10 julho 2015, Instituto Humanitas Unisinos http://www.ihu.unisinos.br
(Brasil)
"A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não
é mera filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais
forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes
pertence. O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina
social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A
propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em
função das necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao
consumo. Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo
que, por si só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas
emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão
substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre,
criativo, participativo e solidário", afirmou o Papa Francisco, num
discurso considerado por lideranças dos movimentos populares como
'irretocável", proferido no Encontro Mundial dos Movimentos Populares,
em Santa Cruz de la Sierra, no dia 09-07-2015.
Segundo o Papa, "os movimentos populares têm um papel essencial,
não apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente criando. Vós sois poetas
sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de alimentos,
sobretudo para os descartados pelo mercado global".
Para ver o vídeo,
em espanhol, clique aqui.
Eis o discurso.
Boa tarde a todos!
Há alguns meses, reunimo-nos em Roma e não esqueço aquele nosso primeiro
encontro. Durante este tempo, trouxe-vos no meu coração e nas minhas orações.
Alegra-me vê-vos de novo aqui, debatendo os melhores caminhos para superar as
graves situações de injustiça que padecem os excluídos em todo o mundo.
Obrigado Senhor Presidente Evo Morales, por sustentar tão decididamente
este Encontro.
Então, em Roma, senti algo muito belo: fraternidade, paixão, entrega,
sede de justiça. Hoje, em Santa Cruz de la Sierra, volto a sentir o
mesmo. Obrigado! Soube também, pelo Pontifício Conselho «Justiça e Paz»
presidido pelo Cardeal Turkson, que são muitos na Igreja aqueles que se
sentem mais próximos dos movimentos populares. Muito me alegro por isso! Ver a
Igreja com as portas abertas a todos vós, que se envolve, acompanha e consegue
sistematizar em cada diocese, em cada comissão «Justiça e Paz», uma colaboração
real, permanente e comprometida com os movimentos populares. Convido-vos a
todos, bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das
periferias urbanas e rurais a aprofundar este encontro.
Deus permitiu que nos voltássemos a ver hoje. A Bíblia lembra-nos que
Deus escuta o clamor do seu povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à
vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs.
Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por
eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a
terra.
1. Comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança. Quero esclarecer,
para que não haja mal-entendidos, que falo dos problemas comuns de todos os
latino-americanos e, em geral, de toda a humanidade. Problemas, que têm uma
matriz global e que actualmente nenhum Estado pode resolver por si mesmo. Feito
este esclarecimento, proponho que nos coloquemos estas perguntas:
-- Reconhecemos nós que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos
camponeses sem terra, tantas famílias sem tecto, tantos trabalhadores sem
direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade?
-- Reconhecemos nós que as coisas não andam bem, quando explodem tantas
guerras sem sentido e a violência fratricida se apodera até dos nossos bairros?
-- Reconhecemos nós que as coisas não andam bem, quando o solo, a água,
o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça constante?
Então digamo-lo sem medo: Precisamos e queremos uma mudança.
Nas vossas cartas e nos nossos encontros, relataram-me as múltiplas
exclusões e injustiças que sofrem em cada actividade laboral, em cada bairro,
em cada território. São tantas e tão variadas como muitas e diferentes são as
formas próprias de as enfrentar. Mas há um elo invisível que une cada uma
destas exclusões: conseguimos nós reconhecê-lo? É que não se trata de questões
isoladas.
Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades
destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos nós
que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão
social nem na destruição da natureza?
Se é assim – insisto – digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma
mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o
suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as
comunidades, não o suportam os povos.... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã
Mãe Terra, como dizia São Francisco.
Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo,
na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo
inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os
problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce
entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença.
Hoje quero refletir convosco sobre a mudança que queremos e precisamos.
