segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

NA BOLÍVIA, A DEMOCRACIA É PARTICIPATIVA



Por Marcelo Salles *

6 fevereiro 2009 /Pátria Latina http://www.patrialatina.com.br

A Bolívia vive um momento extraordinário. Os movimentos sociais, no campo e na cidade, crescem como nunca. Desde as marchas indígenas da década de 1990 até a eleição de Evo Morales, em 2005, e a aprovação da nova Constituição, este ano, o aspecto em comum, sem dúvida, é o protagonismo do povo organizado.
“Antes os partidos da direita compravam meu voto por comida. Agora isso acabou”. É muito comum ouvir isso pelas ruas de La Paz. E, além de isso ter acabado, o fato é que o povo boliviano, de maioria indígena, encontrou seu próprio partido, o MAS (Movimento ao Socialismo), e seu próprio líder político, Evo Morales Ayma.
O presidente costuma dizer ao povo que está lá para obedecê-lo. Não é mentira, o que por vias tortas pode ser comprovado pela oposição. São freqüentes as reclamações da direita, expressadas pelas corporações de mídia daqui, de que “movimentos sociais participam de reuniões com ministros”. O ar é de incredulidade. O povo, os índios, ocuparam o Palácio de Governo e não pretendem sair de lá tão cedo. Além do presidente, hoje são ministros, vice-ministros, parlamentares, diretores de empresas públicas etc. “Este processo é irreversível”, costuma dizer Evo.
A medida do crescimento do movimento popular organizado tem no MAS sua melhor explicação. Esse partido está no centro das recentes transformações vividas pelo povo boliviano. Fundado em 1994, era constituído por quatro organizações apenas: Confederação Sindical de Trabalhadores Rurais, Confederação dos Povos Indígenas, Confederação de Mulheres “Bartolina Sisa” e Confederação de Colonizadores. E o nome do MAS era outro: Instrumento Político para a Soberania dos Povos (IPSP). Mudou de nome simplesmente porque impediram o registro eleitoral como IPSP, enquanto a sigla MAS, já registrada, foi entregue aos futuros condutores da Revolução Democrática e Cultural.
Apenas três anos após sua fundação, em 1997, os povos originários elegem Evo Morales para o Congresso, junto com outros três companheiros. Dois anos depois, já eram 35 os deputados masistas, enquanto que em 2005 esse número duplicou. No mesmo ano, Evo Morales era eleito o primeiro índio presidente da Bolívia.

Referendos
Uma característica da democracia participativa é a convocação do povo a instâncias de decisão coletiva, como por exemplo a figura do referendo. Das seis consultas desse tipo realizadas desde a independência, em 1825, quatro delas (66%) ocorreram após a fundação do MAS (sendo três durante seu governo). Em 2004, o povo foi chamado a opinar sobre as regras da exportação de gás; em 2006, para votar sobre as autonomias departamentais; em 2008, para decidir sobre a revogação do mandato do presidente e dos governadores, e, em 2009, para aprovar a Constituição Política de Estado.
No período anterior aos referendos do século XXI, entretanto, o movimento indígena não esteve parado. Até que chegasse à vitória no referendo de 25 de janeiro de 2009, foram anos de luta. Pelo menos duas datas ficaram marcadas, tanto pela gravidade dos conflitos quanto por sua importância. Em Cochabamba (2000), para impedir a privatização da água, e em La Paz (2003), para derrubar o governo neoliberal de Gonzalo Sanchéz de Lozada, o Goni, hoje acusado de ser o principal responsável pela morte de 67 manifestantes.
Hoje é muito comum encontrar cartazes com a foto de Goni espalhados por muros, postes e sindicatos, acompanhada da inscrição “Assassino! Extradição já!”, pois o ex-presidente vive em Miami. Segundo se conta por aqui, Goni esteve envolvido em fraudes milionárias. De acordo com o ex-ministro de Hidrocarbonetos, o escritor Andrés Soliz Rada, Goni é membro da “Society of the Americas”, organizada por David Rockefeler e mais conhecida como “governo mundial”; é dono da Compañía Minera del Sur em sociedade com o Banco Mundial; e sócio da gigante inglesa Rio Tinto Zinc, maior distribuidora de cobre do mundo, as duas com interesses na Bolívia. De acordo com a declaração oficial de bens, em apenas um ano (2002 a 2003) Goni teve sua conta bancária aumentada em 9 milhões de dólares. (Essas informações estão no livro “La Fortuna del Presidente”, de Andrés Soliz Rada, publicado em La Paz, 2004).
No último Congresso do MAS, o sétimo, realizado mês passado em Oruro, seis novas organizações se uniram ao partido. Entre elas a poderosa Central Obrera Regional de El Alto, que sempre manteve postura crítica – pela esquerda – ao governo Morales, e a Fecomin, federação de trabalhadores mineiros que congrega nada menos que 40 mil filiados.

