16 ago 2019, 06h45, Revista Veja (Brasil)
https://veja.abril.com.br/politica/os-prejuizos-do-capitao-motosserra/
Por Eduardo Gonçalves e Edoardo Ghirotto
As bravatas do presidente e as ações do governo em temas como o desmatamento da Amazônia arranham a imagem do país e podem gerar perdas na economia
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Protesto na embaixada brasileira em Londres: país na posição
de
novo vilão ambiental (Peter Nicholls/Reuters)
Dia sim, outro também, o meio ambiente
tem sido um dos alvos prediletos da verborragia de Jair Bolsonaro, que parece
se divertir deixando boa parte do mundo arrepiada com suas ideias — exceto, é
claro, a tropa radical de seguidores que enxerga em qualquer pessoa dotada de
alguma preocupação ecológica um comunista enrustido ou um inimigo do progresso
do Brasil. Implacável no discurso, o “Capitão Motosserra”, como ele mesmo
passou a se definir, vem distribuindo golpes contra o bom-senso, a lógica e os
interesses econômicos do país, que supostamente deveria preservar. Para os que
ousaram criticar sua ideia de transformar Angra dos Reis na “Cancún
brasileira”, por exemplo, o presidente disse que quem se importava com isso
eram “os veganos que comem só vegetais”. Sobre a fiscalização ambiental, já
falou em “segurar” multas ambientais e “fazer uma limpeza” no Ibama, o órgão de
controle no setor. Defrontado com evidências da aceleração do desmatamento da
Amazônia, como bom pupilo de Olavo de Carvalho, chamou os dados científicos de
mentirosos e
ironizou as preocupações. No último dia 8, proferiu uma pérola
escatológica ao responder a um repórter como seria possível conciliar o
desenvolvimento econômico com a preservação do planeta: “É só fazer cocô dia
sim, dia não”, declarou.
Se ficassem apenas no campo da
retórica, situações assim teriam apenas o efeito de aumentar a extensa lista de
declarações folclóricas do presidente. O problema é que tais bravatas já se
materializam em políticas do governo. No caso de Angra dos Reis, iniciou-se um
mapeamento para avaliar as ações necessárias à criação da “Cancún brasileira”.
A promessa de passar o facão no Ibama também tem sido cumprida. De janeiro a
abril deste ano, o número de operações de fiscalização contra o desmatamento
promovidas pelo órgão caiu 58% em comparação ao mesmo período do ano passado,
segundo dados do Observatório do Clima.
Delicada e tratada com toda a
seriedade que o assunto merece, a questão ambiental apavora a comunidade
internacional. Na visão de alguns analistas, a política atual de Bolsonaro para
o setor pode transformar o Brasil no novo inimigo ambiental do planeta (um
título nada positivo). Até mesmo a China, a atual vilã número 1, vai na direção
contrária, pelo menos tentando se comportar de forma mais responsável. Com o
impulso das declarações do presidente e o afrouxamento dos controles
ambientais, o Brasil virou o novo centro das preocupações no exterior. Em
editorial recente, a revista inglesa The Economist sugeriu que o
desmatamento não autorizado da Amazônia poderia prejudicar os fazendeiros
brasileiros se levasse a um boicote estrangeiro de produtos. A Foreign
Policy, uma das mais respeitadas publicações sobre relações internacionais
no mundo, trouxe um artigo de Stephen M. Walt, um professor da Harvard, cujo
título original era o seguinte: “Quem vai invadir o Brasil para salvar a
Amazônia?”.
Exageros à parte, o boicote a produtos
brasileiros é uma ameaça real. Diplomatas do país relatam, em condição
reservada, que já ouviram o mesmo lobby sendo feito por diretores de ONGs em
representações na Europa. A questão chegou a ser debatida entre embaixadores do
Velho Continente quando o Brasil ameaçava deixar o Acordo do Clima de Paris
antes do início do governo Bolsonaro. A repercussão negativa nos bastidores fez
com que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, adotasse postura mais
comedida, indo na direção contrária do próprio presidente e do chanceler
Ernesto Araújo, que defendiam expressamente o rompimento do pacto. O
comportamento pode pôr em risco ainda o esforço de duas décadas feito para
desenhar o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. O
trabalho precisa ser ratificado pelo Poder Legislativo de todos os países
signatários, e o cumprimento de cláusulas ambientais terá um peso grande.
Uma primeira sinalização dos riscos
que o Brasil corre veio nesta semana, com o congelamento de um financiamento de
155 milhões de reais que a Alemanha destinava a projetos de preservação da
Amazônia, em protesto contra o avanço do desmatamento. Após Bolsonaro dizer que
não precisava do aporte alemão, a ministra do Meio Ambiente do país europeu,
Svenja Schulze, afirmou que a declaração era um indicativo de que sua Pasta
havia atuado de forma correta. Ricardo Salles entrou em campo para tentar
reverter o mal-estar e recuperar o investimento (veja a entrevista). Na última quarta, 14, porém, o
Capitão Motosserra desferiu outro golpe, sugerindo que a chanceler alemã,
Angela Merkel, utilize a verba negada ao Brasil para “reflorestar a Alemanha”.
