Cabe agora refletir não apenas sobre o significado e efeitos da decisão final adotada, mas também sobre o grau de compreensão(ou incompreensão) do Tribunal sobre a temática indígena
Rosane Lacerda
1 abril 2009/Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br
Após anos de espera, chegou ao fim, em 19 de março, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O caso foi, sob diversos aspectos, um marco na história das decisões da Corte. Cabe agora refletir não apenas sobre o significado e efeitos da decisão final adotada, mas também sobre o grau de compreensão (ou incompreensão) do Tribunal sobre a temática indígena. É a respeito desta última questão que trata o presente artigo.
A histórica negação da alteridade
Para o antropólogo François Laplantine, as descobertas feitas pelos viajantes europeus no século XVI relativas ao continente americano e seus habitantes, fizeram emergir uma “dupla resposta ideológica” da visão do ocidental sobre os indígenas: ora o “bom selvagem” a ser protegido e convertido, ora o selvagem perigoso a ser combatido e escravizado. Essa dupla visão teria o seu momento crucial em 1550, nos debates entre o bispo Bartolomé de Las Casas e o jurista Ginés de Sepúlveda. De um lado, a visão dos índios como aptos à cristianização e ao serviço de Sua Majestade. Do outro, a certeza de que seriam inferiores, devendo ser combatidos pela espada e escravizados.
Esta dupla resposta ideológica atravessou séculos, revelando a incapacidade do mundo ocidental em perceber a alteridade: os indígenas não seriam vistos e respeitados em suas distintas maneiras de ser e viver. Seriam tratados como humanos ou inumanos, capazes ou incapazes, aliados ou inimigos, a partir da sua correspondência – ou não, às expectativas e necessidades da metrópole. Tal lógica se reproduziu na modernidade com o surgimento dos estados nacionais, onde os indígenas passaram a símbolo da contribuição primeira para o surgimento de uma identidade nacional comum.
No Brasil, com a Independência (1822) e posteriormente com a República (1889), eles passaram a integrar o mito fundador da brasilidade: seriam os “primeiros brasileiros”, e por este motivo (só por este motivo), dignos de respeito e admiração. Ao mesmo tempo, os que resistissem à liberação, para a implantação de novos projetos de colonização, das terras que lhes restaram, desciam à categoria de inimigos da pátria.
A proteção tutelar rondoniana iniciada em 1910 com o Serviço de Proteção ao Índio, ao argumento de “fazer do índio um índio melhor”, se contrapôs às propostas de extermínio então veiculadas. Mas a proteção justificava-se não no respeito à alteridade, e sim no suposto dever moral do não-índio em proporcionar-lhes a oportunidade de deixarem sua condição “primitiva”. Um projeto político calcado na suposta segurança de uma homogeneidade étnica e cultural. Fazer do índio um índio melhor era transformá-lo em brasileiro comum, pequeno agricultor, trabalhador rural e, de preferência, um conscrito protetor das fronteiras. Aos índios, tidos como culturalmente incapazes de discernimento, era dado o “direito” de corresponder a tais expectativas.
A perspectiva evolucionista que marcou o positivismo filosófico e político no trato com os indígenas no início da República andava de braços com o evolucionismo e o colonialismo das primeiras teorias antropológicas. Os indígenas estariam nos estágios iniciais de uma escala evolutiva cujo ápice era o modelo ocidental de progresso.
A partir da década de 1970, sobretudo com a Declaração de Barbados, a Antropologia veio a rever, de modo mais comprometido com as transformações da realidade social, os seus conceitos sobre essa posição inferiorizada. Expressões como “tribo”, “aculturação”, “silvícolas”, “primitivos”, pela sua relação com o evolucionismo, caíram em desuso. No final da década de 1980 concluiu-se que a “integração”, como resquício da dominação colonial, deveria ser substituída pelo respeito às diferenças.
Tais mudanças refletiram-se em instrumentos internacionais de proteção a minorias étnicas, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, e nos paradigmas da CF/88 em relação aos indígenas. A idéia básica ali conquistada é o reconhecimento do direito às suas identidades próprias, e o respeito às suas formas de organização sócio-cultural, independentemente do grau de contato estabelecido com a sociedade regional, ou dos processos de mudança cultural vivenciados.
No STF, o avanço que não houve
No contexto dos 20 anos da Constituição “Cidadã”, e tendo em vista os avanços da Antropologia contemporânea e o acúmulo de mais de 30 anos de lutas do movimento indígena, aguardava-se do STF, no caso Raposa Serra do Sol, uma posição no mínimo à altura do seu tempo em termos de reconhecimento da alteridade indígena. Em linhas gerais, contudo, não foi o que ocorreu. Apesar de reconhecer a demarcação, o STF mostrou-se apegado a conceitos ultrapassados e menos disposto a mudanças, do que os indígenas que com freqüência são apontados como de mentalidade atávica, imutável.
