sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Mercosul, Brasil/Ataque à educação vai tirar o país da sociedade do conhecimento, diz Marilena Chaui



Por Helder Lima e Cláudia Motta

Para professora de Filosofia da USP, Bolsonaro está devastando a educação no país, o que terá graves consequências e levará um bom tempo para ser recuperado


São Paulo – O mundo vive uma época em que conhecimento se traduz em poder. Ciência, pesquisa e tecnologia tornaram-se forças produtivas, capazes de reinserir o homem no cenário econômico, social e político. Com base nessa visão, a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Marilena Chaui, uma das principais referências do pensamento progressista no país, lança suas críticas ao governo Bolsonaro, pelo recorte de seus ataques à educação.

“Mas o que está sendo feito pelo Weintraub?”, pergunta indignada a professora, referindo-se ao ministro da Educação, Abraham Weintraub. “Ele está devastando a educação brasileira, devastando a pesquisa e, portanto, ele está nos tirando da sociedade do conhecimento. Ele nos fará, portanto, apenas servidores daquilo que os criadores de conhecimento farão na metrópole. E nós somos a periferia da periferia.”

Referência também nas discussões sobre estratégias de mobilização da luta em defesa da democracia, a professora afirma que precisamos abandonar a posição de vítimas dos ataques do governo de inspiração totalitária e
neoliberal e assumir uma posição de acusação. “Eu acho que cada setor deveria apanhar aquilo em que você tem elementos fortes de acusação e tomar isso como o foco”, diz.

“É uma coisa inominável, no mundo da sociedade do conhecimento, da informática, da cibernética – ele nos transforma nisso, então, é uma devastação fora do comum. Vamos levar várias gerações para refazer o Brasil.”

No último sábado (12), Marilena, que se esmera em defender a importância das acusações sobre o governo Bolsonaro, foi vítima do destempero nonsense do ministro da Educação, que a acusou de ser ‘nazista’. “Prestem atenção. Peguem o discurso dela e comparem com qualquer discurso do terceiro reich. Agora troquem a palavra ‘classe média’ por judeu”, disparou o ministro em uma fala confusa, como é, aliás, a marca do governo Bolsonaro. Em seguida, Weintraub referiu-se Fernando Henrique Cardoso e a Lula como “doenças”.

A relação de Marilena a essa fala foi ponto alto desta entrevista à RBA. Ponto alto não pela importância de qualquer declaração, mas pelos risos que a fala do ministro provocaram durante a entrevista, deixando a professora completamente à vontade para fazer sua análise de conjuntura.

A entrevista foi concedida ontem (15), depois que ela ministrou aula sobre a história da democracia, no seminário Democracia em Colapso?, que a editora Boitempo e o Sesc Pinheiros, em São Paulo, realizam nesta semana.

Confira a entrevista.

Como lidar com a uberização do trabalho?
Essa é tarefa de um partido político de esquerda. Não é tarefa de grupos, de movimentos, nem de intelectuais. É uma tarefa política que só um partido de esquerda pode realizar, porque só ele é capaz de compreender o grau não só da exploração, mas da alienação. E do fato de que a uberização, a terceirização e a precarização – se houver uma decisão externa do fabricante de jeans, que não precisa deles, basta um apito e meia hora depois não existe mais.

E essa é uma das coisas que caracterizam também essa nova classe trabalhadora, que é o precariado, que não é o trabalhador pobre, mas aquele trabalhador que não se define pela sua ocupação, nem por um contrato de trabalho. E que por isso vai trabalhando com o que aparece.

E o caso da terceirização é algo desse tipo. Isso deixa você completamente vulnerável, porque você tem a ilusão de que é detentor dos meios de produção, mas você é detentor exclusivamente da força de trabalho. Mas eu acho que isso é tarefa de partidos políticos de esquerda.

Eu penso que nós, como grupo, temos de nos esforçar para compreender e explicar. E divulgar essa explicação o mais amplamente que nós pudermos. E forçar dentro dos partidos de esquerda que eles assumam essa questão como algo prioritário, porque é a nova classe trabalhadora. Se você não entender a nova classe trabalhadora, você jamais será um partido de esquerda. Você vai falhar inteiramente.

E penso que do lado das populações vai ser muito difícil o convencimento. Só diante de um desastre, diante de uma tragédia, como a retirada dessa produção, é que vai haver compreensão disso, caso contrário, isso vai se repetir como um modo de ser. Desmontar isso vai ser muito difícil.

A senhora tem sido referência para falar das estratégias de luta contra o colapso da democracia no país. Qual a estratégia de luta que parece a mais viável neste momento?

