algo que diz respeito somente a Rússia e ao Ocidente, sem levar em conta que há países pequenos no meio que tem sua própria vontade e direitos. Na minha opinião, o motor da ampliação da OTAN e da União Europeia para o leste foi acionado pelos próprios países do leste europeu que podiam se apoiar na premissa pós-guerra fria de que cada nação tem o direito de decidir seus próprios assuntos. Ao mesmo tempo é certo que a União europeia cometeu muitos erros em nível diplomático. Não havia acordo interno sobre que estratégia seguir. Estabeleceu-se como condição a libertação incondicional da ex-primeira ministra Yulia Timoshenko, que não é nenhuma santa. Nada disso contribuiu para neutralizar a crise. Ao mesmo tempo, o que ocorreu nas ruas da Ucrânia mudou as coisas porque não se percebe entre os manifestantes um maior interesse de compromissos.

Seja como for, não chega a surpreender que a Rússia se sinta ameaçada por uma organização que nasceu para combater a União Soviética, como é a OTAN hoje que, além da “ameaça terrorista”, só pode justificar sua existência tendo a Rússia como inimiga. A OTAN não é ela mesma um entulho do passado?
É certo. Mas o problema é que os vizinhos da Rússia querem fazer parte da OTAN ou da União Europeia. A Rússia deveria se perguntar por que isso ocorre? Por que não querem fazer parte de uma organização vinculada com a Rússia.

Que impacto essa crise pode ter em nível internacional?
Se comparamos a situação atual com o conflito militar na Geórgia, em 2008, vemos que, naquele conflito, a Rússia tentou por todos os meios mostrar seu apego ao direito internacional. Neste caso, não. A Rússia tinha um plano muito claro a respeito do que queria fazer, o que explica a rapidez com que incorporou a Crimeia, mas ao mesmo tempo seus pretextos para fazê-lo foram muito pobres, quase como se não importasse que eles fossem críveis. O que marca esta diferença de atitude é que Moscou está desafiando as regras da ordem internacional pós-guerra fria que postulava entre outras coisas a inviolabilidade das fronteiras e a resolução pacífica dos conflitos.

É certo que o Ocidente também violou estas regras, seja por motivos supostamente mais elevados como o caso humanitário no Kosovo e o perigo de limpeza étnica, seja por motivos que se mostraram falsos como na invasão do Iraque. Na minha avaliação, a ordem internacional pós-guerra fria está se desintegrando. Isso pode ser um processo gradual, mas será turbulento e não sabemos o que o substituirá. Dependerá muito de como for resolvida essa situação na Ucrânia.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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