28 de outubro de
2019, 09:50 h, Brasil 247 (Brasil) https://www.brasil247.com/blog/america-latina-luta-e-volta-a-esquerda
Emir Sader*
Para o sociólogo Emir Sader, "a América Latina não apenas volta à
esquerda", mas "luta à esquerda, desmontando o modelo neoliberal no
seu eixo fundamental, o Chile". Neste cenário, diz ele, "a evolução
da situação brasileira será determinante" para a terceira década do
continente no século XXI
Nosso
continente continua a ser o cenário das mais importantes lutas do mundo
contemporâneo – contra o neoliberalismo e pela construção de alternativas ao
modelo adotado pelo capitalismo no período histórico atual. O fôlego da
retomada neoliberal se confirma como curto. Derrota espetacular de Mauricio
Macri na Argentina, do tamanho da euforia que sua vitória havia despertado. Evo
Morales, na Bolívia, aguenta firme, apesar da ofensiva da direita e da perda de
apoios. No Uruguai, a Frente Ampla continua como a maior força política, mas
vai ter parada dura no segundo turno, pela soma das direitas e também pela
perda de apoios. Na Colômbia, as eleições municipais representam dura derrota
para o atual presidente, Iván Duque, representante do uribismo, se
fortalecem candidatos do campo popular e vinculados ao novo líder da esquerda,
Gustavo Petro.
A Argentina confirma as
fragilidades do neoliberalismo, que a direita não tem outra alternativa, que
não aprendeu do esgotamento do seu modelo, que se enganou quanto ao sucesso dos
governos antineoliberais, volta com sua política de ajustes fiscais e revela
sua incapacidade não apenas de retomar o crescimento econômico e atacar o
desemprego, como, em decorrência disso, de
conquistar bases de apoio
suficientes para ter governos com estabilidade política.
Apesar da recomposição da
direita, Evo se apoio em suas bases populares, em grande medida o movimento
indígena, para resistir, triunfar eleitoralmente, e ganhar um novo mandato,
importante não apenas para completar a extraordinária recuperação econômica e
as conquistas sociais e étnicas da Bolívia, como também para recompor suas
forças políticas de apoio.
Na Colômbia também um
governo neoliberal paga o preço do desgaste desse modelo, assim como da
política repressiva e autoritária de Álvaro Uribe, retomada pelo presidente
atual. O governo foi derrotado em todas as frentes, a começar por Bogotá e por
Medellin, projetando derrota nas próximas eleições presidenciais, com
favoritismo de Petro.
Mas a América Latina não
apenas volta à esquerda, luta à esquerda, desmonta o modelo neoliberal no seu
eixo fundamental, o Chile, e destrói a possibilidade de Lenín Moreno
restabelecer o neoliberalismo no Equador. Explosões populares foram a resposta
do povo às medidas de ajuste fiscal, que tiveram como reação o recuo aberto de
Piñera e de Moreno, revelando como seu modelo é frontalmente antipopular e como
o povo já o percebeu e não tolera a continuidade das medidas antipopulares.
Esses governos se esgotaram. No Equador se desenha o retorno de governos
ligados a Rafael Correa. No Chile, onde a direita tradicional liderava as
pesquisas, a esquerda – especialmente a Frente Ampla – tem uma nova e grande
oportunidade de voltar a polarizar contra o governo de Piñera.
A primeira década do século
XXI na América Latina foi claramente de esquerda, com protagonismo dos governos
antineoliberais, e dos seus líderes – Hugo Chávez, Lula, Néstor e Cristina
Kirchner, Pepe Mujica, Evo Morales, Rafael Correa – como as principais
lideranças de esquerda no mundo. A contraofensiva conservadora se impôs na
segunda década do novo século, com as vitórias de Macri e de Jair Bolsonaro, a
virada do governo de Moreno, o isolamento internacional do governo de Nicolás
Maduro, no marco da eleição de Donald Trump e da vitória do Brexit. A China se
reafirma como a grande potência do século XXI e os Brics como o projeto de
construção de um mundo multipolar, alternativo à hegemonia imperial
norteamericana em declínio.
Essa ofensiva revelou logo suas debilidades, a começar pelo próprio Trump e
pelo Brexit, pela derrota do governo do Salvini na Itália, do Netanyahu em
Israel, até que se consagrou aqui com a formidável vitória de Alberto Fernández
e Cristina Kirchner, de Evo e as fantásticas mobilizações populares no Equador
e no Chile. A terceira década promete ser a da retomada da esquerda e do recuo
da direita na América Latina.
Com todos os avanços
existentes, os governos progressistas em dois dos três países mais importantes
do continente – México e Argentina –, com a continuidade do governo de Evo na
Bolívia, o decisivo, uma vez mais, recai sobre o Brasil. Duas tendências
marcaram a política do país ao longo deste ano: a tendência a um
enfraquecimento acelerado do governo de Bolsonaro e ao fracasso da sua forma de
fazer política – uma caricatura de Trump. E o fortalecimento da imagem de Lula,
não apenas com a reabertura de possibilidades de recuperação da sua liberdade,
como da força política que sua liderança recuperou sobre o cenário político
brasileiro, com reconhecimento até mesmo de setores tradicionais que sua
presença se torna indispensável para a recuperação política do Brasil. Antes de
tudo, uma reação de massas às tantas medidas antipopulares do governo atual,
assim como a reconstrução do modelo de crescimento econômico com distribuição
de renda, precedido de um projeto de reconstrução nacional, diante das
políticas de destruição do país dos governos Temer e Bolsonaro.
A liderança de Lula é
indispensável nesse processo, mas ela tem que contar com um movimento de massas
muito mais ativo e radical nas suas reações às políticas do governo, assim como
uma esquerda com espírito unitário e combativo na luta pela reconstrução de uma
força que polarize diretamente contra o governo, deixando as contradições
internas à direita como fenômeno secundário.
A evolução da situação brasileira será assim determinante para a terceira
década da América Latina no século XXI. O país precisa recuperar seu governo
popular, para recompor, junto com México e Argentina como líderes, o processo
de integração regional e como baluartes mundiais na luta fundamental do
nosso tempo – a da derrota e de superação do neoliberalismo.
*Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais
sociólogos e cientistas políticos brasileiros.
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