Na quinta 15, foi a vez de a Noruega congelar o repasse de 133 milhões de reais
para o Fundo Amazônia.
Até aqui, os únicos que estão no lucro
com o descaso ambiental são os garimpeiros e madeireiros que atuam na
ilegalidade. “Eles estão se sentindo empoderados”, relatou a VEJA um dos
agentes do Ibama. Em abril, Bolsonaro desautorizou uma ação do órgão, que,
conforme manda a lei, incendiou dois caminhões e um trator de desmatadores
ilegais na floresta de Jamari, em Rondônia. “Não é para queimar nada”, afirmou
o presidente, acrescentando que mandaria abrir procedimento administrativo
contra os funcionários envolvidos. Em julho, fiscais foram cercados por parte
da população ligada às serrarias de Placas, no Pará, onde havia uma área de
derrubada ilegal. Uma ponte da Transamazônica chegou a ser incendiada com
pneus, e os funcionários tiveram de procurar abrigo em uma delegacia. No mesmo
mês, Ricardo Salles visitou a região de Espigão do Oeste, em Rondônia, dias
após uma ocorrência gravíssima. Homens encapuzados e armados pararam um
caminhão-tanque do Ibama, espancaram o motorista e atearam fogo ao veículo. “O
que acontece hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e anos e anos
de uma política pública da produção de leis, regras, regulamentos, que nem
sempre guardam relação com o mundo real. O que estamos fazendo agora é
justamente aproximar a parte legal do mundo real”, declarou Salles na ocasião,
aplaudido pelos madeireiros.
Em meio à ação, os agentes do Ibama
descobriram 10 000 metros quadrados de toras de madeira sem origem — ou seja, ilegais.
O lote encontra-se até hoje sob embargo do órgão. No último dia 8, o
vice-prefeito da cidade, Waltinho Lara (PSDB), que é ligado aos madeireiros
locais, tentou liberar o material. “Foi acordado com o ministro. Está parecendo
uma afronta muito grande”, disse ele a uma fiscal, referindo-se a Ricardo
Salles, em uma gravação obtida por VEJA. Como a agente não cedeu ao apelo, Lara
elevou o tom: “Pode acontecer algo pior, estou avisando”. Até a quinta 15, as
madeiras continuavam no mesmo lugar. Servidores do Ibama estão movendo um
processo de assédio moral contra o ministro do Meio Ambiente, acusando-o de
criar um retrocesso ambiental e dificultar o bom funcionamento da fiscalização.
Salles diz que tudo não passa de um complô dos funcionários que não querem
trabalhar direito. Com base em documentos obtidos por meio da Lei de Acesso à
Informação, uma reportagem publicada no dia 14 pelo jornal O Globo
mostrou que, desde que assumiu o posto, o ministro deu carona a dez deputados e
senadores da bancada ruralista em voos de aeronaves da FAB. Nenhum parlamentar
ambientalista recebeu o mesmo agrado no período. Entre os caronas de Salles, o
mais proeminente é o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente
Parlamentar da Agropecuária (não exatamente o lado mais moderno e iluminado do
agronegócio). Em janeiro, ele entregou ao ministro um texto com treze pontos de
interesse. Os principais eram projetos de lei para flexibilizar o licenciamento
e as multas ambientais. Um deles — a criação de núcleos de conciliação para
reduzir o número de infrações aplicadas — entrou em vigor nesta semana.
Não é de hoje que a política
ambientalista do Brasil tem problemas. Enquanto se faz vista grossa a ações de
madeireiros e garimpeiros, há um cipoal burocrático que dificulta a vida de
quem tem a intenção de produzir legalmente ou aposta no crescimento do país.
Não raro, importantes obras de infraestrutura ficam paradas para que os
ambientalistas decidam o que fazer com espécies raras encontradas no meio do
caminho. A questão é que nem todos os casos de defesa do meio ambiente são
exageros de “esquerdistas”. Em muitas situações, as acusações de agressão
também exageram na histeria. No mês passado, por exemplo, o Brasil foi colocado
nas cordas novamente, pois teria permitido que garimpeiros invadissem uma
reserva indígena em Roraima e assassinassem um cacique. Como de hábito, o caso
ganhou rapidamente manchetes internacionais. Parecia uma consequência lógica da
política de Bolsonaro. O presidente já manifestou a intenção de abrir esses
territórios à exploração de mineradoras internacionais para criar “mini-Serras
Peladas”. Ocorre que, até agora, não se sabe exatamente a causa da morte do
cacique. A investigação também não conseguiu encontrar vestígios de invasores.