Como sabem, recentemente escrevi sobre os problemas da mudança climática. Mas,
desta vez, quero falar duma mudança noutro sentido. Uma mudança positiva, uma
mudança que nos faça bem, uma mudança – poderíamos dizer – redentora. Porque é
dela que precisamos. Sei que buscais uma mudança e não apenas vós: nos
diferentes encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma expectativa,
uma busca forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo. Mesmo dentro
da minoria cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste sistema,
reina a insatisfação e sobretudo a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os
liberte desta tristeza individualista que escraviza.
O tempo, irmãos e irmãs, o tempo parece exaurir-se; já não nos
contentamos com lutar entre nós, mas chegamos até a assanhar-nos contra a nossa
casa. Hoje, a comunidade científica aceita aquilo que os pobres já há muito
denunciam: estão a produzir-se danos talvez irreversíveis no ecossistema.
Está-se a castigar a terra, os povos e as pessoas de forma quase
selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o
cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava «o esterco do diabo»:
reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo
plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos,
quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioecónomico, arruína a
sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade
inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta
nossa casa comum.
Não quero alongar-me na descrição dos efeitos malignos desta ditadura
subtil: vós conhecei-los! Mas também não basta assinalar as causas
estruturais do drama social e ambiental contemporâneo. Sofremos de um certo
excesso de diagnóstico, que às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a
rejubilar com o negativo. Ao ver a crónica negra de cada dia, pensamos que não
haja nada que se possa fazer para além de cuidar de nós mesmos e do pequeno
círculo da família e dos amigos.
Que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador,
reciclador, frente a tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer
eu, artesão, vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não
tenho sequer direitos laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena,
pescador que dificilmente consigo resistir à propagação das grandes
corporações? Que posso fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco,
da minha povoação, da minha favela, quando sou diariamente discriminado e
marginalizado? Que pode fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante,
aquele missionário que atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio
de sonhos, mas quase sem nenhuma solução para os meus problemas? Muito! Podem
fazer muito.
Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e
fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande
medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover
alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e
também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de
mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!
2. Vós sois semeadores de mudança. Aqui, na Bolívia, ouvi
uma frase de que gosto muito: «processo de mudança». A mudança
concebida, não como algo que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela
opção política ou porque se estabeleceu esta ou aquela estrutura social.
Sabemos, amargamente, que uma mudança de estruturas, que não seja
acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e do coração, acaba a longo
ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. Por isso gosto
tanto da imagem do processo, onde a paixão por semear, por regar serenamente o
que outros verão florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos os espaços de
poder disponíveis e de ver resultados imediatos. Cada um de nós é apenas uma
parte de um todo complexo e diversificado interagindo no tempo: povos que lutam
por uma afirmação, por um destino, por viver com dignidade, por «viver bem».
Vós, a partir dos movimentos populares, assumis as tarefas comuns
motivados pelo amor fraterno, que se rebela contra a injustiça social. Quando
olhamos o rosto dos que sofrem, o rosto do camponês ameaçado, do trabalhador
excluído, do indígena oprimido, da família sem tecto, do imigrante perseguido,
do jovem desempregado, da criança explorada, da mãe que perdeu o seu filho num
tiroteio porque o bairro foi tomado pelo narcotráfico, do pai que perdeu a sua
filha porque foi sujeita à escravidão; quando recordamos estes «rostos e nomes»
estremecem-nos as entranhas diante de tanto sofrimento e comovemo-nos…. Porque
«vimos e ouvimos», não a fria estatística, mas as feridas da humanidade
dolorida, as nossas feridas, a nossa carne. Isto é muito diferente da
teorização abstrata ou da indignação elegante. Isto comove-nos, move-nos e
procuramos o outro para nos movermos juntos. Esta emoção feita acção
comunitária é incompreensível apenas com a razão: tem um plus de sentido que só
os povos entendem e que confere a sua mística particular aos verdadeiros
movimentos populares.
Vós viveis, cada dia, imersos na crueza da tormenta humana. Falastes-me
das vossas causas, partilhastes comigo as vossas lutas. E agradeço-vos.
