terça-feira, 1 de outubro de 2019

Sobre a tentativa de destruir a credibilidade de Greta Thunberg


 

 Greta Thunberg. (Foto: Wikimedia)

Por Sandra Russo

Chegou cedo demais, para Greta Thunberg (de apenas 16 anos), o tempo de enfrentar o problema da estigmatização.

Desde a semana passada, em mais de mil cidades do mundo, uma quantidade incalculável de estudantes a apoiaram na luta para combater a crise climática. Ao mesmo tempo, os grandes meios de comunicação da Europa iniciaram uma campanha de ridicularização que pode ser entendida como o primeiro caso de bullying global. Sua vítima é essa adolescente sueca. Uma menina que foi diagnosticada, aos 10 anos, com síndrome de Asperger.

Ela mesma já relatou, em uma palestra TED, diante de um enorme auditório, que sempre foi muito calada, muito solitária, uma pessoa que só fala quando é realmente necessário. Com voz sempre pausada e meditando palavra por palavra, disse nessa conversa, olhando para o público: “por isso estou falando hoje aqui, porque é realente necessário”.

Aos 14 anos, ela considerou que também era realmente necessário falar para multidões sobre a crise climática, e em auditórios como o Parlamento Europeu ou
o Foro de Davos, porque foi compreendeu a dimensão histórica de sua causa: se sua geração não atuar agora, eles serão os adultos que enfrentarão os problemas de um planeta que caminha para não ser mais viável. Portanto, é preciso ir às ruas agora, porque está em risco o seu futuro.

Segundo todos os diagnósticos científicos, as emissões tóxicas têm que começar a ser reduzidas agora! Não “em breve”, porque depois já não haverá mais tempo. Nesta mesma semana, 20 mil cientistas de todo o mundo aderiram ao movimento Sexta-Feira pelo Futuro, que reúne os estudantes de mais de cem países, cujo primeiro grande passo foi dado no dia 15 de março. “Os jovens têm razão”, foi o título do documento de adesão.

A crise climática provocará desastres e desequilíbrios no ecossistema de uma forma irreversível e sem precedentes em milhares de anos. Quando Greta entendeu isso, ela decidiu iniciar sua greve, e despertou o movimento. Começou sozinha, faltando às aulas todas às sextas-feiras, para protestar pela falta de decisões políticas mundiais para acabar com a crise climática.

Em dois anos, o que começou como uma atitude decidida de uma menina em defesa do seu direito, e dos seus filhos e netos, de viver neste planeta, se tornou um fenômeno global. Os grandes meios a questionaram ou a ocultaram, como fazem com tudo o que lhes parece incômodo ou ameaçante. Mas em mais de mil cidades, a influência de Greta Thunberg levou milhares e milhares de adolescentes a marchar para que seus governos tomem medidas com relação às emissões tóxicas, e para que o sistema não siga acelerando a extinção das espécies, pois a humana também é uma das que está em risco.

Mas a imprensa fez muito mais que ignorar esse movimento. Quando o movimento Sextas-Feiras pelo Futuro se tornou visível apesar do bloqueio midiático, graças às redes sociais, começou um ataque simultâneo de ridicularização e degradação da figura de Greta. Primeiro, a mostraram comendo uma banana. Como não há bananas na Suécia, a foto pretendia ser uma denúncia de que Greta a estava comendo graças ao combustível usado para trazer a fruta desde um país tropical. A mostraram com seus cachorros, indicando que eles comem carne, e portanto, ela tampouco seria consequente nesse sentido. Mas o ataque mais desagradável foi o do diário francês Le Figaro, através de um comentário não filtrado e que se referiu à síndrome de Asperger de Greta: alguém opinou que era “uma vergonha ver tantos jovens se deixando liderar por uma zumbi”.