Onde eu vou a minha palavra de ordem é “não assumir a posição da vítima”, mas assumir a posição do acusador. Na fase inicial das 
manifestações na área da educação, tanto de estudantes, quanto de professores, das universidades, do ensino fundamental, do ensino médio, enfim, as manifestações tinham como tema a perda, o que está sendo tirado, destroçado, devastado, mas na forma da vítima. Nós somos vítimas de um governo que está destruindo a educação.

Eu tenho proposto que a gente mude de tática.

Nós vivemos na chamada sociedade do conhecimento. Isso significa que a ciência e a tecnologia se tornaram as forças produtivas e, como estamos no capitalismo, são as forças produtivas para a acumulação do capital.

Ao dizer que se tornaram as forças produtivas, isso quer dizer que o poder do capital e o do trabalho também estão nos conhecimentos, no saber, na informação e na circulação da informação. E, portanto, o desenvolvimento científico e tecnológico, o desenvolvimento intelectual e artístico é o desenvolvimento de uma forma de poder, uma forma nova de poder, que pode ser para perpetuar o que está aí, como pode ser uma forma crítica, que vai em outra direção.

Mas o que está sendo feito pelo Weintraub? Ele está devastando a educação brasileira, devastando a pesquisa e, portanto, ele está nos tirando da sociedade do conhecimento. Ele nos fará, portanto, apenas servidores daquilo que os criadores de conhecimento farão na metrópole. E nós somos a periferia da periferia.

Então, você tem que ir para a rua dizer para a população que é isso que está sendo feito e como está sendo feito. Um exemplo: ele declarou tempos atrás à imprensa que um dos motivos com os quais ele estava com dificuldade orçamentária foi porque ele teve de deslocar R$ 962 milhões para pagar os deputados e senadores por causa da reforma da Previdência.

Mas isso é um crime, um crime de corrupção em primeiro lugar, e em segundo, um crime administrativo, porque você não pode mexer no orçamento. Então, ele comete dois crimes e você tem que ir na rua dizer, ‘esse cara está cometendo um crime de administração e um de corrupção’. Nós não podemos aceitar isso.

E a cada passo, o modo como eles, por exemplo, estão propondo uma rede básica para a educação fundamental e média. E a cada semana, ou a cada 15 dias, muda porque eles não têm ideia, eles erram, não dá certo, isso antes de aplicar. Do ponto de vista do arcabouço que eles montam, não tem pé nem cabeça, então, desmonta, faz outro, desmonta, e assim para cada área.


Política de livros está assim, CNPq também, Capes, enfim, todas as áreas. Então, tem que ir à rua dizer que não é só que está devastando, eles não sabem o que fazer, eles não acertaram, eles não conseguem acertar, eles são totalmente incompetentes.

Atualmente, eu acho que para cada setor – e eu falo de educação que é o setor que eu conheço mais – mas eu acho que cada setor deveria apanhar aquilo em que você tem elementos fortes de acusação e tomar isso como o foco. E não: ‘Ah, nos tiraram isso, nos tiraram aquilo’. Não assumir nunca a psicologia da vítima, jamais, porque você se deixa subjugar se você fizer isso. É preciso inverter, mudar o foco, para ir em frente.

Essa tem sido a minha proposta política, de mudar o foco.

E a referência que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, fez à senhora no sábado (12), acusando seu discurso crítico à classe média como discurso nazista? Como isso chegou para a senhora?

Um amigo, o Paulo Sérgio Pinheiro, mandou para mim uma carta, em minha defesa, e disse que ia mandar para a Comissão Arns.

E aí eu perguntei para ele: por que eu precisava de uma carta em minha defesa? Depois eu telefonei para o meu filho, porque não entendo nada de computador. ‘Tem um negócio que o Weintraub falou de mim, como vou saber?’ Vai no Google e põe ‘Weintraub Chaui’, ele disse. E aí meu marido fez isso, não tenho paciência. Mas o que é interessante na Classe Média… Eu não sei se vocês se lembram, mas o Gabeira fez isso comigo, na véspera das eleições no O Globo. E pensei comigo, o que será que o Gabeira acha do Weintraub, e eles estarem ali juntinhos, amiguinhos.

Mas o que eu achei interessante é que e ele me acusou de nazista e aí ele faz o discurso sobre o Fernando Henrique e o Lula como doença. E ele produziu aquilo que é a súmula perfeita, o núcleo perfeito do discurso nazista. Por quê? O discurso nazista não trabalha nem com a noção de cultura, nem com a noção de história. Ele trabalha com a ideia de natureza. E dentro da natureza, no caso dos seres humanos, com a biologização. É por isso que ele introduz o conceito de raça – raça superior, inferior – ele trabalha com isso porque é uma questão biológica.