Queridos irmãos, muitas vezes trabalhais no insignificante, no que aparece ao
vosso alcance, na realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos
resignais opondo uma resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada
e mata.
Vi-vos trabalhar incansavelmente pela terra e a agricultura camponesa,
pelos vossos territórios e comunidades, pela dignificação da economia popular,
pela integração urbana das vossas favelas e agrupamentos, pela auto-construção
de moradias e o desenvolvimento das infra-estruturas do bairro e em muitas
actividades comunitárias que tendem à reafirmação de algo tão elementar e
inegavelmente necessário como o direito aos “3 T”: terra, teto e
trabalho.
Este apego ao bairro, à terra, ao território, à profissão, à corporação,
este reconhecer-se no rosto do outro, esta proximidade no dia-a-dia, com as
suas misérias e os seus heroísmos quotidianos, é o que permite realizar o
mandamento do amor, não a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno
encontro entre pessoas, porque não se amam os conceitos nem as ideias; amam-se
as pessoas. A entrega, a verdadeira entrega nasce do amor pelos homens e
mulheres, crianças e idosos, vilarejos e comunidades... Rostos e nomes que
enchem o coração. A partir destas sementes de esperança semeadas
pacientemente nas periferias esquecidas do planeta, destes rebentos de ternura
que lutam por subsistir na escuridão da exclusão, crescerão grandes árvores,
surgirão bosques densos de esperança para oxigenar este mundo.
Vejo, com alegria, que trabalhais no que aparece ao vosso alcance,
cuidando dos rebentos; mas, ao mesmo tempo, com uma perspectiva mais ampla,
protegendo o arvoredo. Trabalhais numa perspectiva que não só aborda a
realidade sectorial que cada um de vós representa e na qual felizmente está
enraizada, mas procurais também resolver, na sua raiz, os problemas gerais de
pobreza, desigualdade e exclusão.
Felicito-vos por isso. É imprescindível que, a par da reivindicação dos
seus legítimos direitos, os povos e as suas organizações sociais construam uma
alternativa humana à globalização exclusiva. Vós sois semeadores de mudança.
Que Deus vos dê coragem, alegria, perseverança e paixão para continuar a
semear. Podeis ter a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ver os
frutos.
Peço aos dirigentes: sede criativos e nunca percais o apego às coisas
próximas, porque o pai da mentira sabe usurpar palavras nobres, promover modas
intelectuais e adoptar posições ideológicas, mas se construirdes sobre bases
sólidas, sobre as necessidades reais e a experiência viva dos vossos irmãos,
dos camponeses e indígenas, dos trabalhadores excluídos e famílias
marginalizadas, de certeza não vos equivocareis.
A Igreja não pode nem deve ser alheia a este processo no anúncio do Evangelho.
Muitos sacerdotes e agentes pastorais realizam uma tarefa imensa acompanhando e
promovendo os excluídos em todo o mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso
a empreendimentos, construindo casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da
saúde, desporto e educação. Estou convencido de que a cooperação amistosa com
os movimentos populares pode robustecer estes esforços e fortalecer os
processos de mudança.
No coração, tenhamos sempre a Virgem Maria, uma jovem humilde duma
pequena aldeia perdida na periferia dum grande império, uma mãe sem tecto que
soube transformar um curral de animais na casa de Jesus com uns pobres paninhos
e uma montanha de ternura. Maria é sinal de esperança para os povos que
sofrem dores de parto até que brote a justiça. Rezo à Virgem do Carmo,
padroeira da Bolívia, para fazer com que este nosso Encontro seja fermento de
mudança.
