21.11.2019, Pravda.ru (Rússia) http://port.pravda.ru/sociedade/incidentes/21-11-2019/49511-monroe-0/
Doutrina Monroe, o
fundamento do golpismo na América Latina
É impossível compreender a história da América Latina e dos
países latino-americanos individualmente sem considerar sua posição periférica
e satelitizada em relação aos Estados Unidos da América (EUA). A Doutrina
Monroe, formulada em 1823 pelo presidente estadunidense James Monroe, é até
hoje a pedra de toque do relacionamento EUA-América Latina, conforme admitido,
em abril desse ano, pelo então assessor de Segurança Nacional dos EUA, John
Bolton (br.sputniknews.com/americas/2019041813704110-john-bolton-eua-doutrina-monroe-sancoes).
Surgida como reação aos interesses europeus na América
hispânica, a doutrina pode ser resumida no lema "A América para os
americanos". Isto é: os EUA, na luta pela sua emergência geopolítica
contra as potências europeias, estendiam seu raio de influência
econômico-militar ao resto do continente, e
determinaram, por juízo próprio, o
direito de intervirem nos países alheios.
Fundamental acentuar que a Grã-Bretanha, desde o início,
respaldou a Doutrina Monroe, segunda afirma o professor da American University
Harold E. Davis, em seu livro History of Latin America (1968). Isso confirma a
convergência de interesses entre o Império britânico ascendente e sua
ex-colônia estadunidense. Convergência essa que favorecerá à Grã-Bretanha impor
sua hegemonia no mundo até a 1ª Guerra Mundial e, depois, a transferência dessa
hegemonia para os EUA, consolidada com os Acordos de Bretton Woods em 1944 e a
vitória atômica desse país ao final da 2ª Guerra Mundial, tendo o Japão como
vítima.
Assim, pode-se entender a constante desestabilização
coordenada desde os EUA e suas embaixadas, em conluio com as oligarquias
(antinacionais), para derrubar governos nacionalistas e consolidar governantes
lesivos aos interesses do próprio país, frequentemente autoritários.
A permanência e a continuidade do golpismo como prática
política das oligarquias latino-americanas vincula-se diretamente à permanência
e à continuidade da Doutrina Monroe, claramente reforçada após a elevação dos
EUA a superpotência hegemônica entre os países capitalistas após a 2ª Guerra
Mundial.
E por que o golpismo interessa aos EUA e às oligarquias
apátridas latino-americanas? Porque só assim podem manter regimes indiferentes
à sua legitimidade social e aos destinos das populações, voltados única e
exclusivamente para abastecer o setor produtivo estadunidense, e de seus
aliados, dos recursos naturais indispensáveis ao seu desenvolvimento. O
controle territorial e cultural dos países conquistados é fundamental para a
reprodução do "capitalismo real".
A Doutrina Monroe assemelha-se, assim, à geopolítica de
Friedrich Ratzel, para quem era inevitável e desejável que os "Estados
superiores" lançassem-se à conquista do solo alheio para a ampliação do
seu próprio "espaço vital". Contudo, se para Ratzel a anexação
imperialista era direta, a Doutrina Monroe promove uma anexação indireta,
mantendo a independência formal das suas colônias (à exceção de Porto Rico),
mas não menos efetiva, haja vista a eficácia dos EUA em influenciarem as
movimentações internas das oligarquias latino-americanas e controlarem os
destinos desses países.
O único país que conseguiu escapar duradouramente da
Doutrina Monroe foi Cuba. Hoje, a Venezuela, país com a maior reserva mundial
de petróleo e a segunda maior de ouro, também se coloca fora do raio de
conquista dos EUA, embora de forma menos sistemática. A aliança militar com
Cuba e Rússia, em um momento em que a Rússia volta a ser protagonista no
tabuleiro internacional e envida esforços para a integração eurasiática com a
China na busca pela "reorientalização" do centro mundial de poder,
coloca a Venezuela no centro das preocupações dos EUA.
Daí a importância, para o Império do norte, de ter um
aliado canino como Bolsonaro no governo do Brasil. A imensidão física e a centralidade
econômica do Brasil na América do Sul são a aposta dos EUA para reanexar a
Venezuela e, de quebra, tentar fazer o mesmo com Cuba, aliada de primeira hora
do bolivarianismo venezuelano e que, pelos seus renomados serviços de
inteligência, contribui fortemente para a estabilidade do governo de Maduro.
O endividamento da Venezuela com o FMI no primeiro dia de
governo e a privatização de praticamente todas as empresas estatais do país
foram publicamente colocadas pelo golpista Guaidó como objetivos, para
benefício exclusivo dos EUA e da banca
(valor.globo.com/mundo/noticia/2019/02/11/oposicao-prepara-plano-para-venezuela-pos-maduro.ghtml).
O golpe na Bolívia que destituiu Evo Morales faz parte do
plano maior de reanexar a Venezuela e, de quebra, enfraquecer o Grupo de
Puebla, alternativo ao pró-EUA Clube de Lima, e afastar Rússia e China, também
parceiras estratégicas do Governo Evo, da América Latina.
Visa, também, impedir os investimentos em infraestrutura e
tecnologia (como o carro elétrico boliviano, em parceria com a China, e
tecnologia nuclear, em parceria com a Rússia) conduzidos por Evo e que tinham
por objetivo fazer da Bolívia o "coração energético" da América do
Sul, possibilitando a integração física e o desenvolvimento do heartland sul-americano.
Os golpistas não titubearão em desfazer a principal herança
institucional de Evo, a Constituição de 2009, que estabelece o controle estatal
sobre todos os hidrocarbonetos, a prioridade do capital nacional em relação ao
estrangeiro e o direito do Estado de produzir qualquer bem ou serviço, além de
proibir bases estrangeiras em território boliviano. Tudo em nome da modernidade
neoliberal, expressão ideológica contemporânea do imperialismo da Doutrina
Monroe.
Portanto, no contexto da América Latina, construir a
soberania nacional e o Estado nacionalista significa desafiar a Doutrina
Monroe, os EUA e os grupos oligárquicos nativos vinculados aos interesses
externos. Sem a superação desse terrível quadro, a história latino-americana
está condenada a ser a eterna repetição de golpes e sabotagens contra governos
nacionalistas e populares que eventualmente surjam.
*Felipe Quintas:
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.
Transcrito do Monitor Mercantil, 20/11/2019, Opinião
*Abya
Yala: Terra
viva, o nome indígena da América Latina.No espírito de José Martí e dos povos
nativos, Abya Yala é tudo o que está relacionado com a Nossa América, essa
terra viva que vai do Rio Bravo à Terra do Fogo, passando pelas Caraíbas, sem
esquecer as primeiras nações da América do Norte.
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