segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Bolívia/Vitória no referendo não garante vida fácil para Evo e seu povo

O povo aprovou amplamente a nova Constituição. A festa começou com o anúncio dos resultados, seis da tarde, e foi madrugada afora. Começa uma fase de novas dificuldades, pois a direita derrotada, entricheirada na meia-lua, com apoio ianque, já se mostrou capaz até de matar para garantir seus interesses.


Marcelo Salles*

23 fevereiro 2009/Pátria Latina http://www.patrialatina.com.br

Em La Paz, a concentração se deu na Praça Murillo, tomada por milhares de pessoas – não digo “bolivianos” porque havia gente do mundo inteiro, a pressentir a importância planetária das transformações vividas pela América Latina, região que oferece maior resistência ao capitalismo liberal. Também comemoravam a vitória do SIM argentinos, chilenos, colombianos, brasileiros e outros. Emma Palmieri, por exemplo. Estudante de Buenos Aires, loira, pele clara e sorriso aberto, dançava com os índios ao ritmo de flautas e percussão de um conjunto e não parava de sacudir uma bandeira whipala – símbolo andino de paz, resistência, liberdade e justiça.
Havia motivos de sobra pra comemorar. Pela primeira vez em 183 anos o povo boliviano foi consultado sobre sua própria Constituição. Mais: nesses quase 200 anos foram convocados apenas cinco referendos, dois deles na atual gestão Evo Morales Ayma, que recém completou três anos neste início de 2009.
No referendo de 25 de janeiro, os bolivianos responderam a duas perguntas: se aprovam ou não o novo texto constitucional; se o tamanho máximo do latifúndio deve ser 5 mil ou 10 mil hectares. Apesar da divulgação do resultado oficial estar prevista para 10 de fevereiro, na Bolívia a tradição é confiar nas pesquisas de boca-de-urna, feitas por empresas privadas e estatais, que apontaram: o SIM obteve entre 59 e 63% dos votos. O povo boliviano derrubou democraticamente a Constituição em vigor, elaborada há mais de 40 anos, no governo do ditador René Barrientos. Na outra pergunta, 77% dos votantes optaram por 5 mil hectares como tamanho máximo para o latifúndio – num país onde 7% dos proprietários controlam 80% das terras.

MAIS ESTADO NA ECONOMIA

Na manhã do dia 25 circulei por três sessões eleitorais, num colégio de San Pedro (La Paz), bairro que lembra a favela da Maré, no Rio. Faz sol, 18 graus, clima agradável sem o escandaloso frio paceño. Duas mil pessoas teriam votado por aqui até meio-dia, segundo os policiais. Observo o ir e vir dos eleitores. Muitos levam os filhos, que se divertem com carrinhos e bolas nas quadras enquanto os pais esperam em filas. O ritual: os mesários abrem a cédula na frente de todos – para mostrar que não está rasurada ou previamente marcada; o cidadão entra numa casinha, marca suas opções e deposita o voto na urna. Na mais santa paz.
Francisca Gutierrez, vendedora aymara de 54 anos que mal fala espanhol, votou SIM “porque o novo texto favorece as classes média e baixa, enquanto a atual Constituição favorece as classes altas”. Irma Orozco, funcionária pública, votou NÃO “porque nós que temos um pouco mais de cultura e lemos o texto achamos que ficou faltando definição, há muitas controvérsias”.
A aprovação é considerada um marco por analistas nacionais e internacionais. Para o sociólogo Eduardo Paz Rada, professor da Universidade Mayor de San Andrés, “vivemos um momento transcendental, tão importante quanto 1825 [Independência] e 1952 [primeiras nacionalizações]. Esta Constituição nos abre uma perspectiva de um novo país”. Eduardo não exagera. Só para se ter idéia, a partir de agora os membros do Poder Judiciário serão eleitos pelo voto direto do povo, assim como os deputados estaduais (inexistentes pela Constituição anterior). A nova Carta garante direitos dos povos originários – excluídos ao longo dos séculos –, promove a folha de coca a patrimônio cultural, incentiva a propriedade coletiva, cooperativas, e afirma que os recursos naturais renováveis e não-renováveis são de caráter estratégico e pertencem ao povo boliviano – não podem ser cedidos a particulares, salvo extensões limitadas de terras para fins agrícolas. Os meios de comunicação ficam proibidos de formar monopólios ou oligopólios, as propriedades rurais terão de cumprir função econômica e social; a religião católica deixa de ser oficial e o Estado, laico, passa a reconhecer “a liberdade de religião e de crenças espirituais, de acordo com as suas [diferentes] cosmovisões”.
A Constituição recém-aprovada prevê maior participação do Estado na vida econômica e social do país. O artigo 306 garante quatro formas de organização econômica: comunitária, estatal, privada e social-cooperativa. O Estado dirigirá a economia e deverá regular os processos de produção, distribuição e comercialização de bens e serviços, com atenção especial para petróleo, gás e minérios, recursos hídricos e agrícolas.