E ao analisar a sociedade em termos biológicos, ele analisa a sociedade em termos de doença. Então, no discurso nazista, o socialista, o comunista, o judeu são doenças. E foi o que o Weintraub fez, no auge da sua ignorância e incompetência, me chamou de nazista e produz, ele, o discurso nazista da doença, chamando o Fernando Henrique de portador de AIDs e o Lula como doença. Isso é o núcleo do discurso nazista. Ele é nazista, e ele não sabe (risos).

O tempo todo é isso (risos), cada vez que eles abrem a boca eu penso, ‘Meu Deus’.

Se eu soubesse fazer batucada com caixa de fósforo, cada vez que eles abrem a boca eu faria uma batucada: ‘Quem é você que não sabe o que diz, meu Deus do céu que palpite infeliz…’ (letra de Palpite Infeliz, de Noel Rosa).

Mas ao mesmo tempo nós temos de nos levantar, nos organizar, porque eu acho que eles ficam aí quatro anos. E a devastação… O que eles fizeram: veja, não é só a devastação ecológica. Tem a devastação da infraestrutura industrial, a transformação do Brasil naquilo que ele foi no século 19 e na primeira metade do século 20, um país agroexportador.

É uma coisa inominável, no mundo da sociedade do conhecimento, da informática, da cibernética – ele nos transforma nisso, então, é uma devastação fora do comum.

Vamos levar várias gerações para refazer o Brasil.

Em cada área você tem isso. Se você pedir para as pessoas fazerem um balanço do que está sendo feito, você tem o relato de uma devastação. E feita por gente incompetente, que erra. Não é que faça a devastação e acerta, vai por um rumo que a gente não queria, não queria ir por aí, mas vai, paciência.

É um rumo de total incompetência. Eles reformulam ininterruptamente, você não sabe também onde está o país. Tem estado, tem governo e tem toda a pirotecnia dos discursos do Bolsonaro e da família, mas isso é cortina de fumaça. Só que é um governo incompetente. E a gente não se deu conta disso. Eu sinto que uma parte da sociedade ficou muito decepcionada; a outra está estupefata, e todo o mundo está desorganizado, porque os partidos de esquerda estão muito quietos, estão muito preocupado com as eleições, em vez de organização social.

E a questão da legitimidade do processo democrático, que foi ferida em 2018 por meio das fake news na campanha do Bolsonaro? O que temos de fazer para resgatar a democracia ante as próximas eleições, em 2020?

Por isso, a minha ênfase é sempre na questão dos direitos. Temos que repor a questão dos direitos, porque temos o que aconteceu com o desemprego, a reforma da Previdência, a reforma trabalhista, ou seja, você tem uma sociedade desamparada, devastada. Tem que recuperar a dignidade, o que é uma luta por direitos.

Eu acho que nessas eleições tem que recuperar a democracia, afirmação de direitos e nós vamos lutar por direitos. Eu iria por esse caminho e o da acusação. Vítima não sou, não sou mesmo.

Os partidos de esquerda têm condições de fazer esse papel?

Eu acho que não, mas eles têm que trabalhar para conseguir. Não dá para continuar nessa visão meio fantasmática da redoma. Os partidos já estão definidos, eles têm suas linhas, suas teses, seus programas etc. e estamos conversados. Pelo contrário. É agora que a conversa começa. Eu diria que precisava dar um tranco nos partidos.

Mas diante da manipulação de 2018, como vamos encarar as eleições em 2020?

Vocês viram um artigo que o Boaventura (Souza Santos, jurista e sociólogo português) publicou e que começa assim: “Espanta-me a passividade da sociedade brasileira no momento em que a cloaca do país sobe à tona e só se vê essa porcaria, e a sociedade não está fazendo nada.” Ele escreveu isso uns cinco meses atrás. Eu acho que temos de começar por aí. Não é só a questão da legitimidade, é da indecência, é indecente. Eu não me esqueço o primeiro instante em que o macarthismo começa a entrar em declínio, é na hora que aquele famoso advogado já ancião foi chamado a depor e ele disse para o McCarthy: ‘O sr. não tem nenhuma decência’. E isso foi levado para o país inteiro. Então, eu acho que é aí que tem que ser, é uma coisa indecente, nós não podemos aceitar, não é que é indecoroso, ilegítimo, é indecente, não podemos aceitar isso. E esse é um dos focos de não ser vítima e ser acusador.

E sobre o Lula?

Quando eu conheci o Lula ele ainda era presidente do sindicato. Foi na greve e eu fiquei estupefata com a velocidade, a presença de espírito, a rapidez do raciocínio e da inteligência quando as coisas estão ainda em formação para acontecer. E isso não é só uma capacidade intelectual, mas uma capacidade moral que ele tem. Ele tem uma força moral, uma força de espírito para dar um sentido ao que acontece que eu não conheço em ninguém. Ele é capaz de entender intelectualmente, de entender moralmente e de responder à altura. É um gigante.

*Publicado originalmente na 
Rede Brasil Atual


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