segunda-feira, 10 de março de 2014

ANGOLA: A BATALHA QUE PÔS FIM AO APARTHEID

5 janeiro 2014, Vermelho http://www.vermelho.org.br (Brasil)

O general Magnus Malan escreve nas suas memórias que a campanha foi uma grande vitória para as forças de defesa da África do Sul (SADF), mas a opinião de Nelson Mandela não podia ser mais diferente: "Cuito Cuanavale marcou a viragem da luta de libertação do meu continente e do meu povo contra o flagelo do apartheid".

Por Piero Gleijeses*, no Diário.Info

"Nós não lutamos nem pela glória nem pelas condecorações, nós lutamos pelas ideias que consideramos justas". -- Fidel Castro

O debate acerca do significado de Cuito Cuanavale foi intenso, em parte porque os principais documentos sul-africanos relativos a esta operação foram classificados. Todavia, pude consultar os documentos dos arquivos cubanos, bem como os documentos dos Estados-Unidos. Apesar do fosso ideológico que separa Havana e Washington, estes documentos fascinam pela sua semelhança.

Examinemos os fatos. Em julho de 1987 o exército angolano (FAPLA) lança uma ofensiva de grande envergadura no sudeste de Angola contra as forças de Jonas Savimbi. Constatando que esta operação se desenvolvia com sucesso, as SADF que controlavam as zonas mais meridionais do sudoeste do país intervieram no sudeste. No início do mês de novembro, as SADF tinham cercado as melhores unidades angolanas na aldeia de Cuito Cuanavale e preparavam-se para as destroçar.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas exigia a retirada incondicional das SADF de Angola, mas a administração Reagan encarregou-se de agir de forma a que esta exigência fosse entendida como mais uma resolução a não ser respeitada.

O secretário de Estado adjunto encarregado de África, Chester Crocker, assinalou ao embaixador dos EUA na África do Sul: "A resolução não exige sanções e não prevê qualquer assistência a Angola. Isto não se verifica por acaso, é fruto dos nossos esforços para manter a resolução dentro de certos limites".
(1) Entretanto, as SADF aniquilariam as unidades de elite das FAPLA.

No início de 1988, fontes militares sul-africanas e diplomáticas ocidentais garantiam que a queda de Cuito estava iminente. O que constituiria um golpe demolidor para o governo angolano.

Mas em 15 de novembro de 1987 o presidente cubano Fidel Castro tinha decidido reforçar o envio de tropas e de armamento para Angola: os seus melhores pilotos equipados dos melhores aviões, as suas armas antiaéreas e os seus tanques mais modernos. A intenção de Fidel Castro era não apenas defender Cuito, mas desembaraçar de uma vez por todas o sul de Angola das SADF.

Fidel exporia mais tarde a sua estratégia ao líder do Partido comunista sul-africano Joe Slovo: "Cuba deteria a ofensiva sul-africana e atacaria em seguida numa outra direção, "como o boxeador que mantém o seu adversário à distância com a mão esquerda, antes de golpear com a mão direita". (2)

Os aviões e 1.500 soldados cubanos foram reforçar os angolanos, e Cuito não caiu. Em 23 de março de 1988, os sul-africanos lançaram o seu derradeiro assalto de envergadura contra Cuito. Como assinala o coronel Jan Breytenbach, a ofensiva sul-africana "foi abrupta e definitivamente detida" pelas forças cubano-angolanas.

A mão direita de Havana preparava-se para golpear. Poderosas colunas cubanas progrediam no sudoeste de Angola em direção à fronteira da Namíbia. Os documentos que poderiam esclarecer-nos acerca do que os dirigentes sul-africanos pensavam desta ameaça permanecem classificados. Mas sabe-se o que fizeram as SADF: cederam terreno. Os serviços de informações dos Estados-Unidos explicaram que os sul-africanos se retiravam porque ficaram impressionados pela rapidez e a potência da progressão dos cubanos, e porque consideravam que um combate de maior envergadura "comportaria grandes riscos". (3)

Quando era criança, na Itália, ouvi o meu pai falar da esperança que tinham alimentado em dezembro de 1941 quando ouviram na rádio que as tropas alemãs tinham sido obrigadas a se retirar da cidade de Rostov-sobre-o-Don. Era a primeira vez em dois anos de guerra que o "super-homem" alemão era obrigado a se retirar. Recordei-me das suas palavras – e do grande sentimento de esperança que elas suscitavam – quando li a imprensa sul-africana e namibiana em meados de 1988.

Em 28 de maio de 1988, o chefe das SADF anunciava que as "forças cubanas e da SWAPO, fortemente armadas e operando conjuntamente pela primeira vez, avançaram para sul a uns sessenta quilômetros da fronteira com a Namíbia". Em 26 de junho, o administrador geral sul-africano na Namíbia reconhecia que MiG-23 cubanos sobrevoavam território namibiano: uma alteração dramática naqueles tempos em que as SADF dominavam os céus. Acrescentava que "a presença dos cubanos tinha provocado uma onda de ansiedade na África do Sul".

Todavia, estes sentimentos de ansiedade não eram partilhados pela população negra da África do Sul, que descortinava uma luz de esperança na retirada das forças sul-africanas.

Enquanto as tropas de Fidel Castro avançavam em direcção à Namíbia, cubanos, angolanos, sul-africanos e norte-americanos confrontavam-se à mesa das negociações, com dois pontos-chave na ordem do dia: a aceitação pela África do Sul da implementação da Resolução 435 do Conselho de Segurança sobre a independência da Namíbia, e um acordo entre as partes sobre um cronograma de retirada das tropas cubanas em Angola.