UMA CENA PATÉTICA

Evo Morales se dirigiu à multidão na Praça Murillo, da sacada do Palácio, e reafirmou o que vinha dizendo, que esta Constituição tem caráter anticolonialista, antiimperialista e antineoliberal. E mais:
“Os serviços básicos como água, luz, comunicação etcétera são direitos humanos e por isso devem ser propriedade do povo boliviano, e não objeto de negócios privados. Hoje refundamos a Bolívia!”
Recebeu efusivo e interminável coro, já famoso: “Evo, amigo! O povo está contigo!”
E a oposição de direita começa a se pronunciar. Alguns dirigentes conclamavam o povo a não aceitar os resultados, outros afirmavam que o governo deveria chegar a um acordo se quisesse implementar a Constituição – essa mesma que acabava de ser aprovada pela maioria do povo. A governadora de Chuquisaca, Savina Cuellar, disse publicamente que o novo texto não deveria ser acatado porque eleitores teriam sido forçados a votar em Sucre, enquanto seu colega de Tarija, Mario Cossio, disse que o governo deveria negociar. O líder do Comitê Cívico de Santa Cruz, o latifundiário Branko Marinkovic, completou: “Ninguém poderá governar com a nova Constituição.”
O clima de golpe vinha de novo sendo preparado desde cedo. Às duas da tarde, emissoras privadas de televisão divulgaram insistentemente suposto problema com as tintas usadas para marcar o dedo do eleitor – evitando que vote mais de uma vez. Trata-se de um mecanismo de controle auxiliar, já que para votar o cidadão precisa assinar ao lado de seu nome e recolher seu comprovante, exatamente como no Brasil. Segundo aquelas emissoras, a tinta estava sendo facilmente apagada com água e sabão. A Unitel mandou seus repórteres lambuzar os dedos e lavá-los em frente das câmeras. A cena patética ficou no ar por uma hora, mas a estratégia demorou um minuto para ser desqualificada pelos observadores internacionais:
“Como cada cidadão ou cidadã está inscrito numa única Mesa Eleitoral e ao votar assina o documento da Corte Nacional Eleitoral, entendo que não é necessária a marca de tinta em seus dedos”, declarou o chefe da delegação do Mercosul, deputado federal brasileiro Doutor Rosinha.

A LUTA SERÁ DURA

As demais organizações internacionais presentes descartaram toda possibilidade de fraude e reafirmaram a lisura do ato:
“A missão considera que o processo se realizou de maneira exitosa e que a vontade dos cidadãos bolivianos, livremente expressada nas urnas, foi respeitada. A jornada eleitoral transcorreu pacificamente e sem contratempos”, concluiu o Consejo de Expertos Electorales de Latinoamerica. Pelas oito da noite, o presidente da Corte Nacional Eleitoral, José Luis Exeni, afirmou que não se registrou nenhum incidente grave e que o processo transcorreu democraticamente, secundado por representantes da Unasul, da União Européia, da Organização dos Estados Americanos e demais organizações – havia 311 observadores nos nove Departamentos (Estados).
Durante entrevista coletiva com Raúl Lagos, chefe da missão da OEA, ocorreu um episódio peculiar. Ele falava com uma jornalista e um sujeito se meteu entre as câmeras dizendo que tinha uma denúncia. Lagos pediu-lhe que a formalizasse e explicou à jornalista que não tomavam como denúncia “qualquer coisa que é publicada”. O tal cidadão foi para a rua, onde encontrou o que queria: câmeras e microfones. E se fez de vítima: “Não fui ouvido pela OEA.” Perguntei a ele: “O senhor pretende formalizar esta denúncia?” Ele fingiu que não entendeu, mas um radialista local insistiu na pergunta, então ele mudou de assunto.
É possível que a gritaria da direita tenha como objetivo desviar o foco da derrota ao mesmo tempo em que procura manter o governo sob suspeita, na defensiva, para negociar em melhores condições. Seus dirigentes aproveitam a vitória do NÃO nos quatro Estados orientais, a meia-lua (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija), para insistir na estratégia de manter o país dividido – além de ressaltar que o governo perdeu entre 5% e 7% em relação ao referendo revogatório de 2008 (quando Evo venceu com 67,4%).
O fato é que existem duas forças centrais: de um lado, a direita entrincheirada no oriente e articulada com o imperialismo estadunidense, que já se mostrou capaz de tudo para fazer valer seus interesses – como o massacre de Pando, que ceifou a vida de 20 camponeses; do outro lado, o processo de mudança promovido pelo governo, que conta com imenso apoio do povo e dos movimentos sociais, hoje com força suficiente para cercar Santa Cruz, La Paz ou qualquer outro lugar. Todos os analistas concordam: 2009 será um ano difícil na Bolívia, possivelmente com novos conflitos e mortes.

SIM à esquerda
NÃO à direita


As campanhas eleitorais exerceram papel determinante. Os militantes do SIM investiram pesado na divulgação do novo texto constitucional, com panfletagens e com a venda de exemplares por preços simbólicos entre 1 e 2 reais, em farmácias, mercearias, bancas de jornal. Os meios de comunicação estatais e à esquerda promoveram debates.
Os partidários do NÃO apostaram em campanhas mentirosas, assinadas por entidades como Iglesias Re-Unidas, Basta Ya, Jovenes por Bolívia e Comisión Nacional de Defensa de Valores y Princípios Cristianos. Em propagandas de rádio e tevê, atores alarmavam a população afirmando que o governo iria poder tomar casas, carros e até tevês. Pelo lado moralista, diziam que o novo texto incentivaria o aborto, o casamento gay e a negação de Deus.
Dos quase 4 milhões de eleitores, segundo a Corte Nacional Eleitoral, compareceram 85%.

*Marcelo Salles é correspondente de Caros Amigos em La Paz e editor de Fazendo Media www.fazendomedia.com
salles@carosamigos.com.br

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