26
de junho de 2019, 17:08 h
Gilvandro Filho, membro do Jornalistas pela
Democracia, escreve sobre Dona Elzita Santa Cruz, que partiu nesta terça-feira,
aos 105 anos, "personagem fundamental para se entender o que se passou
neste país e o que não pode se repetir. Uma mulher que enfrentou uma das
ditaduras mais cruéis de que se tem notícia na América Latina. Mas, sempre com
uma palavra de carinho, com muito amor no olhar e não raro com um sorriso nos
lábios"
Por Gilvandro Filho, do Jornalistas pela
Democracia - Dona Elzita Santa Cruz, que partiu nesta terça-feira,
aos 105 anos de idade, é um dessa mulheres a quem podemos chamar, sem medo de
erro, de heroína. Foi uma vítima das mais sofridas da ditadura militar que
atingiu o País durante 21 anos, a partir de 1964. Em 1974, naquele que é tido
como o período mais sanguinário da história recente do Brasil, o governo do
general e ditador Emílio Garrastazu Médici, ela perdeu o filho Fernando, então
um jovem com 26 anos de idade, que foi preso, torturado, assassinado e
dado
como desaparecido pelas décadas seguintes.
Dona
Elzita foi muito mais que uma guerreira. Ela é personagem fundamental para se
entender o que se passou neste país e o que não pode se repetir. Uma mulher que
enfrentou uma das ditaduras mais cruéis de que se tem notícia na América
Latina. Mas, sempre com uma palavra de carinho, com muito amor no olhar e não
raro com um sorriso nos lábios. Dona “Zita”, como nós, os seus amigos e
“filhos” lhe chamavam, nunca viu pessoalmente Ernesto Che Guevara. Mas é
incrível como o líder guerrilheiro cunhou sua frase mais marcante sem tê-la
conhecido. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.
Dona
Elzita perdeu Fernando num sábado de carnaval. Com a família, marido e filhos,
ela sempre morou em Olinda; Fernando, nessa época morava no Rio de Janeiro,
onde estudava e fazia militância política em um tempo de guerra e de guerrilha.
O jovem era militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), um braço
político da esquerda revolucionária que também contava com outras organizações,
mas de luta armada. Se não voltasse até a noite, certamente teria sido preso,
previu ele à irmã, que morava em Laranjeiras. Não voltou. E sumiu numa esquina
de Copacabana, junto com seu companheiro de organização Eduardo Collier Filho.
Os dois tinham um “ponto” para “cobrir”. A polícia já estava de tocaia.
A partir
daí, a vida de Dona Elzita transformou-se em procura e em cobrança. Com a fibra
de mulher nordestina e uma coragem invulgar, ela passou, junto com os filhos, a
percorrer quartéis, delegacias, gabinetes, imprensa, hospitais, cemitérios. Em
todos os lugares e a todas pessoas, pedia ajuda, exigia resposta à pergunta que
lhe acompanhou ao longo de toda a vida: “Onde está meu filho?”. A busca durou
até o dia de sua partida, neste 25 de junho de 2019, quando Dona Elzita virou
estrela-guia; certamente servirá de norte para tantas pessoas que lutam contra
a tirania e a injustiça.
Dona
Elzita bateu à porta de líderes de todos os lados, dos opositores da ditadura
aos seus aliados. Valiam todos os esforços por uma palavra sequer que pudesse
dar uma pista de Fernando Santa Cruz e de Eduardo Collier. Dos cúmplices do
regime militar, recebeu, normalmente, desprezo, frieza e cinismo. Vivíamos
governos que não davam satisfação a ninguém e que tinha na tortura, no
assassinato e no sumiço de corpos as armas de guerra que deixaram milhares de
famílias sem pais, mães, filhos, filhas, irmãos, irmãs. Mesmo quando algum dos
militares tentava ajudar, o boicote era imediato. Foi o caso do marechal Juarez
Távora, figura histórica que tentou interceder atrás de notícias de Fernando,
sem sucesso.
A luta e
a pergunta de Dona Elzita foram contadas nas duas edições do livro “Onde Está
Meu Filho?” (Editora Paz & Terra, SP, 1984 e Editora Cepe/Governo de PE,
2012), a segunda atualizada com fatos ocorridos a partir de 1984. E que foram
muitos. Da primeira notícia surgida sobre Fernando e Eduardo (ver abaixo) até a
indicação de Dona Elzita como concorrente ao Prêmio Nobel da Paz. O livro foi
escrito por Chico de Assis, Glória Brandão, Jodeval Duarte, Nagib Jorge Neto,
pela ex-deputada (já falecida) Cristina Tavares e, com muita honra, por este
que vos escreve, Gilvandro Filho.
A luta da
família Santa Cruz não teve fim. Mas, em 2012, surgiu a primeira notícia
concreta a respeito do paradeiro, pelo menos dos corpos, de Fernando e Eduardo.
O delegado aposentado e ex-agente da ditadura Cláudio Antônio Guerra, no livro
“Memórias de uma Guerra Suja”, de autoria de Marcelo Netto e Rogério Medeiros,
revelou que foi autor de um trabalho sujo como poucos no regime militar. Ele
foi encarregado de “dar fim” a 12 corpos de militantes mortos sob tortura e
escolheu um meio sem similar em termos de crueldade. Jogou todos os corpos -
entre eles, os de Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier - nas fornalhas da
Usina Cambahyba, em Campos, Rio de Janeiro.
A usina
de cana pertencia ao empresário Heli Ribeiro, vice-governador do Rio
(1967-1971), entusiasta da ditadura e dos métodos repressivos por ela
utilizados, e membro da famigerada Tradição, Família e Propriedade (TFP),
organização ligada à extrema-direita católica. A usina servia de campo de
concentração e “desova de terroristas” mortos pelas forças de segurança.
A
história de Dona Elzita sinaliza para tempos que não podem mais voltar. E serve
de alerta contra aqueles que clamam pelo retorno da ditadura, da censura, da
tortura e da morte impune e consentida. Alerta contra aqueles que têm como
ídolos torturadores e genocidas. Pessoas, fatos e situações que passaram a
encontrar guarida entre os integrantes da direita radical que formam a
“entourage” do poder nos tempos atuais e de um governo eleito com base em
promessas de volta de regime de força, armamento da população, fim de
conquistas trabalhistas e sociais. Contra tudo isto, que a memória de Dona
Elzita sirva de trilha e de farol.
Dona Elzita Santa Cruz - PRESENTE!
Ditadura - NUNCA MAIS!
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