3. Por último, gostaria que refletíssemos, juntos, sobre algumas tarefas
importantes neste momento histórico, pois queremos uma mudança positiva em benefício
de todos os nossos irmãos e irmãs. Disto estamos certos! Queremos uma mudança
que se enriqueça com o trabalho conjunto de governos, movimentos populares e
outras forças sociais. Sabemos isto também! Mas não é tão fácil definir o
conteúdo da mudança, ou seja, o programa social que reflicta este projeto de
fraternidade e justiça que esperamos. Neste sentido, não esperem uma receita
deste Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da
realidade social e da proposta de soluções para os problemas contemporâneos.
Atrever-me-ia a dizer que não existe uma receita. A história é construída pelas
gerações que se vão sucedendo no horizonte de povos que avançam individuando o
próprio caminho e respeitando os valores que Deus colocou no coração.
Gostaria, no entanto, de vos propor três grandes tarefas que requerem a
decisiva contribuição do conjunto dos movimentos populares:
3.1 A primeira tarefa é pôr a economia ao serviço dos povos.
Os seres humanos e a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos
NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de
servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe
Terra.
A economia não deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração
da casa comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir
adequadamente os bens entre todos. A sua finalidade não é unicamente garantir o
alimento ou um «decoroso sustento». Não é sequer, embora fosse já um grande
passo, garantir o acesso aos “3 T” pelos quais combateis. Uma economia
verdadeiramente comunitária – poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração
cristã – deve garantir aos povos dignidade, «prosperidade e civilização em seus
múltiplos aspectos».(1)
Isto envolve os “3 T” mas também acesso à educação, à saúde, à
inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e
à recreação. Uma economia justa deve criar as condições para que cada
pessoa possa gozar duma infância sem privações, desenvolver os seus talentos
durante a juventude, trabalhar com plenos direitos durante os anos de
actividade e ter acesso a uma digna aposentação na velhice. É uma economia onde
o ser humano, em harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de produção
e distribuição de tal modo que as capacidades e necessidades de cada um
encontrem um apoio adequado no ser social. Vós – e outros povos também –
resumis este anseio duma maneira simples e bela: «viver bem».
Esta economia é não apenas desejável e necessária, mas também possível.
Não é uma utopia, nem uma fantasia. É uma perspectiva extremamente realista.
Podemos consegui-la. Os recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho
intergeneracional dos povos e dos dons da criação, são mais que suficientes
para o desenvolvimento integral de «todos os homens e do homem todo». (2)
Mas o problema é outro. Existe um sistema com outros objetivos. Um
sistema que, apesar de acelerar irresponsavelmente os ritmos da produção,
apesar de implementar métodos na indústria e na agricultura que sacrificam a
Mãe Terra na ara da «produtividade», continua a negar a milhares de milhões de
irmãos os mais elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este
sistema atenta contra o projecto de Jesus.
A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera
filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte:
é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence.
O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da
Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade,
sobretudo quando afecta os recursos naturais, deve estar sempre em função das
necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não
basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si
só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências
deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão
substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre,
criativo, participativo e solidário.
Neste caminho, os movimentos populares têm um papel essencial, não
apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente criando. Vós sois poetas
sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de alimentos,
sobretudo para os descartados pelo mercado global.
Conheci de perto várias experiências, onde os trabalhadores, unidos em
cooperativas e outras formas de organização comunitária, conseguiram criar
trabalho onde só havia sobras da economia idólatra. As empresas
recuperadas, as feiras francas e as cooperativas de catadores de papelão são
exemplos desta economia popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com
esforço e paciência, adopta formas solidárias que a dignificam. Quão diferente
é isto do fato de os descartados pelo mercado formal serem explorados como
escravos!
Os governos que assumem como própria a tarefa de colocar a economia ao
serviço das pessoas devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e
expansão destas formas de economia popular e produção comunitária. Isto implica
melhorar os processos de trabalho, prover de adequadas infra-estruturas e
garantir plenos direitos aos trabalhadores deste setor alternativo.
Quando Estado e organizações sociais assumem, juntos, a missão dos “3
T”, ativam-se os princípios de solidariedade e subsidiariedade que permitem
construir o bem comum numa democracia plena e participativa.