A voz de Greta ainda não conseguiu perfurar o silêncio imposto pelos grandes meios, mesmo com sua lógica rasante, direta e áspera, nem com o que ela disse no Parlamento Europeu: “sei que vocês não gostam de me ver aqui, e eu tampouco queria vê-los, porque não fizeram o que tinham que fazer. Nós vemos os informes científicos, o que pedimos é que ouçam o que os cientistas estão dizendo, porque quando nós formos os adultos, já seja tarde demais para reverter”.

O movimento Sextas-Feiras pelo Futuro encarna o sentimento de uma geração que começa a fazer política a partir dessa bandeira vital e poderosa. Com seus próprios corpos, eles gritam, protestam, e desenvolver seu pensamento. Seus corpos reclamam o direito ao habitat. Eles alertam, com muito mais claridade e precisão que as outras gerações, sobre a gravidade deste momento limite. Eles estão se configurando em um importante setor da resistência global ao modelo tanático que está nos avassalando.

O poder das finanças, dos transgênicos, das patentes, dos abutres, enfim, a ala mais dura da direita que colocou sua pata suja sobre tantos territórios, e que nega a crise climática. Para Trump, se trata de uma “mentira da esquerda”. E é nesse contexto de resistência ao efeito de irrealidade propagado pela direita que se deve ler este inédito movimento liderado pela menina de tranças loiras, que afirma eloquentemente: ou se atua agora ou não haverá lugar seguro na Terra para que os que hoje têm quinze anos vivam suas vidas e tenham seus filhos, e continuem assim com a perpetuação da espécie.

A política da direita global promove a morte em diversas formas: guerras, fome, catástrofes naturais, tiros pelas costas, como os que recebem os líderes sociais no Peru e na Colômbia, ou os moradores das favelas do Brasil, além de homens e mulheres dos povos originários, que estão mortos por defender os recursos naturais. Pessoas que travaram a mesma luta que a de Greta Thunberg, mas em outra região, e em outra linha histórica. A demanda é a mesma: querem vida! Viver! Querem o necessário e suficiente para que a vida seja possível. Querem o equilíbrio indispensável para viver.

Esta é a questão sobre a qual transcorrem nossas próprias e assombrosas circunstâncias nacionais. Não custa muito compreender que há um poder feroz que está por cima de todos nós, e que é indecifrável, mas que tem a capacidade de zelar para que nada detenha a morte. Também podemos perceber, com certa esperança, que há sincronias históricas não menos assombrosas, e que a resistência a esse projeto de morte cresce e se nutre de fenômenos impensados. Greta e sua geração já são um novo fator global, que colabora com seu enorme grão de areia na luta pelo projeto da vida. Greta é um sintoma da regeneração da vida.

*Publicado originalmente no Página/12 (Argentina)| Tradução de Victor Farinelli


Artigo de blogueira do Estadão ataca Greta Thunberg com preconceito contra autistas aspies


Por Robson Fernando de Souza

Um artigo repleto de preconceito está causando revolta e indignação na comunidade brasileira de autistas e seus familiares. Intitulado As trancinhas teleguiadas do “produto” Greta Thunberg, o texto escrito por Sheila Leirner, publicado em seu blog da seção Cultura do portal do jornal Estadão na manhã do último dia 30 de agosto, dirige ataques pessoais à adolescente ambientalista sueca Greta Thunberg, de 16 anos, e à sua família, usando como mote principal a Síndrome de Asperger da garota, uma condição branda do espectro autista.

