quinta-feira, 26 de maio de 2011

ÁFRICA DEVE REENCONTRAR-SE - defende o moçambicano embaixador Musasagy Jeichande

26 de Maio de 2011/Notícias

África deve reencontrar-se para resgatar os ideais daqueles que, em 1963, fundaram a Organizacao de Unidade Africana (OUA), hoje União Africana (UA), segundo defendeu o Embaixador moçambicano e ex-representante do Secretário-Geral das Nações Unidas em Angola, Mussagy Jeichande, em entrevista ao “Notícias”, por ocasião do 25 de Maio, Dia de África, cujo teor passamos a transcrever.

A visão que o mundo, sobretudo Ocidental, sobre África é dum continente de guerra, doenças, fome, incapaz de resolver os seus próprios problemas. Círculos ocidentais consideram que durante quase 40 anos de existência, a OUA não conseguiu evitar os inúmeros conflitos que assolaram o continente, nem promover de forma efectiva o seu desenvolvimento.

Segundo os mesmos círculos, a OUA nunca puniu os responsáveis por esses problemas, ao contrário da Commonwealth ou da ONU. No entanto, esses círculos reconhecem que ao manter o espírito de consenso e a tradição de uma presidência rotativa, decidida em cimeira regulares, a Organizacao de Unidade Africana conseguiu garantir a imagem de unidade e de vontade de progresso que lhe granjeou sempre, por parte dos vários blocos económicos e políticos, apoio real para a resolução de vários problemas.

Notícias (N) – Dr, passam 48 anos depois que foi fundada a Organizacao de Unidade Africana (OUA). Como é que avalia o percurso do continente africano durante esse tempo todo?

MUSSAGY JEICHANDE (MJ) - Bom, a Organizacao de Unidade Africana foi criada em 1963 e nós nos devemos debruçar sobre este assunto com muita atenção, analisarmos profundamente. Vimos que África foi um continente completamente escravizado, colonizado durante cerca de cinco séculos. Mas a liderança apercebeu-se logo no princípio que nenhum país sozinho poderia ser soberano, poderia garantir a sua integridade territorial. Devemos muito aos pais da criação desta Organizacao. Hoje, as novas gerações não têm ideia do que é que a geração de Nyerere, Nasser, Kwame N´krumah se bateu por um ideal, que era a dignidade dos africanos. E é extraordinário verificar que nem Europa, nem América, nem a Ásia têm uma Organizacao à escala continental. Nós hoje, de facto, deveríamos glorificar as lideranças africanas que tiveram a ousadia de pensar e criar uma Organizacao à escala continental. Alguns pagaram por suas próprias vidas. Provavelmente, se não tivessem esse sonho, essa visão, alguns deles poderiam estar no poder tanto tempo como esteve Mobutu. Mas, quer N´krumah, quer Lumumba, quer vários chefes de Estado que pensaram na criação da Organizacao de Unidade Africana foram legítimos. Aliás, logo no princípio, as antigas potências coloniais tentaram criar a divisão. As potências coloniais não queriam uma Organizacao Africana. O que nós vemos hoje é uma repetição das manobras de 1963. É uma falácia, quando alguns países ocidentais dizem que os países africanos não conseguem se desenvolver. Sempre quiseram uma África fraca, uma África dividida. Nunca quiseram uma África forte. Quando não havia Internet, quando não havia celular, os povos desses países eram solidários para com connosco…

OCIDENTE NÃO QUIS QUE ÁFRICA FOSSE SOBERANA

N – Com o recrudescer de convulsões políticas em África, o continente não está perigo?

MJ - Desde o princípio, a unidade africana esteve sempre em perigo. Sempre, certos países ocidentais não quiseram que o continente africano fosse soberano, um continente forte, um continente com ideias próprias. Hoje vê-se. O país com o maior índice de desenvolvimento humano em África é atacado. Vai-se deixar a Líbia completamente partida. Em 40 anos de regime de Khadaf, é incontestável que ele fez aquilo que muitos países em desenvolvimento conseguiram fazer.

N – Significa que há muita ingerência externa sobre África?

MJ - Os europeus exportam os seus problemas. Sempre que têm problemas, exportam-nos para os vizinhos. E hoje, a bandeira são os direitos humanos. Qual o direito humano que permite que um país seja destruído? A Carta das Nações Unidas que eu conheço fala do respeito pela soberania, integridade territorial, respeito pelas fronteiras. Mas nós vemos os países a serem invadidos, sob pretexto dos direitos humanos.

N - Na sua opinião, qual é a génese dos conflitos em África?