3.2 A segunda tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da
justiça.
Os povos do mundo querem ser artífices do seu próprio destino. Querem
caminhar em paz para a justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o
mais forte subordina o mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os
seus processos sociais e tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder
efectivamente constituído tem direito de privar os países pobres do pleno
exercício da sua soberania e, quando o fazem, vemos novas formas de
colonialismo que afectam seriamente as possibilidades de paz e justiça, porque
«a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no
respeito pelo direito dos povos, sobretudo o direito à independência». (3)
Os povos da América Latina alcançaram, com um parto doloroso, a sua
independência política e, desde então, viveram já quase dois séculos duma
história dramática e cheia de contradições procurando conquistar uma
independência plena.
Nos últimos anos, depois de tantos mal-entendidos, muitos países
latino-americanos viram crescer a fraternidade entre os seus povos. Os governos
da região juntaram seus esforços para fazer respeitar a sua soberania, a de
cada país e a da região como um todo que, de forma muito bela como faziam os
nossos antepassados, chamam a «Pátria Grande». Peço-vos, irmãos e irmãs
dos movimentos populares, que cuidem e façam crescer esta unidade. É necessário
manter a unidade contra toda a tentativa de divisão, para que a região cresça
em paz e justiça.
Apesar destes avanços, ainda subsistem fatores que atentam contra este
desenvolvimento humano equitativo e coarctam a soberania dos países da «Pátria
Grande» e doutras latitudes do Planeta. O novo colonialismo assume
variadas fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro:
corporações, credores, alguns tratados denominados «de livre comércio» e a
imposição de medidas de «austeridade» que sempre apertam o cinto dos
trabalhadores e dos pobres.
Os bispos latino-americanos denunciam-no muito claramente, no documento
de Aparecida, quando afirmam que «as instituições financeiras e as empresas
transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais,
sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para
levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações». (4)
Noutras ocasiões, sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o
narcotráfico ou o terrorismo – graves males dos nossos tempos que requerem uma
acção internacional coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que
pouco têm a ver com a resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as
coisas piores.
Da mesma forma, a concentração monopolista dos meios de comunicação
social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade
cultural é outra das formas que adopta o novo colonialismo. É o colonialismo
ideológico. Como dizem os bispos da África, muitas vezes pretende-se
converter os países pobres em «peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem
gigante».5
Temos de reconhecer que nenhum dos graves problemas da humanidade pode
ser resolvido sem a interacção dos Estados e dos povos a nível internacional.
Qualquer acto de envergadura realizado numa parte do Planeta repercute-se no
todo em termos econômicos, ecológicos, sociais e culturais.
Até o crime e a violência se globalizaram. Por isso, nenhum governo pode
actuar à margem duma responsabilidade comum. Se queremos realmente uma mudança
positiva, temos de assumir humildemente a nossa interdependência. Mas
interacção não é sinónimo de imposição, não é subordinação de uns em função dos
interesses dos outros. ]
O colonialismo, novo e velho, que reduz os países pobres a meros
fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata, gera violência, miséria,
emigrações forçadas e todos os males que vêm juntos... precisamente porque, ao
pôr a periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento
integral. Isto é desigualdade, e a desigualdade gera violência que nenhum
recurso policial, militar ou dos serviços secretos será capaz de deter.
Digamos NÃO às velhas e novas formas de colonialismo. Digamos SIM ao
encontro entre povos e culturas. Bem-aventurados os que trabalham pela paz.
Aqui quero deter-me num tema importante. É que alguém poderá, com
direito, dizer:
«Quando o Papa fala de colonialismo, esquece-se de certas acções da
Igreja». Com pesar, vo-lo digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os
povos nativos da América, em nome de Deus. Reconheceram-no os meus
antecessores, afirmou-o o CELAM e quero reafirmá-lo eu também. Como São João
Paulo II, peço que a Igreja «se ajoelhe diante de Deus e implore o
perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos». (6) E eu
quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço
humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para
os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América.