O teor preconceituoso do artigo
Contra Thunberg, a blogueira articulista usa termos e afirmações bastante preconceituosos e desrespeitosos, de teor fortemente capacitista, incluindo menções jocosas a características físicas da adolescente, como:

– “trancinhas teleguiadas”, tanto no título quanto no corpo do texto, em referência ao fato de Greta gostar de usar tranças no cabelo e à acusação de ela ser “manipulada” e “guiada” por movimentos sociais e grupos políticos;
– “rosto [que] não revela nenhuma empatia”, em alusão à expressão facial que Greta tem dificuldade de modular e flexibilizar justamente por ela ser autista;
– “vítima vergonhosa e covardemente manipulada”;
– “garotinha de olhos duros”, numa outra referência à dificuldade dos autistas de modular sua expressão facial;
– a afirmação de que Greta “sempre [a] irritou além da conta”;
– a insinuação de que a condição autista faria dela uma jovem “manipulável” pelos pais e pela “extrema-esquerda anticapitalista”;
– e a última frase do texto: “a sua greve climática parece ser uma maneira bem esperta de cabular as aulas!”.

Não bastasse isso, Leirner promove, no terceiro parágrafo do texto, todo um discurso preconceituoso e discriminatório sobre crianças e adolescentes aspies. O trecho já começa assim: “Greta Thunberg é manipulável a tal ponto que os próprios pais tornaram pública a sua perturbação neurológica [sic] – o que, na minha opinião, é de uma grande irresponsabilidade, para não dizer imoralidade. Mas essa opinião não é só minha. Hoje, vários médicos franceses acreditam que revelar o estado neuropsiquiátrico de menores à mídia deveria ser considerado um delito.”

Essa menção aos “vários médicos franceses” nos remete ao fato de que, na França, existe ainda hoje todo um regime de violação sistemática de direitos humanos contra pessoas autistas de todas as idades e posições do espectro, situação denunciada inclusive em relatório da ONU, sustentado pelo chamado modelo médico do autismo, ou paradigma da patologia, que naquele país tem influência dominante da psicanálise pós-freudiana e, assim, é ainda mais cruel contra essa minoria política do que o modelo médico, que já é cruel e capacitista por natureza.

É comum, naquele país, autistas serem submetidos a internação compulsória em manicômios e hospitais psiquiátricos, separados à força de suas famílias, terem seu acesso à educação escolar negado, não serem corretamente diagnosticados e terem sua condição associada ainda nos dias de hoje à já refutada teoria da “mãe-geladeira”, entre diversas outras violações.

A constatação, por parte dos movimentos de direitos autistas franceses e de outros países, é que a França está cinquenta anos atrasada, em comparação com muitos outros países, no que concerne à forma como a sociedade, a maioria da comunidade médica e o próprio Estado tratam os autistas.

Voltando ao texto, a blogueira prossegue com seu discurso capacitista, afirmando que “crianças Asperger [sic] são às vezes geniais, mas sempre frágeis”, “precisam de serenidade, cuidados especiais e não podem ser expostas, mesmo se assim quiserem” e que “um menor com uma perturbação [sic] do espectro autista, tanto quanto outros menores, ‘não tem que querer’ [grifo meu], os adultos são ainda mais responsáveis por ele”.

Insinua assim, ao longo do parágrafo, que crianças e adolescentes aspies seriam pessoas incapazes, desprovidas de inteligência e pensamento crítico autônomo, meras marionetes de seus pais e dos adultos neurotípicos e frágeis demais para desfrutar de diversas liberdades individuais previstas na Constituição – e, por isso, deveriam ter sua condição escondida do mundo e ser tratados com paternalismo, discriminação e segregação, ao ponto de terem até mesmo parte de seus direitos fundamentais negados.
Edições anteriores desse texto pegavam ainda mais pesado, chamando Greta Thunberg de “menor doente” e a síndrome de Asperger de “doença” ou “psicopatia”.

O restante do texto não se ocupa tanto em atacar diretamente a garota, mas traz todo um discurso de intolerância e ódio ideológico contra o Fridays for Future, movimento ambientalista juvenil internacional que ela tem inspirado, influenciado e indiretamente liderado.

Com um linguajar bastante virulento, alude ao movimento como “ecocatastrofismo”, “agenda liberticida em nome dos ‘bons sentimentos'”, “idiotas úteis da ditadura verde” e como uma juventude “instrumentalizada” pela “extrema-esquerda”. E parafraseia um discurso etarista do médico francês Laurent Alexandre, segundo o qual “os jovens que fazem greve escolar são manipulados”.