MJ - Há razões internas, obviamente. Mas, efectivamente, o grande incentivador da conflitualidade no nosso continente, e no caso da Líbia, é claro. O Mobutu, quanto tempo viveu sob a bandeira dos países ocidentais e da NATO? Na Líbia, que se saiba, só há petróleo. O Congo? O Zaire? A multiplicidade de riquezas? O Zaire sempre teve riquezas. Todos nós dependemos grandemente do Zaire, porque é lá onde reside o mineral estratégico que é utilizado hoje para o celular. Mas tornou-se ingovernável. O Sudão esteve ingovernável. Portanto, onde há índice de desenvolvimento, esses países são alvos.

N- Dr, acha que existe hoje uma liderança em África, face a toda uma ingerência do Ocidente e particularmente da Europa?

MJ - Não, não! Não há uma liderança forte em África. A maior parte dos africanos abdicou dessa visão dos fundadores da Organizacao de Unidade Africana. E é irónico que o homem que mais lutou para a criação duma união africana é hoje abandonado pela própria União Africana. As lideranças africanas não jogaram o seu papel, sobretudo os três membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que são África do Sul, a Nigéria e o Gabão. Mas toda a Organizacao é responsável.

N – Acha que os africanos andam desencontrados, face à crise que se instalou no continente?

MJ - Mais do que desencontrados, os africanos não têm as políticas para o continente.

UA SEM LINHAS MESTRAS DE COMO AVANÇAR

N – E qual acha que deve ser o papel da União Africana?

MJ - A União Africana não joga papel nenhum, porque não tem as linhas mestras de como avançar. Vai, muitas vezes, ao sabor do vento. Nós tínhamos pensado, na década de 80 e 90 que o desenvolvimento do nosso continente devia ser ao nível regional. Cada região devia procurar uma integração económica. Avançamos nisso? Não! Pensamos localmente que era possível fazer um governo africano. O próprio Khaddaf que era um incentivador disso foi vítima. O continente tem que se desenvolver a nível de cada região. Os países de cada região têm que ser solidários. Não há país da região que é mais forte que o outro. Os países da região têm que entender que são um corpo único. Então, as lideranças africanas têm que ter um sentido de história e de missão.

N – Perante os problemas que o continente vive e sobretudo agora com as guerras no Norte de África, que papel pode ter a União Africana?

MJ - A União Africana não existe. Os ocidentais que dizem que respeitam as organizações regionais, a quem foram ouvir? Foram ouvir os seus súbditos, os países do Golfo. Houve uma reunião da União Africana dizendo que os líbios estavam a fazer uma violação grosseiras (dos direitos humanos)? Não!. Nos anos 80 e 90, efectivamente, as lideranças europeias vinham aos nossos países. Quero recordar que, quer a independência da Namíbia, quer do Zimbábwè, foram negociadas pelos países da Linha da Frente, os mais pobres do continente. E discutimos com quem? Estados Unidos da América, Reino Unido, França, três potencias nucleares. Alemanha e Canadá. Esses paizinhos discutiram com os países mais poderosos do mundo. Porquê? Porque aqui em África existia uma liderança forte. Dou muito exemplo do Japão. Os japoneses que foram derrotados na segunda guerra mundial, o que é que disseram? Disseram: não toquem no imperador! Porque o imperador representava a nação. Então, os nossos países têm que ver no líder aquele que conduz a chama da liberdade, dos valores africanos. A interferência dos outros sempre existiu e sempre vai existir. Eles não querem uma África forte. A África tem recursos, tem uma população consideravelmente jovem, apesar dos problemas do HIV. A Europa está a envelhecer.

N – Acha que a OUA, ou seja, a UA, agora, poderia conseguir evitar os conflitos no continente?

MJ - A raiz dos conflitos em África é um problema do “have or not”, ou seja, do que tem ou não tem. Enquanto nós não criamos conflitos dentro da Europa, a Europa vem criar-nos conflitos. Muitos pensam que os africanos é que têm tendência para conflitos. Desde a colonização, os europeus não só nos trouxeram conflitos mas também a população. Se algum país africano disser: vocês estão em crise e não podem vir trabalhar nos nossos países, epá, dia seguinte a gente tem uma declaração de guerra. Quando os africanos se deslocam para a Europa, vão complicar a vida deles. Há um problema de liderança africana e há esta falta de unidade. A maior parte das lideranças africanas são mobutistas, quer dizer, seguem os pés dos europeus, são fiéis aos interesses ocidentais. (Arnaça)

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