O que se sabe, como alertou o colunista Elio Gaspari em artigo em O Globo
e na Folha de S.Paulo, é que nenhuma mineradora internacional colocará
dinheiro no Brasil se sonhar com uma manifestação de índios em frente a sua
mina. As grandes corporações, que obedecem às leis de compliance de organismos
e fundos internacionais (dos quais recebem recursos), não arriscam sua
reputação — e investimentos — em situações dessa natureza.
Espremidos entre essas posições
radicais, os produtores responsáveis do agronegócio começam a se preocupar
seriamente com os prejuízos que podem aparecer no campo. “Imagine o que pensa o
sujeito que mora em Nova York, acorda no domingo de manhã e vê uma foto na capa
do jornal sobre a Amazônia pegando fogo. É um choque tremendo”, afirma Roberto
Brant, presidente do Instituto CNA, braço da Confederação da Agricultura e
Pecuária (CNA). Aos poucos, começam a surgir sinais do setor para se descolar
do radicalismo. A Marfrig, gigante do mercado de proteína animal, tem veiculado
anúncios em que se diz preocupada com a preservação da floresta e que rechaça
fornecedores que não respeitam áreas protegidas. Presidente da Suzano, a maior
produtora de celulose do mundo, Walter Schalka foi aplaudido em um evento nesta
semana ao dizer que o empresariado precisa aumentar a voz e não permitir o
desmatamento da Amazônia.
São tentativas de evitar que a postura
do governo federal destrua a imagem positiva que o setor construiu ao longo dos
últimos quinze anos no exterior. O respeito à floresta, o uso intensivo de
tecnologia e o aprimoramento das técnicas elevaram substancialmente a
produtividade nos últimos quarenta anos — seu crescimento foi de 412% no
período, enquanto a área plantada aumentou apenas 68%. O compromisso com
práticas de boa conduta ambiental também evoluiu. Uma das iniciativas foi a
formação da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que estabelece uma
parceria do setor privado com entidades do terceiro setor para garantir o
cumprimento do Código Florestal, sobretudo no que diz respeito ao começo da execução
dos programas de recuperação ambiental previstos desde a aprovação da lei, em
2012. “Qualquer país que se afaste do compromisso de um meio ambiente saudável
estará dando um tiro no pé”, afirma Carlos Nobre, pesquisador do IEA-USP.
Tal raciocínio baseia-se
fundamentalmente na questão econômica. Estudos conduzidos por Bernardo
Strassburg, do Instituto Internacional para Sustentabilidade, mostram que as
áreas de conservação geram lucro consideravelmente maior do que se fossem
aproveitadas como terras de plantio ou pasto. De acordo com os cálculos, cada
hectare preservado da Amazônia garante 3 500 reais por ano. Se o mesmo terreno
virar pasto, o valor cairá para uma faixa entre 60 e 100 reais. A conta é
baseada nos serviços ecossistêmicos que as áreas prestam à própria sociedade
brasileira, como o fornecimento de água, a polinização e as capacidades do solo
preservado. “Não adianta se fechar num casulo e brigar com os números”, alerta
Brant, da CNA. “A preocupação mundial com a Amazônia existe, e não vamos poder
calar isso. Temos de agir diante do que estamos vendo.”
A ação precisa ser mesmo imediata,
pois, em um piscar de olhos, os tratores abrem caminho de forma ilegal. É o
caso de uma área de quase 500 hectares (5 quilômetros quadrados) em Rio Sono, no
Tocantins, que foi desmatada sem autorização entre janeiro e março deste ano. A
região da cidade, caracterizada pelo cerrado, está localizada nas cercanias do
Parque do Jalapão e era considerada uma das mais bem preservadas de todo o
estado. Imagens de satélite mostram que a área registrou um dos maiores alertas
consolidados neste ano pela plataforma MapBiomas, que cruza dados do Deter, o
sistema de monitoramento utilizado pelo Inpe, com informações fundiárias e de
fiscalização. “Historicamente essa região apresentava pouco desmatamento, mas
parece estar despontando como uma nova fronteira”, diz a diretora de ciência do
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar. Pela análise
das imagens, captadas em quatro propriedades, Alencar afirma que a vegetação
foi convertida em uma área para o agronegócio, mas que ainda não ocorreu
plantio no local. “Pelo tipo, parece ser soja”, explica. VEJA mostrou as
imagens a outro especialista na região, que, em anonimato, chamou atenção para
as leiras de limpeza características de plantações de soja. No município, há
aumento na procura de terras para o cultivo de grãos. Os preços baixos, de
15 000 a 18 000 reais por alqueire, têm atraído produtores de fora. Enquanto
poucos vão lucrar, o Brasil inteiro sai perdendo. Está na hora de o governo
escolher o lado certo nessa luta — o da racionalidade.
Colaborou Leonardo Lellis
Publicado em
VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº
2648
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