A reação da comunidade autista
Logo que autistas e familiares defensores da neurodiversidade tomaram conhecimento do artigo, ele começou a ser denunciado no Twitter, em diversos grupos de autistas aspies no Facebook, em mensagens enviadas a várias páginas sociais de autistas pela neurodiversidade e mães de autistas, em postagens e compartilhamentos de páginas sociais do Facebook e do Instagram.

Relata-se que o texto foi denunciado ao Ministério Público Federal, ao Reclame Aqui, ao Fórum dos Leitores do Estadão e ao e-mail oficial do portal de notícias, uma vez que feriu diversas diretrizes do Código de Conduta e Ética do Grupo Estado, entre eles o “respeito ao público externo, credibilidade, reputação e imagem”, a defesa editorial dos “direitos e as liberdades individuais, o pluralismo democrático e a identidade sócio-cultural do Brasil e de São Paulo” e a recusa “a veicular teses que neguem a liberdade, atentem contra a dignidade da pessoa humana ou agridam os princípios da ética informativa definidos” no código.

Com esse esforço, o conhecimento sobre o artigo capacitista, psicofóbico e etarista de Leirner e a indignação pública por causa do texto estão se espalhando numa reação em cadeia entre a comunidade autista brasileira.

Vários autistas militantes e mães de autistas se posicionaram em repúdio, como Robson Fernando de Souza, do blog Consciência Autista, Andréa Werner, do site Lagarta Vira Pupa, Victor Mendonça e Selma Sueli Silva, do canal e site Mundo Asperger, Ciel Souza, da página Vida no Espectro, Calinca Alcantara, do blog Rivotrip, Adriana Torres, do blog Comunicando Direito, Thaís, do canal e blog Mamãe Tagarela, as páginas Autistando, Asperger e Autismo no Brasil, a equipe do podcast Introvertendo, entre muitas outras pessoas e grupos, além de páginas de esquerda, como Anarcomiguxos e Meu Professor de História. Cada vez mais pessoas, tanto em postagens quanto em comentários, estão exigindo que a autora seja legal e profissionalmente responsabilizada e obrigada se retratar, e que o Estadão dê um posicionamento oficial sobre o texto e conceda direito de resposta aos autistas.
Sob pressão das redes sociais, a blogueira fez no texto pequenas edições, tentando diminuir a forma pejorativa e odiosa pela qual se referiu à síndrome de Asperger. Sem sucesso, porque o artigo continua promovendo preconceito e apologia à discriminação e despertando cada vez mais revolta da comunidade brasileira de autistas e familiares.

Leis que protegem pessoas autistas, em especial as crianças e adolescentes
A síndrome de Asperger, por ser uma condição inclusa no espectro autista e seus critérios diagnósticos previstos no antigo DSM-4 e no hoje vigente DSM-5 (agora como Condição/Transtorno do Espectro Autista de nível leve), se encaixa no Artigo 1º, § 1º, da Lei Federal da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (nº 12.764/2012) e é considerada uma deficiência segundo o parágrafo 2º do mesmo artigo da mesma lei.

Portanto, os aspies, especialmente crianças e adolescentes, têm seus direitos assegurados por leis como a Lei da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (nº 12.764/2012), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015) e, no caso das crianças e adolescentes aspies, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

É preciso ressaltar que essas três leis asseguram a todos os autistas os direitos contra os quais o texto da blogueira se coloca. Entre eles estão a liberdade de expressão, o livre desenvolvimento da personalidade, a inclusão social irrestrita, respeitando-se as necessidades específicas intrínsecas à condição, a igualdade de oportunidades, a participação política democrática e ativa e a proteção contra toda forma de discriminação.

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Robson Fernando de Souza é escritor, autista aspie defensor da neurodiversidade.

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