sexta-feira, 30 de março de 2012

Portugal/NA GUERRA CONTRA A FRELIMO: “NÃO HOUVE DIA SEM MORTOS E ESTROPIADOS” – TESTEMUNHO DE MILITAR PORTUGUÊS


26 março 2012/Rádio Moçambique http://www.rm.co.mz

Por: João Cruz Azevedo, Militar em Moçambique (1968-1970) in www.cmjornal.pt

Feridos e mortos eram muitos, e botas ainda com o pé, separadas do corpo, era o que se via mais. Ainda me custa falar disso; as cenas voltam à memória quando se fala delas.

Fui em rendição individual cumprir serviço militar, mas não integrado numa incorporação e sim para substituir outro indivíduo, que deve ter morrido ou ficado ferido, não sei pormenores. Sei que fui enviado para Lourenço Marques, Moçambique, e a minha primeira missão foi dar formação às tropas indígenas. Essa tarefa não era fácil, pois só falavam dialectos e muitos eram apanhados, não iam de livre vontade, e mantinham hábitos tribais, passavam muita fome. Na segunda fase de formação foi melhor, fui dar curso a oficiais e sargentos, tropa local que estava lá de livre vontade. Essa fase foi boa se comparada com os combates. Ali havia segurança. Na zona de Nampula e Cabo Delgado é que havia guerra. 

Passados seis meses em Lourenço Marques calhou-me a parte difícil. Estive 18 meses em Mueda, o coração da guerra. Havia picadas, minas, escoltas a viaturas para abastecer, capturas é que não fazíamos. As picadas eram as estradas sem alcatrão, com muitas minas anti-carros e anti-pessoais. Feridos e mortos eram muitos, e botas ainda com o pé, separadas do corpo, era o que se via mais. Ainda me custa falar disso; as cenas voltam à memória quando se fala delas. 

Sentíamos medo de tudo e a guerra psicológica era difícil de suportar. Lá não havia heróis e o problema maior eram as minas, havia ataques deliberados, sofremos muitas baixas e não houve dia em que não se registassem mortos e estropiados. 

Levantar ou rebentar
Nas colunas, havia um grupo que ia à frente com arame grosso, e esses é que sofriam. Quando detectavam alguma coisa eu tinha o papel ingrato de decidir o que fazer. Éramos obrigados a levantar minas, pois o Salazar queria exibir isso como troféu junto das Nações Unidas, mas nós fazíamos o rebentamento, pois era menos arriscado. Ainda assim, houve muitos feridos e estávamos dependentes da sorte. À noite, os helicópteros não passavam e quem sofresse um acidente nessa altura bem podia esvair-se em sangue. O único hospital que existia era em Mueda, onde os enfermeiros e médicos eram os verdadeiros heróis. Faziam operações e salvamentos diários. 

Tive alguns problemas que me iam levando à prisão. Como alferes chefiava o esquadrão na zona de Cabo Delgado e recusei uma missão porque não tinha sido estudada de acordo com a realidade. O coronel Matos Gomes já falou sobre isso no livro ‘Nó Gordio’. Fomos preparados para uma guerra como a de 1914/18 e apanhámos com uma guerra de guerrilha, num terreno cheio de capim, onde tínhamos de desbravar caminho à catanada. Os militares de carreira só de vez em quando iam ver o terreno, mas nós andávamos lá, sabíamos que havia minas, emboscadas. Muitas vezes éramos 11 contra 50; eles eram sempre muitos. E todos os dias sofríamos mortos, quando devia haver mais baixas do outro lado. 

E nessa altura começaram a surgir grupos politizados. No final da comissão sabia que não havia futuro, que a descolonização era inevitável. Actualmente sou presidente do núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes, contacto diariamente com a realidade dos que foram abandonados e sei que o stress de guerra é real. Mas já voltei duas vezes a Moçambique, em 2004 e em 2009, fui em lazer com a antiga companhia da tropa e visitámos os locais. Foi uma aventura. Aconselho todos a voltar.

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