Krisis
As últimas mobilizações de massa na Bolívia ocorreram em outubro do ano passado, com o objetivo de pressionar o Congresso pela aprovação do referendo da nova Constituição. Centenas de milhares de pessoas marcharam desde Oruro até La Paz, numa caminhada de 199 km que a apresentadora do canal estatal classificou como uma “interminável coluna humana”. Quando chegaram na Praça Murillo, disseram: “Só saímos daqui quando os deputados aprovarem a convocação do referendo. Se não aprovarem, tomamos o Congresso”. Os parlamentares realizaram sessões extraordinárias no sábado e domingo e a lei do referendo que estava estancada há vários meses foi aprovada em 24h. Durante a campanha, novas manifestações reuniram multidões e conduziram à aprovação da nova Constituição, que nas palavras de Evo é “anti-colonial, anti-neoliberal e anti-imperialista”.

Sobre as recentes mobilizações na Bolívia, um dirigente-fundador do MAS ressalta que foi o movimento indígena quem ofereceu a oportunidade histórica para a esquerda tradicional. Ivan Iporre hoje é diretor-geral da Secretaria Nacional de Administração de Pessoal. Quando chegou, o número de funcionários públicos formados em diversos cursos era de 2.600. Hoje, três anos depois, é de 13.200. Vem gente do mundo todo, especialistas como a argentina Isabel Rauber, para ministrar cursos de visão estratégica, formação política e administração pública. Até parlamentares participam. Sob a administração de Ivan, a filosofia que rege todo o processo é a “interculturalidade”, cujo objetivo é conhecer a si próprio, ao outro, e assim caminhar rumo à descolonização interna – já que anos de opressão colonial terminam por alterar a percepção que o cidadão tem dele mesmo.
Nesse sentido, pode-se dizer que a Bolívia vive uma krisis, palavra grega que significa “mudança”. Não sei se Evo Morales pensou nisso quando cunhou o termo “processo de cambio” (processo de mudança), mas o fato é que, para além da derrota imposta aos neoliberais, estamos assistindo a um país que rapidamente modifica suas estruturas de poder, passando de uma democracia representativa – onde a participação popular se resumia ao voto de tempos em tempos – para uma democracia participativa, em que o povo não mais aceita viver com essas migalhas. Ele agora participa das principais decisões políticas do Estado, que refletem suas convicções, como o respeito à Pachamama e aos princípios de dignidade, solidariedade, complementariedade e harmonia, bem como a garantia de acesso universal aos direitos básicos (água, energia e saneamento) e a nacionalização dos recursos estratégicos e riquezas naturais. A classe trabalhadora boliviana (indígenas, mineiros, operários e etc.) não quer impor ao antigo senhor a mesma condição violenta a que foi submetida. Mas já deixou bem claro que está disposta a lutar até a morte diante do menor sinal de retorno à dominação capitalista.

* Marcelo Salles, jornalista, foi correspondente da revista Caros Amigos no Rio de Janeiro entre 2004 e 2008. Atualmente é correspondente da Caros Amigos em La Paz (Bolívia), editor do jornal Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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