É bem verdade que o voto do Relator, ministro Ayres Britto, ao manifestar-se favoravelmente à demarcação, ofereceu passagens significativas em termos de percepção da riqueza cultural daqueles povos, de sua relação com a terra e o meio-ambiente, e de suas contribuições históricas à defesa do território brasileiro na fronteira. Contudo, predominou no conjunto aquela dupla resposta ideológica: ou os indígenas são vistos como em condições de satisfazer às expectativas de um projeto político nacional de matriz positivista (ou seja, evolucionista, integracionista) – sendo assim considerados merecedores de respeito –, ou são uma ameaça à soberania nacional por não compatibilizarem, com aquele, os seus projetos próprios de vida.
Assim, os votos apelavam ao espírito de brasilidade dos indígenas como condição para o gozo dos direitos territoriais constitucionalmente reconhecidos. Não que não sejam de fato e de direito, cidadãos brasileiros. Mas a insistência na tal brasilidade se fazia soar menos como reconhecimento, e mais como advertência.
Conceitos há muito em desuso como “primitivos” (pouco evoluídos), “silvícolas” (das selvas), “aculturados” (sem a cultura ancestral), “tribais” (sociedade rústica), e “integração” (evolução pelo ingresso n’outra forma de vida), foram utilizados sem qualquer preocupação com sua correção científica. Assim, a idéia de aculturação exposta no voto do ministro Ayres Britto (ironicamente o mais substancialmente favorável aos direitos indígenas), como uma adaptação por “vontade livre e consciente” (§77), sem perdas culturais para os índios, há tempos foi objeto de revisão crítica pela Antropologia. Contrariando a mudança paradigmática da CF/88 o relator chegou a afirmar (§78) que a mesma “busca integrar os nossos índios” para que possam se beneficiar “de um estilo civilizado de vida que é tido como de superior qualidade”.
O mesmo tipo de compreensão embasou o voto contrário do ministro Marco Aurélio, para quem a integração teria levado aos índios enormes benefícios, como os que resultaram de medidas do Marquês de Pombal no século XVIII: “voltado à miscigenação, e estimulando-se o estabelecimento de relação carnal e sentimental entre portugueses e índias”, tal política teria resultado no “avanço intelectual de descendentes de índios”, como os ex-governadores Amazonino Mendes e Gilberto Mestrinho (!).
Idéias equivocadas como “preservação” e “isolacionismo” foram também utilizadas. Enquanto para o Relator a demarcação levaria a “mais eficazmente poderem preservar” a sua identidade, para o ministro Aurélio ela significaria o seu “isolamento”. Repetem-se aí dois jargões que indigenistas e antropólogos há muito combatem.
Nunca foram reivindicadas pelos povos indígenas e seus aliados, na Constituinte (87/88) ou em período posterior, quer o isolamento, quer a preservação (congelamento) cultural. Prova disso é a participação das organizações indígenas nos fóruns locais, regionais e nacionais por políticas públicas de respeito à diversidade. Neste sentido chega a ser desrespeitosa (além de desinformada) a afirmação do ministro Aurélio de que “a demanda dos índios é por postos de saúde e não pela volta do pajé”. O que se conquistou na CF/88 não foi a “preservação”, mas o direito ao respeito; não foi o “isolamento”, mas o direito à privacidade – assim como no lar de qualquer brasileiro.
Preocupante também a negação, em seu voto-vista (p.53), da dívida histórica do país para com indígenas e quilombolas: “Que a visão romântica, calcada em resgate de dívida caduca (!) – e porque não falar dos quilombolas –, seja alijada deste julgamento”, disse o ministro. Por estes e outros graves equívocos (como as 18 condições propostas pelo ministro Menezes Direito, muitas atropelando o processo legislativo em curso no Congresso Nacional), o STF perdeu uma histórica oportunidade de, no seu conjunto, se por à altura dos profundos avanços trazidos pela Constituinte, de um relacionamento com os povos indígenas fundado no respeito à alteridade.
Rosane Lacerda é advogada, Mestre em Direito pela UnB, professora universitária e integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito, daquela universidade. É também autora do livro “Os Povos Indígenas e a Constituinte”, publicado em 2008 pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/a-visao-do-stf-sobre-os-indigenas-algo-a-comemorar
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