30 junho 2011/Resistir.info http://www.resistir.info
por Cristina Nogueira [*]
Apresentar uma obra não é fácil. Sobretudo quando aquela que a apresenta não tem outros créditos para além de ser uma leitora atenta dos escritos do autor. Ainda se torna mais difícil se o que une a apresentadora ao autor para além da amizade é uma enorme admiração.
Obra e autor são indissociáveis, e neste livro o Miguel transparece como o grande pensador que é, profundo conhecedor dos problemas da América Latina, do Médio Oriente e com uma reflexão acutilante sobre o caminhar da história e sobre o mundo em que vivemos neste século XXI. Um mundo de profunda crise do capitalismo, que o autor caracteriza, clarifica, esclarece e interpreta sempre com a certeza inabalável de que existe uma outra alternativa: o socialismo. "Um socialismo de contornos ainda imprevisíveis, sem um figurino único, que será o desfecho da luta dos povos", como refere o autor na introdução a este livro.
É comum o Miguel ser apresentado como jornalista, direi mesmo como um grande jornalista, e de facto dedicou grande parte da sua vida ao trabalho jornalístico quer no Brasil, onde foi editorialista de O Estado de S. Paulo, quer em Portugal onde dirigiu o jornal O Diário que ainda hoje é "a verdade a que temos direito" que tanta falta nos faz, mas o Miguel chegou-me a dizer que "não se sente jornalista" e eu considero que apesar de o jornalismo dever muito ao Miguel ele é muito mais do que um simples jornalista. O Miguel é um homem que pela sua cultura e pela reflexão sistemática dos problemas da Humanidade, pelo conhecimento da história, da geografia, da filosofia, da sociologia é acima de tudo um pensador. Um pensador revolucionário. Alguém, cuja reflexão sobre o mundo contemporâneo é fundamental para compreendermos a situação actual de crise do capitalismo que atravessamos e os caminhos que se lhe poderão seguir.
A obra do Miguel é vasta e acima de tudo heterogénea. O ensaio, o romance, o conto, os artigos e as crónicas. Julgo que apenas não se aventurou a escrever teatro ou poesia, apesar de muito do que escreve ter laivos poéticos. Neste livro o autor selecciona um conjunto vasto de artigos e comunicações que ao longo dos últimos dez anos publicou nas revistas on-line resistir.info e odiario.info, no jornal Avante! e na revista O Militante e comunicações apresentadas em Seminários e Conferências Internacionais, nos Fóruns Sociais Mundial, Europeu e Português e nos Encontros de Serpa.
Lendo "Tempo de Barbárie e Luta" ficamos com um retrato do mundo nestes últimos dez anos. O início do século XXI está aqui plasmado com a interpretação do autor sobre a situação que se vive em locais tão distantes do planeta como o Chile, a Venezuela, a Colômbia, o Brasil, a Grécia ou o Líbano. Iluminando a história, que ao longo dos anos tem sido reescrita e falsificada de acordo com os interesses hegemónicos, o Miguel torna legível aspectos das transformações na América Latina, das guerras de agressão no Médio Oriente, do papel que os Estados Unidos da América assumem hoje no mundo, que o autor não tem dúvidas em apelidar de IV Reich, da revolução russa ou da revolução cubana, das transformações revolucionárias no Chile de Allende, da revolução bolivariana, ou das transformações que ocorreram em vários partidos comunistas europeus ao longo da última década. Vários são os textos onde o autor analisa e interpreta a crise estrutural do capitalismo que estamos vivendo e que levará à sua morte ou à destruição da civilização e por várias vezes coloca a velha questão de Lenine "Que fazer?".
Neste conjunto de textos surgem alguns retratos de Homens que cruzaram a vida do autor e que a marcaram: Schafik Handal revolucionário da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, Manuel Marulanda, comandante revolucionário e fundador das FARC e Jorge Briceño comandante das FARC recentemente assassinado pelo regime colombiano. Deste conjunto de retratos destaco dois: o de Álvaro Cunhal com quem o Miguel trabalhou durante largos anos e que define como uma personagem irrepetível que tinha a marca do diferente sem que para isso fizesse o menor esforço e Vasco Gonçalves com quem o autor cimentou uma relação de profunda amizade.
Se me pedissem para em apenas duas palavras caracterizar este livro do Miguel diria: coerência e lucidez. Coerência porque ao longo de dez anos e, apesar de o autor nos advertir para o facto de o pensamento não ser estático e de se ter transformado no caminhar pela vida, podemos encontrar nestes textos, que percorrem uma década, uma fidelidade aos princípios que abraçou e à leitura que faz do mundo e da vida. Aliás, só com uma grande coerência é possível publicar hoje textos com dez anos. Não é por certo difícil a qualquer um de nós imaginar algumas pessoas que não publicariam hoje aquilo que disseram ou escreveram há dez dias quanto mais há dez anos. E lucidez porque o Miguel é uma das poucas pessoas que tem o condão de tornar transparente o opaco e de com uma linguagem simples e cristalina tornar aparentemente claros problemas e questões extremamente complexas. Sem dar respostas, mas apelando à reflexão do leitor, o Miguel é capaz de, eliminando o acessório, colocar em questão aquilo que é de facto pertinente. Elimina o ruído e desoculta aspectos da realidade aparentemente abafados no bulício que nos sufoca.
Talvez seja esta coerência e esta lucidez que tem provocado tantas inimizades, mas também tantas amizades ao autor.
Este é também um livro de esperança. Desmascarando a inexistência de democracia e considerando que nos 15 países da Europa Ocidental impera um regime que na prática é uma ditadura da burguesia com fachada democrática, afirmando que apenas os povos como sujeitos da história podem, através da luta, criar as condições indispensáveis à alteração da relação de forças, o autor tem uma firme confiança, que lhe advém do conhecimento, nomeadamente da obra de Marx e Lénin, num outro mundo possível. Considerando que a construção desde novo mundo possível, o socialismo não será fácil e muito menos rápido e que não é através do aparelho de Estado numa sociedade capitalista, que será possível efectuar reformas incompatíveis com a lógica dos sistema, não deixa de salientar que:
"O compromisso de um revolucionário, sobretudo de um comunista, não implica ser contemporâneo das transformações revolucionárias pelas quais vive e luta. A vitória dos seus ideais pode ser posterior à sua morte. Ou ser adiada durante muitas gerações.
O inadmissível é o desalento, a capitulação numa época como a nossa de crise civilizacional e que um sistema monstruoso, o capitalismo globalizado, configura ameaça à própria sobrevivência da humanidade" (p.97).
"Tempo de Barbárie e Luta" deve ser lido por todos aqueles que queiram compreender o mundo em que vivem e as intensas transformações que têm vindo a ocorrer. Deve ser lido por todos aqueles que querem saber a verdade. Deve ser lido por todos aqueles que consideram inadmissível o desalento e querem transformar o mundo em que vivem. Deve ser lido por todos aqueles que estão convictos da derrota do capitalismo. Deve ser lido por todos aqueles que, tal como Jean Salem, autor citado pelo Miguel sabem que "Vivemos o fim de uma época. Confiamos na humanidade. Sabemos que alguma coisa vai chegar. Mas não sabemos o que é" (p.188)
Obrigada Miguel por este livro! Esperamos por mais...
[*] Historiadora, autora de "Vidas na clandestinidade" . Apresentação feita no Clube Literário do Porto em 28/Junho/2011.
Esta apresentação encontra-se em http://resistir.info/ .
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