quinta-feira, 4 de março de 2010

Moçambique/Augusto Paulino e as metas do ano : Desafio é explicar como funciona o sistema da Justiça

Um dos acontecimentos dignos de registo havidos esta semana no país foi a abertura do Ano Judicial, na qual o Tribunal Supremo veio a público anunciar que no decurso do ano de 2009 os tribunais judiciais registaram a entrada de 115.525 processos e deram por finalizados, por julgamento, 120 364 processos. Do universo dos processos findos por julgamento, 85 597 pertencem aos tribunais judiciais de distrito, 34 467 aos tribunais de província e 300 ao Tribunal Supremo. Do confronto entre os processos entrados e findos por julgamento, existe uma diferença de 4 839, a mais para os processos concluídos por julgamento, o que representa um incremento, em termos globais, na ordem de quatro porcento. Apesar da redução da percentagem do incremento verificado no ano 2008, que foi de 24 porcento, o desempenho dos tribunais judiciais em 2009, em termos globais, é positivo. A abertura do Ano Judicial é entendida assim como uma oportunidade privilegiada para se abordar, de forma genérica, um tema específico que se enquadre nas amplas funções de combate à criminalidade, e não só, sobretudo as que ao Ministério Público estão legalmente atribuídas. É por essa razão que para 2010, a Procuradoria-Geral da República, segundo o respectivo timoneiro, Augusto Paulino, elegeu um tema cujo impacto e actualidade são por demais evidentes: o desafio de explicar aos cidadãos como funciona o nosso sistema de justiça criminal.

4 março 2010/Notícias

De acordo com Augusto Paulino, para que um processo seja julgado e encerrado, passa por vários intervenientes. Um cidadão que comete uma infracção poder ser imediatamente preso ou a detenção pode ser deferida. Poder ser julgado imediatamente, se for um crime sumário, pode haver lugar a instrução, se outra forma de processo for. Pode o cidadão ser preso para ser presente ao juiz para aplicação de medidas de coação jurisdicionais, cuja competência só o juiz a detém, nos termos constitucionais. Neste ciclo todo, pode-se ter a intervenção do suspeito, da Polícia, do advogado, do procurador, do juiz e, se possível, do guarda prisional.

“O processo judicial comporta vários prazos para a sua instrução, para a manutenção dos arguidos em prisão preventiva, estabelece várias garantias ao arguido para que, no final, se realize uma justiça justa, segura e credível. Em condições normais, pondo de parte os esquemas de corrupção que estamos combatendo, o cidadão suspeito pode ser imediatamente solto por um magistrado do Ministério Público, na Esquadra da Polícia, por inexistência de crime. Pode o procurador ordenar que o arguido seja presente ao juiz, por entender que há matéria criminal. Mas, o juiz depois de ouvir o arguido ou o detido pode entender que não há prova bastante para a indiciação criminal da pessoa que lhe foi presente. Pode até entender que há crime, mas que o detido aguarde em liberdade. Aguardando em liberdade, o juiz pode arbitrar caução ou pode fixar termo de identidade e residência. Durante a instrução do processo várias situações podem ocorrer. As mais frequentes são a inobservância dos prazos de instrução e de prisão preventiva. A preclusão de um prazo de prisão preventiva, nos termos da lei, implica a soltura imediata do arguido, devendo aguardar os ulteriores termos do processo em liberdade. Qualquer destes procedimentos é legal, pois a lei não foi desenhada para a concretização, sem olhar a meios, do poder punitivo do Estado. A lei foi também feita em defesa dos cidadãos suspeitos ou arguidos em processo penal” – explicou o PGR.

Acrescentou que muitos concidadãos, quando estão perante um suspeito, entendem que a única saída é a reclusão, o que pode, muitas vezes, tratando-se de mera suspeita, implicar cumprimento antecipado de uma pena que pode não ser, no final, decidida pelo tribunal. A isto alia-se, segundo ele, o fenómeno da justiça pelas próprias mãos. Se um suspeito é solto, enquanto alguns cidadãos acham que devia estar na cadeia, insinuam a justiça por próprias mãos.

“Há situações em que os detidos recusam a soltura, preferindo a detenção nas esquadras da PRM, porque aí estão mais seguros e escapam à fúria de populares. Há que insistir pela não aplicação da justiça ilegítima” – sublinhou Paulino.

MÁ AVALIAÇÃO DA CORRUPÇÃO
Por outro lado, o PGR apontou que a corrupção continua a corroer o nosso país, e tudo se faz para combatê-la, com vigor, determinação, responsabilidade e profissionalismo. A par do crescente clamor do povo, nos últimos anos Augusto Paulino disse que tem sido avaliada, em baixa, por algumas organizações internacionais.

“Temos de continuar a fazer o nosso trabalho com responsabilidade, respeitarmos os direitos e garantias constitucionais dos cidadãos suspeitos ou constituídos arguidos, ou seja, a busca dos índices de desempenho nesta matéria, no concerto das nações, não deve pressupor, em circunstância alguma, passarmos por cima dos direitos fundamentais dos cidadãos. O sucesso da luta contra a corrupção está, em agir, correctamente e em saber manter sempre viva a chama da nossa determinação” – disse o PGR.