Peço-vos também a todos, crentes e não crentes, que se recordem de
tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram e pregam a boa nova de Jesus
com coragem e mansidão, respeito e em paz; que, na sua passagem por esta vida,
deixaram impressionantes obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas
vezes ao lado dos povos indígenas ou acompanhando os próprios movimentos
populares mesmo até ao martírio. A Igreja, os seus filhos e filhas, fazem parte
da identidade dos povos na América Latina. Identidade que alguns poderes, tanto
aqui como noutros países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é
revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro.
Hoje vemos, com horror, como no Médio Oriente e noutros lugares
do mundo se persegue, tortura, assassina a muitos irmãos nossos pela sua fé em
Jesus. Isto também devemos denunciá-lo: dentro desta terceira guerra mundial em
parcelas que vivemos, há uma espécie de genocídio em curso que deve cessar.
Aos irmãos e irmãs do movimento indígena latino-americano, deixem-me
expressar a minha mais profunda estima e felicitá-los por procurarem a
conjugação dos seus povos e culturas segundo uma forma de convivência, a que eu
chamo poliédrica, onde as partes conservam a sua identidade construindo,
juntas, uma pluralidade que não atenta contra a unidade, mas fortalece-a. A sua
procura desta interculturalidade que conjuga a reafirmação dos direitos dos
povos nativos com o respeito à integridade territorial dos Estados
enriquece-nos e fortalece-nos a todos.
3.3 A terceira tarefa, e talvez a mais importante que devemos assumir
hoje, é defender a Mãe Terra.
A casa comum de todos nós está a ser saqueada, devastada, vexada
impunemente. A covardia em defendê-la é um pecado grave. Vemos, com crescente decepção,
sucederem-se uma após outra cimeiras internacionais sem qualquer resultado
importante. Existe um claro, definitivo e inadiável imperativo ético de actuar
que não está a ser cumprido. Não se pode permitir que certos interesses – que
são globais, mas não universais – se imponham, submetendo Estados e organismos
internacionais, e continuem a destruir a criação. Os povos e os seus movimentos
são chamados a clamar, mobilizar-se, exigir – pacífica mas tenazmente – a
adopção urgente de medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que
defendais a Mãe Terra. Sobre este assunto, expressei-me devidamente na carta
encíclica Laudato si’.
4. Para concluir, quero dizer-lhes novamente: O futuro da humanidade
não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e
das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se
organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este
processo de mudança.
Estou convosco. Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem
teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo
sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância,
nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai
com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra.
Rezo por vós, rezo convosco e quero pedir a nosso Pai Deus que vos
acompanhe e abençoe, que vos cumule do seu amor e defenda no caminho concedendo-vos,
em abundância, aquela força que nos mantém de pé: esta força é a esperança, a
esperança que não decepciona. Obrigado! E peço-vos, por favor, que rezeis por
mim.
_____
1 JOÃO XXIII, Carta enc. Mater et Magistra (15 de Maio de 1961),
3: AAS 53 (1961), 402.
2 PAULO VI, Carta enc. Popolorum progressio, 14.
3 PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157.
4 V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE (2007), Documento de Aparecida, 66.
5 JOÃO PAULO II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 52: AAS 88 (1996), 32-33. Cf. IDEM, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 22: AAS 80 (1988), 539.
6 JOÃO PAULO II, Bula Incarnationis mysterium, 11.
2 PAULO VI, Carta enc. Popolorum progressio, 14.
3 PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157.
4 V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE (2007), Documento de Aparecida, 66.
5 JOÃO PAULO II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 52: AAS 88 (1996), 32-33. Cf. IDEM, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 22: AAS 80 (1988), 539.
6 JOÃO PAULO II, Bula Incarnationis mysterium, 11.
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