Os Sul-africanos pareciam cheios de esperança: o ministro dos Negócios estrangeiros Pik Botha pensava que a Resolução Nº 435 não acarretaria qualquer alteração. O ministro da Defesa Malan e o presidente P.W. Botha afirmavam que a África do Sul só se retiraria de Angola "se os Russos e os seus fantoches fizessem o mesmo". Não faziam sequer menção à retirada das suas tropas da Namíbia. Em 16 de março de 1988, Business Day anunciava que Pretoria "propunha retirar-se para a Namíbia - e não da Namíbia - em troca de uma retirada das tropas cubanas em Angola". Por outras palavras, a África do Sul não tinha qualquer intenção de se retirar num futuro próximo.

Mas os Cubanos tinham invertido a situação no terreno, e quando Pik Botha apresentou as exigências sul-africanas, Jorge Risquet, que dirigia a delegação cubana, foi implacável: "Já passou a época das aventuras militares, das agressões impunes, dos vossos massacres de refugiados". A África do Sul, declarou, "age como um exército vitorioso quando o que ela é verdadeiramente é um agressor derrotado e empenhado numa retirada discreta. A África do Sul deve compreender que não obterá nesta mesa de negociações aquilo que não pôde obter no campo de batalha". (4)

No final da rodada de conversações no Cairo, Crocker enviou uma mensagem ao secretário de Estado George Shultz explicando-lhe que as negociações tinham tido "como pano de fundo a tensão militar crescente provocada pelo avanço das tropas cubanas fortemente armadas estacionadas no sudoeste de Angola em direção à fronteira namibiana. A progressão dos cubanos no sudoeste de Angola a criou uma dinâmica militar imprevisível". (5)

A grande questão era: iriam os cubanos deter-se na fronteira ? Para obter uma resposta a esta interrogação, Crocker contactou Risquet.

"Tem Cuba a intenção de deter as suas tropas na fronteira entre a Namíbia e Angola?"

Risquet respondeu: "Se eu lhe dissesse que não se deterão, poderia ser interpretado como uma ameaça. E se lhe dissesse que se deterão, seria como ministrar-lhe um tranquilizante, e não quero nem ameaçar-vos nem acalmar-vos. O que eu disse é que apenas os acordos sobre a independência da Namíbia podem oferecer garantias". (6)

No dia seguinte, 27 de junho de 1988, MiG cubanos atacaram posições das SADF perto da barragem de Calueque, a 11 quilômetros a norte da fronteira da Namíbia. A CIA informa que: "a eficácia com que Cuba utilizou a sua força aérea e a aparente fraqueza das defesas antiaéreas de Pretoria" confirmavam que Havana tinha alcançado a superioridade aérea no sul de Angola e no norte da Namíbia. Algumas horas depois do ataque vitorioso dos Cubanos, as SADF destruíram uma ponte na proximidade de Culueque, sobre o rio Cunene. Destruíram-na - segundo a CIA - "para tornar mais difícil a passagem da fronteira pelas tropas cubanas e angolanas, e para diminuir o número de posições a defender". (7)

Nunca fora tão real o perigo de uma progressão cubana em direção à Namíbia.

Os últimos soldados sul-africanos deixaram Angola a 30 de Agosto, quando as negociações sobre o cronograma da retirada das tropas cubanas ainda não tinham sequer começado.

Apesar de todos os esforços de Washington, Cuba mudou o curso da História na África austral. O próprio Crocker reconheceu o papel de Cuba ao assinalar, numa mensagem enviada a Shultz a 25 de agosto de 1988: "descobrir o que pensam os cubanos é quase uma arte. Estão tão bem preparados para a guerra como estão para a paz. Fomos testemunhas de um grande refinamento táctico e de uma genuína criatividade à mesa das negociações. Isto tem por pano de fundo as invectivas de Castro e a movimentação sem precedentes de soldados sobre o terreno". (8)

As proezas dos cubanos sobre o campo de batalha e o seu virtuosismo à mesa das negociações revelaram-se decisivas para pressionar a África do Sul a aceitar a independência da Namíbia. A sua defesa vitoriosa de Cuito Cuanavale foi o prelúdio de uma campanha que obrigou as SDAF a sair de Angola. Esta vitória teve repercussões para além das fronteiras da Namíbia.

Numerosos autores - Malan não é senão um exemplo - tentaram reescrever esta história, mas os documentos norte-americanos e cubanos informam acerca daquilo que realmente se passou. Esta verdade foi exposta com eloquência por Thenjiwe Mtintso, embaixadora da África do Sul em Cuba, em dezembro de 2005: "A África do Sul tem hoje numerosos novos amigos. Ontem, esses amigos tratavam os nossos dirigentes e os nossos combatentes de terroristas, e perseguiam-nos nos seus países ao mesmo tempo que apoiavam a África do Sul do apartheid. Nos dias de hoje, esses mesmos amigos querem que acusemos e isolemos Cuba. A nossa resposta é muito simples: É o sangue dos heróis cubanos e não o dos nossos novos "amigos" que irriga a terra africana e a árvore da liberdade da África do Sul".

Este artigo foi escrito há 5 anos, por ocasião do 20º aniversário da batalha. Este ano marcará o 25º aniversário do início da batalha de Cuito Cuanavale no sudeste de Angola, onde as forças armadas da África do Sul de apartheid se defrontaram com o exército cubano e as forças angolanas.

*Piero Gleijeses é politólogo e historiador italiano, professor de política externa dos Estados-Unidos na Escola de estudos internacionais avançados (SAIS) da Universidade Johns Hopkins, Estados-Unidos.

Fonte: DIário.Info, a partir da versão francesa do Granma
     

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