PROCESSADOS JUÍZES CORRUPTOS
O Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), no domínio da responsabilidade disciplinar, instaurou o ano passado um total de 31 processos contra juízes e oficiais de justiça, resultantes de cometimento de infracções diversas, com destaque para actos de corrupção, desvio de fundos do Estado e falsificação. Os processos deram lugar à expulsão de quatro oficiais de justiça e demissão de seis, de entre outras medidas.

No âmbito do exercício do poder disciplinar, ainda em 2009 o CSMJ apreciou 28 processos disciplinares, sendo dois contra juízes e 26 contra oficiais de justiça e aplicou as penas de expulsão a cinco oficiais de justiça e de demissão a igual número de oficiais de justiça. Nos restantes casos foram aplicadas penas de advertência, repreensão pública, multa e despromoção.

Por outro lado, de acordo com Ozias Pondja, Presidente do Tribunal Supremo, que falava por ocasião da abertura do Ano Judicial, o CSMJ, órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial, nomeou durante o ano passado quinze juízes para os tribunais judiciais de distrito, todos licenciados em Direito e com formação específica ministrada pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária, elevando assim o número de magistrados judiciais para 271. Num esforço tendente a conferir uma maior dinâmica no exercício da judicatura e prevenir os efeitos decorrentes da prolongada permanência de juízes no mesmo local, foram transferidos, por conveniência de serviço, 19 juizes de tribunais judiciais de província e de Direito.
Há duas décadas atrás, o país não possuía funcionários com nível académico superior e apenas 173 tinham o nível médio, num total de 800. Hoje conta-se com 1884 funcionários, sendo que cerca de 450 possuem o nível superior e 758 o médio.

Apontou que o desenvolvimento do capital humano é determinante para a qualidade do serviço prestado em qualquer instituição. De ano para ano tem se vindo a recrutar funcionários, tendo em vista a capacitação institucional, no domínio da gestão do aparelho judicial. É assim que durante o ano transacto foram exarados 490 despachos de nomeação, dos quais 337 são relativos a novos ingressos e 103 respeitantes a promoções. Assinale-se, também, a efectivação de 294 despachos de progressão na carreira, relativos a igual número de funcionários.

ADVOGADO É DESRESPEITADO
Quem também se expressou na abertura do Ano Judicial foram os advogados, através do seu Bastonário, Gilberto Correia, que sublinhou o facto de a classe ainda ser vista e tida, em alguns círculos da justiça, como o elo mais frágil do sistema. Não raras vezes, segundo ele, no exercício do patrocínio forense os advogados são tratados com desrespeito e/ou condicionados na sua actuação. São alvo de abusos de autoridade e de inaceitáveis humilhações, na maior parte das vezes diante dos cidadãos que representam.

“A justiça não tem donos, tem apenas servidores. Num Estado de Direito não pode haver justiça sem advogados” – disse.

Gilberto Correia citou alguns exemplos de intervenções de advogados que acabaram sofrendo actos ilícitos perpetrados contra os causídicos, em exercício de funções, que não quis deixar passar sem a devida nota. Por exemplo, disse que a meio do ano passado foram emitidos dois mandatos de captura contra um advogado e outro estagiário. O segundo acabou mesmo sendo detido e o primeiro viu o mandato anulado, depois de muitas diligencias, tendo o estagiário sido restituído à liberdade 24 horas depois.

“A emissão dos mandatos e as consequentes diligências de captura foram feitas em manifesta violação da norma constitucional contida no artigo 63/3 da Constituição que impõe que a captura e diligências similares contra advogados, em exercício de funções, seja ordenada por decisão judicial, seja efectuada na presença do juiz que a emitiu e com a presença de um representante da Ordem dos Advogados. No caso concreto, esta norma constitucional foi total e conscientemente ignorada. Não foi um juiz que emitiu os mandatos, foi dispensada a presença da autoridade judicial na diligência, assim como do representante da Ordem. Depois da anulação do mandato de captura e da soltura do advogado-estagiário, não mais se deu seguimento ao invocado processo que lhes serviu de base. Os colegas nunca mais foram chamados ao processo, não houve acusação, nem despacho de abstenção e nem sequer foi feita participação disciplinar à Ordem por violação dos deveres profissionais” – explicou.

Para o Bastonário, num Estado de Direito que funcione correctamente, uma destas situações teria ocorrido: ou o advogado e o seu estagiário eram realmente responsabilizados pelos crimes de que vinham indiciados e o processo tinha que prosseguir os seus ulteriores trâmites ou então foram abusiva e ilegalmente violentados e detidos os órgãos e agentes do Estado envolvidos deveriam ter sido exemplarmente responsabilizados pela prática de tão crassas e graves ilegalidades.
Renovou o apelo para que o Estado moçambicano ratifique o Tratado de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional, juntando-se desta forma aos esforços da comunidade internacional no combate a graves violações dos direitos humanos, promoção da paz, justiça e da responsabilização por graves crimes cometidos contra a humanidade. (Hélio Filimone)

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